No renque de
discos que o Rui tem no quarto, enfileirados sob a janela com vista para o
pináculo neogótico da igreja do Marquês, há um que destoa na maioria rock,
Motown e música clássica que ele foi comprando ou tomando de empréstimo.
Suponho que o disco de que falo terá migrado da colecção de discos dos pais
dele, pois é um vinil antiquado, grosso e rígido, de capa a preto-e-branco onde
se empoleiram para o retrato quatro tipos de laço, casaco com debrum e
brilhantina no penteado. O grupo chama-se Four Lads, são canadianos e no ano de
1953, ano em que eu nasci e o Rui gatinhava, fizeram sucesso mundial com uma
canção chamada “Istambul (Not Constantinople)”, uma música que parodia a
mudança de nome da capital do Império Bizantino (Constantinopla), ocorrida em
1930.
Ambos
adoramos a canção, a letra e o swing,
e era nossa intenção entrar em Istambul entoando-a:
Istanbul was Constantinople
Now it's Istanbul, not Constantinople
Been a long time gone, Constantinople
Now it's Turkish delight on a moonlit
night
Mas agora
estamos a mais de 100 km de Istambul e o nosso transporte arrancou para
Constantinopla sem nós, mas com as nossas mochilas a bordo! Menos mal que os
passaportes e o dinheiro se aconchegam, seguros, nos bolsos secretos dos jeans.
Passado o
choque inicial, expelido o primeiro e derradeiro “estamos fodidos”, subimos
para uma camioneta local que partia para Istambul. Para além de nós os três, só
mais quatro indígenas seguem na camionete. Por gestos, uma vez que nenhum fala
uma palavra seja do que for em língua que se entenda a Ocidente, conseguimos
explicar o que se tinha passado, o que muito divertiu o condutor e os três
turcos que, sempre em pé, se acumulam em volta dele e ficaram encantados com a
missão detectivesca que lhes tombara do céu. Campos de girassóis sem fim
deslizam de um lado e outro da estrada e, agora, surge o Adriático à nossa
direita. Mas, no interior da camionete, a conversa prossegue, pois os
autóctones estão interessadíssimos em nós: um deles sabe de futebol e desfila
os nomes de José Augusto, Torres, Eusébio e por aí fora. Esgotado o futebol,
seguiu-se, entre risos hilares, o sexo e os equivalentes de “foder” em
múltiplas línguas. Quanto a nós, tomados por uma atenção expectante eléctrica,
vamos julgando ver a nossa camioneta em várias com quem nos cruzámos. Mas,
afinal, não era ela e os nossos hospedeiros acenam que não nos preocupemos, que
havemos de os encontrar: agora querem saber os nossos nomes e se temos moedas
dos nossos países que lhes possamos ofertar. Apertos de mão para firmar a
amizade, sustidos por francas gargalhadas de prazer da parte deles, dado que o
nosso humor vai da cor dos girassóis.
Torres, Eusébio, José Augusto. |
Finalmente,
e devemos estar apenas a uns vinte quilómetros de Istambul, é com ela mesmo que
nos cruzamos e acenámos, felizes, para os conhecidos que, por sua vez, nos
saúdam freneticamente do lado de lá dos vidros. Mas, depois de uma troca de
palavras em turco entre janelas, acabámos por não parar e mudar de transporte,
pois o nosso condutor – suponho que desejoso de nos manter o tempo que puder –
informa que ambas as camionetas terminam o trajecto na mesma estação em
Istambul. Assim seja, mas eu teria preferido mudar logo ali.
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