Aquilo era um jantar festivo,
comemorativo de um empreendimento que terminara bem e o local, (Kintal da Música, restaurante com música
ao vivo, em Cabo Verde) propício a estados felizes.
Sentado entre o Mário (da Guiné
Bissau) e a Luz (de Cabo Verde) dei por mim surpreso ao reparar que, no
alheamento de quem ouve música, o olhar deles, assim como o do Nicolau (outro
da Guiné, sentado em frente) era infinitamente triste, de uma tristeza que
sobrenadava mal eles esqueciam a
exaltação conveniente a comemorações.
Depois, até o comentei com o Paulo
que, atento como é, se dera conta do fenómeno com igual espanto. Pois não são
os pretos – os de gema ou os descendentes dos exportados à força – os reis da
efusividade, da alegria, da animação contagiante que transparece em algumas das
suas manifestações musicais? Sim... mas há o reverso da medalha: os blues americanos, uma expressão musical
que deixa escapar – além das fronteiras das contrariedades humanas – a tristeza
essencial do ser, de algo que se perdeu mesmo que nunca se tenha tido... Ou, já
que ali estávamos no Kintal, o à
beira das lágrimas das mornas cabo-verdianas, essa suprema forma de melancolia
sonora, exactamente do tom que sobrava nos olhos virados para dentro do Mário,
da Luz e do Nicolau. E como raio, espelho meu, estaria o olhar que me dizia
respeito?
Pois, caros ouvintes, vem o extenso prólogo
a propósito de um nome que vos aconselho a fixar e procurar ouvir: Gisela João,
Gisa para os íntimos em Barcelos, onde nasceu.
Gisela tem vinte e nove anos e deu por
si a cantar fado de um forma irreprimível quando tinha nove e lavava a louça
numa banca mais alta do que ela. Ouvi falar no nome numa entrevista do Público e, mesmo sem a ouvir cantar uma
nota, gostei do entusiasmo do repórter e, sobretudo, das respostas inteligentes
que ela dava às perguntas. Como se pode ficar indiferente a alguém que percebeu
o que são os blues e os tenta
relacionar com o padrão do fado, quem chegou ao entendimento do que há de
especial no cantar de Billie Holiday, de Frank Sinatra ou de Ella Fitzgerald?
Procurei o primeiro disco dela –
acabado de sair – no Corte Inglés, mas ainda não tinham recebido. Desci ao
Chiado num fim de tarde esbaforido de calor e encontrei-o na Fnac. A produção
gráfica do CD (da Valentim de Carvalho) é tenebrosa e a parte técnica deixa a
desejar, pois a voz é mal captada sempre que a cantora sussurra. É Portugal no
seu melhor, ao desleixar um momento que devia tratar com o cuidado que merece o
aparecimento de uma cantora muito, mas muito especial. Não estamos perante mais
uma menina que aprendeu os tiques e a pose do fado: esta senhora canta no
registo que nos faz arrepiar a pele da alma. Gisela João, registem, alguém que
aos nove anos de idade deu por si a preferir e a cantar o “Que Deus Me Perdoe”
enquanto tomava conta dos irmãos mais novos e que, sobre isso, nos diz:
“Eu estava sempre a rir, e tinha de
estar bem-disposta por causa dos meus irmãos, era eu que tomava conta deles,
mas sentia aquela coisa cá dentro, triste...”
Fotografia de cima: Kintal da Música, © Pedro Serrano, Santiago (Cabo Verde), Março 2011.
bêju di sodadi
ResponderEliminar@ Allô, allô, miss Luz, saudades para Cabo Verde. Beijo
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