Istambul, 25 de Setembro
Dormi como
um justo e, como nos deitámos cedo, às sete horas já estávamos a pé. Fomos logo
à polícia comunicar o desaparecimento das mochilas, mas ainda está fechada. Na
rua, um frio de rachar e nós para ali embrulhados nos cobertores da nossa cama,
que, acabámos de decidir, surripiaremos para continuar viagem caso as mochilas
e os casacos não apareçam.
Às nove
horas o Rui e o Des voltaram à polícia e eu fiquei sentado numa saliência da
frontaria do hotel feito vigilante, pois pode ser que apareça por ali alguém da
nossa camioneta. É que o Lâle Pudding Shop tem porta pegada à entrada do
Güngör, nesse particular não podíamos ter escolhido melhor ninho. Aqui estou,
enrolado num cobertor de papa cinzento, olhando, esquecido, o símbolo hippie da paz que abrilhanta a placa de
néon rectangular, verde e com letras em amarelo, que identifica o hotel. Dois
ou três gatos, cheios de mazelas e com as costelas a rebentar a pele sarnosa dos
lombos, aproximam-se e roçam-se pelas minhas pernas. Enxoto-os, não quero que
contagiem o miserável rei dos gatos de Istambul, que é como me sinto. Na
fachada do hotel há também um placard que publicita as comodidades do nosso
palácio: limpo, confortável, água quente,
preço normal e dispondo de aquecimento
central.
Os outros não
voltam, fiquei de esperar por eles para irmos comer alguma coisa, o estômago
ronrona-me como os cabrões dos gatos que engraçaram comigo e não me largam!
Levanto-me, entro no hotel; ao lado do minúsculo balcão da recepção há uma sala
com uma enorme janela – antes uma montra – de cujo pano de vidro também se vê a
porta do Lâle. Nessa sala há sempre
música e, ao menos, estarei a coberto dos gatos e da morrinha que começou a
cair.
Ao balcão da
recepção, de costas para a porta, julgo reconhecer uma silhueta: um tipo de
fato de ganga e uma saca de sarja, com Atenas
estampado, a tiracolo. Aquele Atenas,
acho que reconheço aquela saca... É ele, é um dos gajos da nossa camioneta!
Abordo-o e diz-me, tão satisfeito quanto eu, que ele e os outros têm guardadas,
no hotel em que ficaram, todas as nossas coisas; que esperaram duas horas por
nós na central de camionagem. Arrasto-o à polícia, onde os outros dois ainda
aguardam ser atendidos.
Vamos ao
hotel deles que, afinal, é relativamente próximo do nosso e está tudo lá, mesmo
o cachimbo do Rui, que ficara esquecido na rede contentora que existia nas
costas de cada assento... Decididamente aquele ramalhete de tipos (o alemão, o
australiano, os americanos) foi magnânimo com os novatos: depois de uma viagem
de trinta horas secaram duas horas por gajos que mal conheciam; acarretaram,
para além das deles, mais três mochilas e uma braçada de casacos. Com um
sorriso compassivo, o alemão adverte:
– Segunda lição, meu, não contes com uma terceira...
Despedimo-nos,
agradecidos, e pela primeira vez sinto o peso da mochila como uma carga
reconfortante.
Sim, o nosso
hotel tem hot water, mas paga-se
por isso, para que jorre devem-se meter liras numa ranhura que há por baixo do
cilindro. De qualquer modo estamos imundos, a precisar de mudar de roupa e de
um conforto e, sem ninguém se aperceber, tomámos os dois chuveiro pelo preço de
um.
À tarde
fomos espreitar a Mesquita Azul, sapatos à porta. Nunca tinha entrado numa
mesquita, a experiência tocou-me. Esplêndida, imensa, não há estátuas nem
altares, apenas uma maré de tapetes felpudos cobre o chão e é neles que os
fieis se prostram numa sincronia que percorre a nave como o vento uma seara.
Assistimos à cerimónia, forte pelo silêncio e pela paz que transmitia. Esse
silêncio contagiou-nos na volta longa que demos pelas margens do Bósforo: do
outro lado é a Ásia. Será que hoje é Domingo? O tom geral da cidade parece como
tal, embora aqui o ser Domingo não tenha significado religioso. Mas talvez
tenha significado urbano... Sem motivo aparente, no meio de uma rua, uma
miudinha turca dos seus cinco anos aproximou-se e ofereceu-me um ramo de
flores, sem dizer uma palavra e sem esperar nada em troca, pois logo se
afastou.
Regressámos
ao hotel e fomos em busca de comida com o Des e com outro inglês que apareceu,
também ele de Manchester. Depois demorámo-nos num café, a tomar chá e a conversar.
Aqui bebe-se imenso chá, que já chega à mesa demasiado açucarado e fazendo
companhia a um copo de água que também ninguém encomendou. O café é sombrio e
acolhedor, as mesas são de mármore com ourela em madeira escura e os clientes,
sobretudo velhotes, acenam-nos delicadamente com as cabeças brancas quando
levantam os olhos das peças de dominó e dos tabuleiros de damas.
O Rui ataca
o cachimbo com Three Nuns e solta
baforadas aromáticas; o Des lê, eu escrevo para casa nas costas de uma vista de
Santa Sofia. É um postal histórico, a
famosa comunicação de que consegui romper a profecia: já estou para além
da Grécia! No entanto, as linhas não fazem alarde do sucesso, limitam-se às
fórmulas habituais de um postal em férias: o tempo está bom, nós também; Istambul
é uma cidade enorme, e as pessoas afáveis. Beijos para todos.
Imagens, cima para baixo: (1) © Pedro Serrano, Grécia 2014, (2) e (3) fotógrafos desconhecidos [imagens obtidas na Internet]
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