Deus
abençoe as séries televisivas. Deus abençoe as séries televisivas, das mais
fáceis de consumir e esquecer como a americana Donas de Casas Desesperadas (Desperate
Housewifes, ABC, 2004-2012) até às muito inglesas e clássicas como A Jóia da Coroa (The Jewel in the Crown,
PBS, 1984) ou Downton Abbey (ITV, 2010-2013), a última inspirada na receita feliz
de uma série antiga de patrões e criados chamada Upstairs, Downstairs (ITV, 1971-1975).
Depois,
há aquelas que podemos arrumar no capítulo das obras-primas ou das memórias
definitivas, tão cuidado e brilhante são o todo e os pormenores, seja o
argumento que sustenta o enredo, a fotografia, a banda sonora ou o desempenho de
actores que se tornam indistinguíveis dos personagens que personificam e nos
deixam saudade aguda mal termina o último episódio. Joias destas há poucas,
muito poucas e, dos anos 80 até hoje, consigo citar apenas quatro: Reviver o Passado em Brideshead (Brideshead Revisited, Granada, 1981); Twin Peaks (de David Lynch para a ABC, 1990-1991);
Sete Palmos de Terra (Six Feet Under, HBO, 2001-2005); e Os Sopranos (The Sopranos, HBO, 1999-2007). É minha intenção dedicar, um dia, um
texto exclusivo a Brideshead Revisited,
a maravilhosa encarnação cinematográfica do maravilhoso romance homónimo de Evelyn
Waugh, mas hoje, em celebração da morte recente (19 de Junho 2013) do seu actor
principal (James Gandolfini) fico-me pela recordação dos Sopranos.
Os Sopranos
retomam um tema caro ao imaginário americano – a Mafia – e é herdeiro em linha recta da saga O Padrinho, de Francis Ford Coppola. Os
três filmes que contam a história da família Corleone duravam, somados, mais de
dez horas o que, nos dias de hoje, cobria uma série com uma dúzia de episódios.
David Chase, o mentor dos Sopranos,
quis ir mais longe em termos de duração e detalhe ao explorar o perfil de um Padrinho
dos tempos modernos e que, ao arrepio do herói sem falhas incarnado por Marlon
Brando, Robert de Niro e (em menor grau) Al Pacino, é vulgar, mais manhoso do
que inteligente e sofre de imprevisíveis ataques de pânico...
O
primeiro episódio da primeira temporada, das seis que a série iria ter, abre
precisamente com um ataque de pânico de Tony Soprano, o chefe do poderoso clã
suburbano: um casal de patos nidificou no seu quintal e os patinhos usam a
piscina como lago familiar. Mas os patos cresceram e um dia levantam voo para
não voltar, e a projecção deste desmembrar de uma família una e feliz faz fugir
o chão debaixo dos pés do mafioso implacável. E ei-lo, às escondidas, a ter de
recorrer a um psiquiatra que, ainda por cima, é uma mulher.
Os cerca de 60 episódios dos Sopranos foram produzidos e apresentados
na TV ao longo de sete anos o que permitiu, em tempo real, assistir ao
crescimento dos dois filhos adolescentes de Tony e Carmela, ao envelhecimento e
morte dos – poucos – que se foram por morte natural e, ainda, ao imiscuir dos
acontecimentos reais da América e do mundo (como o 11 de Setembro) na trama da
série.
Como
muitas vezes sucede com as produções televisivas, Os Sopranos arrancaram de modo hesitante, a testar o público, mas o
sucesso foi tão grande que a série teve meios e ímpeto para se sofisticar até à
perfeição, dando até espaço para o experimentalismo cinematográfico: os
personagens ganharam maior complexidade e profundidade; vários realizadores
foram chamados a dirigir episódios específicos (dos quais alguns dos actores da
série como Michael Imperioli – Christopher Moltisanti, o sobrinho-filho de Tony);
actores famosos vieram fazer uma perninha; e o modo como foram encenados em filme
os sonhos de Tony – um deles durando um episódio quase inteiro – atingiu um
requinte que faria crescer água na boca a Dali, Hitchcock ou Buñuel.
Na
morte de James Gandolfini – que, decalcando a ficção, apareceu morto no chão do
quarto de banho de um hotel em Itália, sendo o óbito associado a excesso de
drogas e álcool – foi afirmada, como é costume nestas coisas, a sua dimensão
de excelência como actor o que, para mim, é exagero póstumo. Vi Gandolfini
em vários filmes manhosos e não achei
que passasse de um secundário mediano... Mas nos Sopranos construiu com génio um homem contraditório, dissimulado, chico-esperto, com uma intuição paranoide, passando do
sentimentalismo descartável à violência gratuita no esfregar de um olho, personagem
que ganha consistência imediata por ser tão próximo do ser humano vulgar de
Lineu.
Nunca
viu Os Sopranos?! Meus Deus, de que
está à espera!? Os DVD da série continuam por aí à venda em tudo que é lado.
Não perca a oportunidade de ver actores em estado de graça como Livia, a
perversa mãe de Tony (representada por Nancy Marchand) e a origem de todas as
debilidades psicológicas do filho; o ambíguo tio Júnior (Dominic Chianese – um
actor que veio do Padrinho) ou de se
comover com a cena em que Carmela (mulher de Tony, a que dá vida a actriz Edie
Falco) chora ao ver na TV um anúncio de comida para cães, tal é frágil o seu
estado psicológico no momento.
Ouviu
dizer que Os Sopranos é série muito
violenta? É verdade, mas isso não deve impedi-la de a ver, pois a violência não
é o motor do assunto: essencialmente, Os
Sopranos, tal como O Padrinho, é
a história da vida e do declínio de uma família.
Deus
abençoe as séries televisivas pela companhia que nos fazem, o prazer que nos
proporcionam e o modo como aumentam o número de desconhecidos que passam a
fazer parte da nossa vida como se realmente existissem.
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