16 abril 2020

COVID19: OS DIAS CONTADOS

"Sabes que fiquei em primeiro lugar no concurso?"
"Eh, Francisco, que fixe! Quantos concorrentes eram?"
"Dois, eu e outro; o outro desistiu na prova prática..."
"Olha, fiquei classificada em terceiro lugar no concurso?"
"Ai sim? E quantos eram os concorrentes?"
"Duzentos e cinquenta."
Estes dois diálogos expressam duas verdades: 
A primeira grita que os números, em estado solto, a granel (também chamados  brutos ou absolutos), não significam grande coisa, como se vê no caso dos concorrentes acima. Há um tal Francisco, que parecia ser uma brilhanteza pelo lugar que obtivera numa prova de concurso, mas afinal isso só acontecera por haver apenas um outro na disputa; em seguida, no segundo diálogo, há uma rapariga que até só fica em terceiro lugar na listagem, mas os candidatos a concurso são 250, o que lhe realça, de imediato, o valor no resultado obtido. 
A segunda verdade, reza que, para podermos tirar ilações consistentes e comparáveis, é sempre obrigatório fazer contrastar o tal número a granel com o universo que lhe diz respeito. Por exemplo: número de casos confirmados de Covid19 e tamanho da população do país onde isso acontece. Outro exemplo: número de mortes por Covid19 por milhão de habitantes, e não apenas que "são 600 e aumentaram 35 desde ontem" — isso diz-nos (quase) nada. Ainda um outro exemplo: número de casos internados nos cuidados intensivos e sua relação com o motivo pelo qual esse número tem diminuído ou aumentado. É muito diferente o número de internados estar a diminuir porque os casos de Covid19 estão a diminuir no país, desse número de internados estar a diminuir porque têm morrido a grande parte dos que vão parar a cuidados intensivos e, deste modo, há sempre camas para todos e o sistema não rebentou. Pois não, mas, e como quase não há recuperados, esta folga deu-se à custa do cemitério e não da brilhante política de saúde do Sr. Ministro da Pasta Respectiva.
Estes longos preliminares tiveram como finalidade enquadrar uma situação que, de quando em vez, gera desconforto nos ouvidos mais atentos.
Portugal tem, consistentemente, ocupado o 15.º ou o 16.º lugar, a nível mundial, nos países com Covid19. Ora, tendo em conta, que temos 10 milhões de habitantes, este lugar no pódio de um mundo que tem, grosso modo, 195 países, é posição de arrepiar e, pessoalmente, preferiria que estivessemos na cauda do que nos píncaros.
É por isso que insistir apenas em mostrar números brutos (soltos de um valor que os relacione com o tamanho do local em causa) é curto, pode ser manhoso, e é  sempre enganador: A Espanha, aqui ao lado, tem 47 milhões de habitantes, a França 67 milhões, a Itália 60, a Alemanha 83 milhões, o Reino Unido 67; a Rússia 145 milhões, o Brasil 210, os EUA 329 milhões, o Irão 82 e a China 1.300 milhões. Estes países, de muito maior população e onde, portanto, um número maior de infectados representa muito menos, estão connosco no tal pódio, aliás acima de nós nesse estreito pódio, mas o estar acima pouco conta ao considerar o número de habitantes que têm quando comparados com a nossa migalha ibérica! Dos que estão ainda acima de nós, mas muito próximos em número de casos, temos a Bélgica (11,5 milhões de habitantes), a Holanda (17 milhões) e a Suíça (9 milhões) e, já em melhor situação do que nós e com menos casos, a Áustria (também com 9 milhões) e a Irlanda (com 4 milhões). Se tentarmos resumir isto usando o número de casos por milhão de habitantes, método que já nos permite compararmo-nos com quem nos apetecer, uma vez que o tamanho da população respectiva é tido em conta, verificamos que Portugal (1848 casos/por milhão de habitantes) está em 7.º ou 8.º lugar a nível mundial, mais ou menos como os EUA (1948 casos/milhão), e só somos ultrapassados por Espanha, França, Itália — os nossos vizinhos do lado — encontrando-nos em pior situação do que a Inglaterra, a Alemanha ou a Holanda, já para não falar da China ou do Irão, onde parece ter chegado a bonança. Deste modo é, na minha opinião, inquietante ver o cunho de simpática excepcionalidade com que nos consideramos em termos de atingimento pelo Covid, parecendo que tudo vai muito bem por cá, que a coisa quase parou na fronteira, pois o nosso jeito de cintura enganou o vírus! 
Se, por outro lado (usando a técnica de meter sob os números, que nos mostram diariamente na TV, o universo a que respeitam) olharmos o retrato segundo o número de mortos por Covid, o que se vê? Que Portugal (62 mortos por milhão de habitantes) continua no pódio, desta vez num 8.º ou 9.º lugar a nível mundial. É sabido que à nossa frente estão países como a Itália (358 mortos/milhão), a Espanha (409) e a França (263/milhão), mas esses três começaram a sentir os efeitos da pandemia antes de nós, já tiveram mais tempo para que os desfechos se manifestassem e possam ser contabilizados. Há depois, em situação mais grave, o Reino Unido (202 mortos/milhão) e a Holanda (193), mas, em relação a esses países, todos conhecemos a política desastrosa de lidar com o assunto que os respectivos líderes políticos assumiram e a que, a breve trecho, o Brasil se reunirá.
O que mais chama a atenção, no número de casos e mortos por milhão de habitantes, é a onda numérica, de uma certa contiguidade com os países que se sucedem quando olhamos para leste: Espanha, França, Itália. Seria, talvez, melhor arregaçarmos as mangas da precaução e da intervenção, em vez de estarmos à espera de um milagre tipo mar Vermelho ou de nos supormos país  neutro, como durante a II Guerra Mundial.  
Quanto à letalidade (proporção de doentes com Covid que morrem da doença), ela anda em Portugal pelos 3,5 %, valor semelhante ao estimado em Março pela Organização Mundial de Saúde (3,4 %), porém um número bastante acima das iniciativas iniciais da organização sobre a letalidade do Covid e que se ficava nos 2,0 %. Relembre-se que a letalidade média da gripe banal ronda os 0,1 %, ou seja: o coronavírus é cerca de 35 vezes mais mortífero.  
A perspectiva que expus até agora, baseada somente em número de casos confirmados e mortes reportadas oficialmente, é simples de obter, calcular e olhar, mas toda esta análise ganharia em ser mais sofisticada como, por exemplo, acrescentando-lhe o acesso a dados como mortes de diagnóstico pouco claro ou indeterminado (dá-nos uma ideia sobre a parte submersa do iceberg);  as estimativas do excesso de mortalidade sazonal, que poderá estar a acontecer e se evidencia objectivamente quando comparamos esta primavera de 2020 com primaveras homólogas (ou seja: anteriores); podendo tudo isto ser ainda temperado por informação específica vinda do funcionamento e movimento dos serviços de saúde (públicos e privados), tal como o número da casos de Covid19 entrados e saídos dos cuidados intensivos e qual a proporção dos doentes que morrem da doença durante o internamento, o que permitiria uma ideia sobre a qualidade dos cuidados prestados e compará-la com o que sucede noutros países. Isso ajudaria. Ajudaria também, em termos de retrato desapaixonado e honesto da situação, se os números de fontes distintas fossem comparados e uns servissem para rectificar ou validar os outros, pois já se viu que a contagem rigorosa não tem sido apanágio de Lisboa.
Finalmente, ainda no terreno contagem e relacionamento, apreciaria ver os números avulsos de casos e mortos mostrados na TV (que, pelos vistos, é a ração que, coitados, lhes é servida pelo Ministério da Saúde) apresentados por região e distrito do país, usando a tal técnica tão simples de os relacionar com o número de pessoas que lá moram e, para começar, respectivas idades, recorrendo a técnicas básicas de ajustamento e padronização.   
O que exaspera, no modo como todo este problema tem sido gerido e comunicado, mais do que a possível gravidade da situação do país (somos como os outros, havemos de conseguir fazer parecido; lamberemos as feridas como os outros), o exasperante é o optimismo bacoco das meias-verdades; de nos servirem no LCD um aumento de 30 casos nos curados como a sétima maravilha do mundo, quando a proporção de curados (total: 493), em relação ao total de casos (18.841) é de apenas 2,5 %, e sendo o número total destes curados bastante inferior ao número de mortos (total: 629). Sendo essa a realidade, não lhe chamem "a boa notícia é que o número de curados", pois não é boa nem má: mostra apenas que (nos que se safam) a recuperação e a cura são lentas.
De tudo o que ficou dito, há um aspecto que irrita e outro que preocupa. O que irrita, para além da nossa milagrosa diferença em relação a outros, são as fantasias em torno do pico e da data do pico, do planalto e do achatamento da curva. Que é isso do planalto? É um pico que não cresce e vai por ali fora em linha recta? E de que modo todo este crescimento no número de infectados, controlado ao nível decimal, é-o, apenas, por estar dependente do número de testes feitos diariamente, dependente também da fatia a quem são feitos esse testes, e do tempo que demoram os resultados a ser vertido nas estatísticas?
Portugal: Casos diários de Covid19 (confirmados), Fevereiro-Abril.
Fonte: John Hopkins University, 2020. Nota: a coluna mais alta assinala o
dia 10 de Abril, e 4 colunas à direita desta encontra-se o famoso pico,
previsto ministerialmente para o dia 14 de Abril de 2020 (é um pico assim para 

baixote, mas não se pode ter tudo!).
Dito o que me enchia os olhos de poeira, o que me preocupa é que todo este realismo mágico transborde e ensope de dourado as calças e as saias dos que decidem no país. Desejo intensamente que todo este inebriamento não contamine e venha a moldar as decisões que vão ser tomadas sobre o regresso a escolas, abertura da indústria e do comércio, fim de medidas de isolamento, trilhamento de liberdades e garantias, etc. Em casos como este, tenho um medo que me pelo das decisões baseadas na evidência que os políticos sugerem que os técnicos lhe forneçam como sendo descoberta deles, técnicos.    

Nota: Todo este texto se baseia em dados disponíveis a 14, 15 e 16 de Abril de 2020, pelo que as posições relativas expostas (países no pódio dos mais atingidos, mortalidade) podem, para o melhor ou o pior, vir a sofrer alteração.

© Fotografia de cima e montagem: pedro serrano, abril 2020.

4 comentários:

  1. Reconheço que não sei o significado do planato do COVID-19 mas será porque a minha qualificação no concurso da carreira de saúde pública não foi exitosa, e agora a dúvida surge com os testes de diagnóstico do virus: detecção RNA por PCR; detecção antígenos virais ; detecção de anticorpos totais ou bem detecção de anticorpos IGM ou bem IGG. As provas de Ag so dão positivas com cargas virais altas, as probas IGM podem durar mais tempo, e na fase clinica de 8 a 14 dias existem doentes que possuem anticorpos com probas PCR negativas.
    Agora falamos de doentes com quadros clinicos leves sem critérios de internamento no hospital, graves com internamento no hospital e em unidades especializadas do mesmo. a clinica não é suficiente e devemos dispor de probas laboratoriais robustas - técnicas PCR ou AG, anticorpos totais , IGM e IGG e face-las conjuntamente.

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    1. Obrigado pelo seu comentário. Acho que vivemos tempos de conclusões demasiado apressadas e invenção de conceitos e cirtérios de última hora. Uma coisa é ser um vírus novo, outra dizer seja o que for sobre ele. Nos meus tempos de geografia no liceu um planalto era um sítio alto a seguir a uma planície, tipo meseta ibérica...

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  2. Apreciei o seu texto e a forma como selecionou os diferentes valores relativos ao covid19 que se encontram disponíveis em vários sitios. Hoje, 18 de Abril, os lugares que Portugal ocupava aquando do seu post (casos por milhão e mortes por milhão) são já bastante mais favoráveis. Penso que isso se deve ao facto de que muitos países mais fora do eixo (Itália, Espanha, França, UK, só agora estão a sofrer o real efeito da pandemia. Vidé USA, Brasil, Canadá ou até Irlanda. Faltou referir quais as cidades com ligações directas a Wuhan, (Milão e Londres) mais as suas enormes interacções com Bruxelas, Paris, Berlin, Madrid, no centro do tecido da União Europeia. Foram, quanto a mim, um factor de enorme importância na disseminação dos contágios.
    Por fim, acho que poderia ter referido que Portugal está no podium dos países que mais testes fazem no mundo (valores por milhão) e que por essa razão aparece com tantos casos declarados. Sobre a morbilidade, entendo que o nosso actual 19 lugar (considerando na amostra também os pequenos países tipo... Luxemburgo) é ainda assim honroso e aproximando-se da Áustria, Alemanha e Dinamarca.
    Nota - Estou completamente de acordo consigo quanto à quase boçalidade das redacções das nossos meios de comunicação social.
    E. Paulino

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    1. Caro E. Paulino, Obrigado pelo seu comentário. Como poderá constatar, este é um blog genérico, ou seja, não tem a intenção nem a finalidade de publicar textos técnicos. Mesmo assim, Os Dias Contados, já é demasiado longo (3 páginas A4), recorre a demasiados números e explanações técnico/epidemiológicas que tentei, na medida do possível, desdobrar em linguagem comum, para poder ser percebido por todos os que habitualmente me leem. Isto para chegar a que muita coisa ficou por dizer sobre o assunto, a finalidade foi mesmo recentrar a realidade do país face a um optimismo excessivo que, numa situação como a que se vive, pode ser perigoso pelo abrandamento precoce de medidas.
      Propositadamente, escolhi apenas dimensões e indicadores seguros, fixos e comparáveis: número casos/habitante e mortos/habitante, e deixei de fora do pódio os pequenos países (quer o número de casos, quer a população total, quer o número de mortos são demasiado pequenos e qualquer variação resulta em mudanças radicais na lista de posicionamento mundial. O meu critério de cut-off neste caso foram os 4 milhões de habitantes). Do mesmo modo, por instabilidade de critérios e logo difícil comparação, deixei de fora o 'número de testes', pois desconhece-se o que leva um país a fazer testes e outro não, a quem (critério de selecção), quantas vezes o teste foi feito à mesma pessoa, etc.
      E depois, como também diz, a situação é volátil, muda diariamente. A de Portugal, desde o meu post, não mudou para melhor: o número de casos subiu de 1.848 para 1.982 por milhão de habitantes e o número de mortos de 62 para 70 por milhão. Apenas em 3 dias. Tudo de bom para si e para os seus.

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