Que pontas poderão ligar uma ilhota no
Atlântico, um apartamento na zona velha de uma cidade, uma antiga casa judia na
Índia, e o dorso de uma galinha? A resposta matraca-se em duas sílabas: arroz.
Quando em, 1977, saí de casa e comecei
a trabalhar não sabia sequer cozer um ovo. Durante dois anos (tempo que morei
em Guimarães) essa incapacidade resolveu-se por si própria: todos os dias comia
fora e a cozinha das casas onde morei era uma peça pouco frequentada, de
armários vazios. Mas, no terceiro ano, fui voluntariamente desterrado para uma
pequena ilha dos Açores, Graciosa de seu nome. Aquilo era tão pequeno e pouco
frequentado que não havia um restaurante, comia-se em casa de uma senhora,
contratada para nos confeccionar as refeições. Todos os almoços, todas as
santas noites, a dieta oscilava entre o peixe frito com arroz e a carne rija
com arroz, coitada da D. Irene, era um desastre na cozinha e na imaginação.
Desesperados – eu e o colega e amigo com quem morava – fomos postos perante o
terrível facto: se queríamos comer melhor devíamos aprender a fazê-lo. Mas
como? Como percorrer o longo caminho entre a galinha viva, que nos tinha
oferecido um doente agradecido, e o fricassé de frango? Lembro-me de, numa cena
nojenta, lhe serrilhar o pescoço com uma faca de mato romba e de a ver arfar
enquanto esperava que me decidisse: a bicha era asmática! Matá-la foi, apesar
de tudo, o mais fácil, mas quando chegou a hora de lhe despejar água a ferver
em cima, para depois conseguir arrancar as penas... Meu Deus, o cheiro
nauseabundo a autocarro cheio em dia de chuva e as milhares de penas que forram
uma galinha! E ainda faltava abri-la, sacar as vísceras, parti-la em pedaços,
etc. Acabou no lixo, semi-depenada e desonrada, a pobre, a milhas de ser comida
como merecia...
Uma
dessas noites de desespero, levantei o auscultador e, logo que ela apareceu do
lado de lá, pedi à telefonista que me ligasse para casa dos meus pais.
“Mãe, como se faz arroz?”
Por entre estalidos transatlânticos a
minha mãe começou a explicar o processo, mas aquilo pareceu-me demasiado moroso
e chato para seguir os pormenores com atenção e o que resultou da primeira
tentativa foi uma massa informe, aglutinada, ainda pior do que o arroz que a D.
Irene nos cozia a todas as refeições, aquecendo para o jantar o que sobrava do
almoço pelo método de o meter, dentro de um coador, num tacho com água a
ferver!
Por esses dias recebi carta de casa,
uma longa missiva onde a minha mãe, numa prosa poética que citava Jorge Amado
para referir a cor que devia revestir a cebola num estrugido perfeito, passava
a escrito as etapas de confeccionar um arroz, simples, seco. Aquilo tinha que
se lhe dissesse e o principal segredo, revelava ela, era a relação entre a
quantidade de grão usado e o volume de água em que seria cozido. Vital,
aprendi, é o principal para se chegar a bom termo.
Um par de anos mais tarde, já eu me
vangloriava de saber fazer arroz, propus-me fazê-lo para um jantar em casa de
amigos recentes, amigos que moravam numa transversal de Mártires da Liberdade,
uma rua velha, estreita, de telhados desirmanados e procurando beijar-se por
sobre a linha do eléctrico, o adereço mais luminoso da rua. Comigo, na pequena
cozinha do apartamento, estava a Alice, a dona da casa, cirandando pelos outros
pormenores do jantar a vir. Às tantas, vendo-me pousar a tampa do tacho e
reduzir o lume para o mínimo, comentou suavemente:
“Primeiro tens de o deixar levantar
fervura e mexê-lo bem, só depois é que o pões no mínimo...”
Tenho a certeza, absoluta e seca como
um gin, que a Alice não reteve esse instante mais do que ele foi – um instante
– mas eu, ainda hoje, me lembro desse conselho quando espero, pensativamente
virado para baixo, que a água, que já se tornou opaca pelo pó que se soltou do
arroz, borbulhe, alegre e arrancada à modorra das águas paradas.
Passaram décadas, décadas, é noite e
estou a ver a namorada do meu filho a cozinhar um jantar em minha casa, uma
retribuição pelos dias a fio em que cozinhei para eles. Ye, é chinesa e quando
lhe perguntei de onde, e não sendo a explicação nenhuma das clássicas Pequim,
Xangai ou Hong-Kong, ela relembrou que o mapa da China tem a forma aproximada
de uma galinha e que a cidade dela é bem no meio do dorso da galinha, na
encruzilhada onde nascem as asas.
“Ah...”, digo, enquanto vamos falando
dos modos de fazer arroz, eu muito atento, pois se há alguém que sabe fazê-lo
como deve ser são os chineses e os indianos.
“A minha mãe...”, diz ela, e vai
contando detalhes que nos são totalmente estranhos, mas me fazem aperceber o
cuidado detalhado – entre o estético e o funcional – com que aquela gente
concebe tudo. “E pronto”, continua ela, “agora não se pode mais abrir”, remata
ao pousar a tampa sobre a enorme panela onde pôs a fazer arroz.
“Ai, é?”, pergunto, “vocês nunca mais
abrem a tampa até estar pronto?”
“Não!”, retorquiu ela, quase indignada
com a simples menção a essa possibilidade, “é o segredo de um bom arroz: manter
o vapor sempre preso.”
“Ah”, digo eu.
E foi o que aprendi sobre a essência
de fazer arroz, ao longo dos anos. É certo que houve pormenores que aprendi por
observação própria e que dou por mim a transmitir a outros que estão mais ou
menos na fase de o aprender a fazer e se interessam por isso. Por exemplo? Por
exemplo: a quantidade de água (medida numa chávena – de preferência sempre a
mesma – ou num copo – de preferência sempre o mesmo) deve ser o dobro da
quantidade do arroz, mas esta regra só funciona bem para 1 medida. Se usarmos 2
chávenas de arroz, em vez de 1, a quantidade de água já não serão as 4 chávenas
de água de um dobro, mas, mais ou menos, 3. E por aí fora. Isto é: à medida que
a quantidade de arroz que necessitamos cozinhar aumenta, a proporção de água a
juntar não cresce no dobro inicial, o acrescento em água medra mais lentamente.
E vou-me, deixo-vos com a receita de
um arroz, simples, sem recheios ou acrescentos de espécie alguma, seco, pois
ele poderá também ser produzido na versão solto
ou malandro, como também se chama
nalgumas zonas do país ao arroz que se esbarronda e escorrega no prato.
E a Índia? Qual Índia? A velha casa
judia na Índia. Ah! Pois isso tem a ver com o sítio onde eu comi,
provavelmente, o melhor arroz seco da minha vida; quem me dera ir lá hoje pedi-lo
outra vez. Só que aquilo é longe como burro, mesmo em termos indianos. Foi em
Cochim, no Sul, a uns 300 km de Goa, numa pequenina e velha terra onde morou o
Vasco da Gama. A pouco mais de uma centena de metros da casa dele, agora um
café, transformaram a velha mansão de um judeu num hotel de meia-dúzia de quartos, e no menu do Menorah, o restaurante do hotel,
constava uma coisa chamada “lemon rice”. O nome atraiu-me, e mandei vir, ó
suprema inspiração! Serviram um arroz maravilhoso, sequinho, solto, levemente
amarelado e recendendo uma fragrância de limão de perfume superior. Na Índia,
aquilo a que chamam limões parece aquilo a que nós chamamos limas, são mais
pequenos e mais verdes do que amarelos. E é com isso que temperam o arroz
imediatamente após terminar a cozedura: passam-no, muito rapidamente, por uma
frigideira sem gordura onde colocaram meio-limão. O resultado é um primor,
deixo aqui o endereço para que possam vir a provar o que falo, pois não é prato
que se consiga reproduzir sem ofensa: Koder House, Fort Kochi, Índia.
ARROZ
(os básicos. Para 3/4 pessoas)
Ingredientes
1 chávena de arroz
2 chávenas de água
½ cebola média
óleo de amendoim (até cobrir, em muito
fina camada, o fundo do tacho)
sal (q.b.)
Confecção
1. Ponha um pouco de azeite ou óleo no
fundo de um tacho (recomendo o óleo, pois invadirá menos o sabor do arroz do
que o azeite e, dentro dos óleos, o de amendoim, uma vez que é o que melhor resiste
ao aquecimento) e acrescente a cebola, picada, ou em pequenos pedaços muito
finos, quando o óleo já estiver a aquecer.
2. Deixe alourar a cebola e, ao falar
em alourar, quero dizer deixá-la atingir uma cor amarela, não muito carregada
(dourada, de mel de rosmaninho), o que se consegue um pouco antes de a cebola
começar a encarquilhar no tacho e a queixar-se cheirando. Deixá-la frigir mais
do que isso tornará o sabor do arroz mais intenso – mais próximo do que lhe
poderão servir numa roulotte de bifanas – e fará aparecer à superfície do mesmo
uns destroços esturricados. Terá de ir mexendo e vigiando a mistura
permanentemente, não é conveniente ir fazer outra tarefa durante esta fase,
pois o ponto óptimo de cozimento da cebola atinge-se rapidamente.
3. Quanto ao arroz, pode deitá-lo
directamente dentro do tacho, sem o demolhar previamente. Prefiro, aliás, esta
modalidade de ir misturando (em lume médio) o grão com a cebola e o azeite,
fritando-o muito ao de leve, mais um braseamento – que amolecerá a superfície
dura e polida, preparando-a para a penetração da água, – do que uma fritura.
4. Um ou dois minutos depois deite a
água, de uma vez só, e mexa sempre até que o arroz esteja completamente solto
no seio da água, como se se tivesse dissolvido. Quando levantar fervura deixe
que ela cante, forte, e, só então, tape e ponha o lume no mínimo. Estará pronto
quando toda a água se tiver evaporado.
5. Quanto ao sal: pouco, muito pouco,
para além do mais faz mal à saúde. Os indianos, os chineses, os japoneses, não
usam geralmente sal nenhum e o arroz que põe à mesa é maravilhosamente insípido:
o que sobressai ao paladar é, apenas, o sabor suave e requintado do arroz.
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, Cochim (Índia) 2012; (2) Rui Dessa, Graciosa (Açores) 1979; (3) Pedro Serrano, Ribeira de Pena 1982; (4) (5) Pedro Serrano, Cochim (Índia) 2012.
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