14 maio 2015

NÃO VENHAS TARDE: 15. BEIJOS PARA TODOS

Istambul, 25 de Setembro
Dormi como um justo e, como nos deitámos cedo, às sete horas já estávamos a pé. Fomos logo à polícia comunicar o desaparecimento das mochilas, mas ainda está fechada. Na rua, um frio de rachar e nós para ali embrulhados nos cobertores da nossa cama, que, acabámos de decidir, surripiaremos para continuar viagem caso as mochilas e os casacos não apareçam.
Às nove horas o Rui e o Des voltaram à polícia e eu fiquei sentado numa saliência da frontaria do hotel feito vigilante, pois pode ser que apareça por ali alguém da nossa camioneta. É que o Lâle Pudding Shop tem porta pegada à entrada do Güngör, nesse particular não podíamos ter escolhido melhor ninho. Aqui estou, enrolado num cobertor de papa cinzento, olhando, esquecido, o símbolo hippie da paz que abrilhanta a placa de néon rectangular, verde e com letras em amarelo, que identifica o hotel. Dois ou três gatos, cheios de mazelas e com as costelas a rebentar a pele sarnosa dos lombos, aproximam-se e roçam-se pelas minhas pernas. Enxoto-os, não quero que contagiem o miserável rei dos gatos de Istambul, que é como me sinto. Na fachada do hotel há também um placard que publicita as comodidades do nosso palácio: limpo, confortável, água quente, preço normal e dispondo de aquecimento central.
Os outros não voltam, fiquei de esperar por eles para irmos comer alguma coisa, o estômago ronrona-me como os cabrões dos gatos que engraçaram comigo e não me largam! Levanto-me, entro no hotel; ao lado do minúsculo balcão da recepção há uma sala com uma enorme janela – antes uma montra – de cujo pano de vidro também se vê a porta do Lâle. Nessa sala há sempre música e, ao menos, estarei a coberto dos gatos e da morrinha que começou a cair.
Ao balcão da recepção, de costas para a porta, julgo reconhecer uma silhueta: um tipo de fato de ganga e uma saca de sarja, com Atenas estampado, a tiracolo. Aquele Atenas, acho que reconheço aquela saca... É ele, é um dos gajos da nossa camioneta! Abordo-o e diz-me, tão satisfeito quanto eu, que ele e os outros têm guardadas, no hotel em que ficaram, todas as nossas coisas; que esperaram duas horas por nós na central de camionagem. Arrasto-o à polícia, onde os outros dois ainda aguardam ser atendidos.
Vamos ao hotel deles que, afinal, é relativamente próximo do nosso e está tudo lá, mesmo o cachimbo do Rui, que ficara esquecido na rede contentora que existia nas costas de cada assento... Decididamente aquele ramalhete de tipos (o alemão, o australiano, os americanos) foi magnânimo com os novatos: depois de uma viagem de trinta horas secaram duas horas por gajos que mal conheciam; acarretaram, para além das deles, mais três mochilas e uma braçada de casacos. Com um sorriso compassivo, o alemão adverte:
Segunda lição, meu, não contes com uma terceira...
Despedimo-nos, agradecidos, e pela primeira vez sinto o peso da mochila como uma carga reconfortante.
Sim, o nosso hotel tem hot water, mas paga-se por isso, para que jorre devem-se meter liras numa ranhura que há por baixo do cilindro. De qualquer modo estamos imundos, a precisar de mudar de roupa e de um conforto e, sem ninguém se aperceber, tomámos os dois chuveiro pelo preço de um.
À tarde fomos espreitar a Mesquita Azul, sapatos à porta. Nunca tinha entrado numa mesquita, a experiência tocou-me. Esplêndida, imensa, não há estátuas nem altares, apenas uma maré de tapetes felpudos cobre o chão e é neles que os fieis se prostram numa sincronia que percorre a nave como o vento uma seara. Assistimos à cerimónia, forte pelo silêncio e pela paz que transmitia. Esse silêncio contagiou-nos na volta longa que demos pelas margens do Bósforo: do outro lado é a Ásia. Será que hoje é Domingo? O tom geral da cidade parece como tal, embora aqui o ser Domingo não tenha significado religioso. Mas talvez tenha significado urbano... Sem motivo aparente, no meio de uma rua, uma miudinha turca dos seus cinco anos aproximou-se e ofereceu-me um ramo de flores, sem dizer uma palavra e sem esperar nada em troca, pois logo se afastou.
Regressámos ao hotel e fomos em busca de comida com o Des e com outro inglês que apareceu, também ele de Manchester. Depois demorámo-nos num café, a tomar chá e a conversar. Aqui bebe-se imenso chá, que já chega à mesa demasiado açucarado e fazendo companhia a um copo de água que também ninguém encomendou. O café é sombrio e acolhedor, as mesas são de mármore com ourela em madeira escura e os clientes, sobretudo velhotes, acenam-nos delicadamente com as cabeças brancas quando levantam os olhos das peças de dominó e dos tabuleiros de damas.
O Rui ataca o cachimbo com Three Nuns e solta baforadas aromáticas; o Des lê, eu escrevo para casa nas costas de uma vista de Santa Sofia. É um postal histórico, a  famosa comunicação de que consegui romper a profecia: já estou para além da Grécia! No entanto, as linhas não fazem alarde do sucesso, limitam-se às fórmulas habituais de um postal em férias: o tempo está bom, nós também; Istambul é uma cidade enorme, e as pessoas afáveis. Beijos para todos.
Imagens, cima para baixo: (1) © Pedro Serrano, Grécia 2014, (2) e (3) fotógrafos desconhecidos [imagens obtidas na Internet]



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