Usando
os vários afluentes da autoestrada, chego, sem esforço, de minha casa a Óbidos
em vinte minutos. Óbidos é uma vila com pouco mais de 2.000 habitantes e tem
três livrarias. Mantendo a lógica da proporção livraria por habitante, Lisboa
deveria contar com 720 livrarias e Viseu com 150! Esta espantosa situação da
vila fortificada deve-se ao facto de uma livraria de Lisboa, a Ler Devagar, se ter arrojado – com o
apoio municipal, claro – a instituir Óbidos como uma espécie de capital da
cultura livreira. Deus os proteja a todos, apetece dizer, e os mantenha à
distância do sucedâneo do Ministério da Cultura, entretido a ver se pode ou não
vender Mirós à peça ou distraído a transformar o Museu dos Coches num deserto
com carruagens mas sem outro orçamento senão o proporcionado pelos camelos do
costume.
Voltando
às livrarias de Óbidos: uma delas, logo à entrada da vila, está instalada numa antiga
adega e oferece uma combinação de livros novos e usados; pode-se também trincar
por ali qualquer coisa, como sandes de presunto ou bruschettas e o wifi é
grátis. A meio da rua principal da vila está a segunda, esta instalada numa
velha mercearia, caixotes de madeira de transporte de víveres servem de
estantes e esta livraria que vende livros usados, tem, aliás, o ar sombrio e
poeirento de alfarrábio de uma qualquer Pérola
de Óbidos: Mercearia Fina. Finalmente, a terceira loja, está lá ao fundo da
rua, ao cimo das escadaria, instalada numa igreja, e as estantes sobem quase
até aos céus, como o nosso espanto. Este derradeiro templo da leitura vende,
praticamente em exclusivo, livros novos e ali pode encontrar o que se encontra
numa qualquer FNAC ou Bertrand de Lisboa, talvez até com maior riqueza na
oferta.
Pois
no outro dia comprei numa delas uma edição em segunda-mão dos Contos de Eça de Queiroz, uma obra que
me apeteceu rever após ter lido o Diário
Íntimo de Carlos da Maia, de A. Campos Matos (edições Colibri, 2014), uma
interessante efabulação sobre o que poderia suceder se Carlos da Maia – um dos
personagens centrais do Os Maias –
durasse até aos anos 30 do século XX e se tivesse dado ao esforço de escrever
um diário desde a última vez que o vimos com João da Ega, correndo à luz da lua
para apanhar um eléctrico.
O
livro que trouxe comigo pertencera a uma senhora e, na sua assinatura, os t eram como as cruzes em que o ramo
deitado coroa o ramo vertical sem se cruzar com este; à secante prefere-se a
tangente. O volume inicia-se pelo conto Singularidades
de Uma Rapariga Loura e foi com grande prazer que deambulei pelos
pormenores da história e pelo génio de Eça, sempre tão irónico e cáustico no desenho
dos personagens que uma pessoa se mantém, em permanência, a sorrir para dentro
de deleite.
A
páginas tantas, estava entretido no terceiro conto, encontrei uma flor entalada
entre duas folhas, o que não é raro suceder em livros. Pobre florzinha, tinha o
castanho da secura estival e o emurchecimento merencório das feminilidades
esquecidas. Continuei a leitura e, eis que, não muito depois, num conto que
referia aves, encontrei uma pequena pena, macia, de delicadas tonalidades, com
aqueles detalhes de beleza que só se nos revelam quando os acontecimentos se
isolam perante os nossos olhos distraídos. Aí, como que fui iluminado por um
lampejo, uma queda na simetria, e regressei à página onde encontrara a flor: na
página em questão Eça falava de flores, e eu estava perante um padrão de
associação temática entre o autor e o seu leitor. Revigorado, como que
iluminado por dentro, abdicando da serenidade em esperar o que um virar de
páginas, submetido à estrita lógica da progressão da leitura, me poderia revelar,
pus-me, como o leitor impaciente de um qualquer policial, a folhear o livro em
busca de novas surpresas que confirmassem e engrossassem os indícios
anteriores.
E eis que no conto Adão
e Eva no Paraíso, nas páginas que o autor dedica à descrição anatómica
pormenorizada da fase impúdica e desnuda dos nossos pais primevos, dou de caras
com um encaracolado e destingido pêlo púbico. Mas após o prazer da nova revelação,
da confirmação da minha teoria de que a leitora ilustrava o autor, ficou-me,
restou-me, uma dúvida, para sempre por esclarecer: será que aquele solitário e descolorido
caracol se anemizara, entre páginas, sob a inclemência do tempo que passa e
tudo desvanece ou, pelo contrário, ficava a dever a sua morfologia pálida às singularidades de uma
rapariga loura?
© Digitalizações de Pedro Serrano.
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