11 julho 2013

A NOÇÃO DOS BLUES


Aquilo era um jantar festivo, comemorativo de um empreendimento que terminara bem e o local, (Kintal da Música, restaurante com música ao vivo, em Cabo Verde) propício a estados felizes.
Sentado entre o Mário (da Guiné Bissau) e a Luz (de Cabo Verde) dei por mim surpreso ao reparar que, no alheamento de quem ouve música, o olhar deles, assim como o do Nicolau (outro da Guiné, sentado em frente) era infinitamente triste, de uma tristeza que sobrenadava mal eles  esqueciam a exaltação conveniente a comemorações.
Depois, até o comentei com o Paulo que, atento como é, se dera conta do fenómeno com igual espanto. Pois não são os pretos – os de gema ou os descendentes dos exportados à força – os reis da efusividade, da alegria, da animação contagiante que transparece em algumas das suas manifestações musicais? Sim... mas há o reverso da medalha: os blues americanos, uma expressão musical que deixa escapar – além das fronteiras das contrariedades humanas – a tristeza essencial do ser, de algo que se perdeu mesmo que nunca se tenha tido... Ou, já que ali estávamos no Kintal, o à beira das lágrimas das mornas cabo-verdianas, essa suprema forma de melancolia sonora, exactamente do tom que sobrava nos olhos virados para dentro do Mário, da Luz e do Nicolau. E como raio, espelho meu, estaria o olhar que me dizia respeito?
Pois, caros ouvintes, vem o extenso prólogo a propósito de um nome que vos aconselho a fixar e procurar ouvir: Gisela João, Gisa para os íntimos em Barcelos, onde nasceu.
Gisela tem vinte e nove anos e deu por si a cantar fado de um forma irreprimível quando tinha nove e lavava a louça numa banca mais alta do que ela. Ouvi falar no nome numa entrevista do Público e, mesmo sem a ouvir cantar uma nota, gostei do entusiasmo do repórter e, sobretudo, das respostas inteligentes que ela dava às perguntas. Como se pode ficar indiferente a alguém que percebeu o que são os blues e os tenta relacionar com o padrão do fado, quem chegou ao entendimento do que há de especial no cantar de Billie Holiday, de Frank Sinatra ou de Ella Fitzgerald?

Procurei o primeiro disco dela – acabado de sair – no Corte Inglés, mas ainda não tinham recebido. Desci ao Chiado num fim de tarde esbaforido de calor e encontrei-o na Fnac. A produção gráfica do CD (da Valentim de Carvalho) é tenebrosa e a parte técnica deixa a desejar, pois a voz é mal captada sempre que a cantora sussurra. É Portugal no seu melhor, ao desleixar um momento que devia tratar com o cuidado que merece o aparecimento de uma cantora muito, mas muito especial. Não estamos perante mais uma menina que aprendeu os tiques e a pose do fado: esta senhora canta no registo que nos faz arrepiar a pele da alma. Gisela João, registem, alguém que aos nove anos de idade deu por si a preferir e a cantar o “Que Deus Me Perdoe” enquanto tomava conta dos irmãos mais novos e que, sobre isso, nos diz:
“Eu estava sempre a rir, e tinha de estar bem-disposta por causa dos meus irmãos, era eu que tomava conta deles, mas sentia aquela coisa cá dentro, triste...”

Fotografia de cima: Kintal da Música, © Pedro Serrano, Santiago (Cabo Verde), Março 2011.



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