Uma vez que
tenho falado bastante dele e vou, certamente, voltar a falar, O I Ching [1],
para quem possa não saber, é um oráculo sob a forma de livro. Para se aceder às
suas respostas o método é bastante simples, o problema é mais o partido a
extrair do que nos é respondido. O I
Ching, também conhecido como Livro
das Mutações, é um oráculo chinês, a sua origem pode ser traçada até ao
terceiro milénio antes de Cristo e condensa em si um complexo sistema, ao mesmo
tempo pragmático e filosófico, simultaneamente estático e evolutivo, de
conhecimento.
Para a
consulta usam-se três moedas do mesmo tamanho (o Rui, por uma questão de
respeito – penso eu – usa sempre as mesmas, portuguesas, que guarda num
saquinho de pano), moedas que se embalam numa mão fechada enquanto a mente se
concentra na pergunta para a qual se deseja esclarecimento. Como se fossem
dados, as moedas são lançadas sobre uma superfície plana e observa-se a
combinação de caras ou coroas que se organizou. A cada uma das combinações das
três moedas corresponde uma linha, contínua (_____) ou quebrada (__ __),
cujo traçado se regista num papel. Repete-se este lançamento mais cinco vezes,
o espírito concentrado em contínuo na pergunta inicial, e assentam-se num
papel, de baixo para cima, as linhas correspondentes. Obtém-se assim uma imagem
com seis linhas e depois basta consultar o livro e procurar a que número
corresponde esse hexagrama. Para cada um dos 64 hexagramas possíveis há um
texto explicativo do seu significado, o qual discorre sobre o estado actual da
nossa situação e a sua possível evolução.
Mas se até
aqui tudo parece fácil (devo dizer que o resumo que aqui faço do I Ching quase me aperta o coração de tão
rudimentar), a dificuldade surge com a interpretação da resposta que nos saiu
em sorte. Ela pode parecer-nos desde muito cristalina e totalmente certeira ou,
pelo contrário, totalmente incompreensível por se afigurar desadequada à
pergunta formulada; ou, talvez o mais comum, pode suceder que só a percebamos
mais tarde, após reflectir no contexto mais alargado da situação em que foi
feita a consulta. Por vezes, só posteriores hexagramas, saídos em torno da
mesma questão, permitem lançar luz sobre o assunto, e, em não poucas ocasiões,
a resposta assume tom irónico... Como a nossa da Loucura Juvenil que, no seu silêncio gritante, tinha o seu quê de
“cresce e aparece”, o seu quê de “oh, menino, nunca hás-de passar da Grécia.”
23 de Setembro
Dormi
pessimamente: mosquitos, velhos fantasmas; a preocupação de ter de acordar às
cinco e meia da manhã, sem despertador, para apanhar uma camioneta.
De cansaço,
dormi o terço deste primeiro dia de viagem, o resto do tempo entretive-o a
olhar a paisagem e os passageiros. O Alentejo, a serra Algarvia, eis como se
poderia resumir a paisagem do sul da Grécia: terra árida, ou de pedraço à vista
ou de vegetação rasa crestada pelo sol impiedoso; quando há árvores reconheço
oliveiras, espinheiros, e as vagens encarquilhadas e pendentes das
alfarrobeiras. À medida que caminhamos para norte a paisagem enverdece e tudo
toma um aspecto menos causticado. A camionete vai quase vazia e, para além de
nós, dois ou três gregos; um que nos parece turco; um inglês e um grupinho de
americanos bastante irritante, com aquela pose que os americanos podem ter de
quem está sempre em vantagem, em casa, o que lhes muda é apenas o exotismo da
paisagem que em tudo se disporá para os satisfazer. Descobrimos que o inglês,
tal como nós, vai por terra para a Índia e combinámos falar melhor à noite,
quando a camionete parar; a partir daí o sujeito passou a observar-nos
atentamente.
Para o fim
da tarde, cabeceava eu contra o vidro, começou a chover e em Tessalónica, uma
cidade grande, entrou muita gente, o que animou o ambiente mortiço. Cenas como
americanos e gregos a jogar cartas sobre uma mala tornaram-se naturais. E eis
que surge o mar e o seu aroma, invadindo a terra, invadindo-nos a nós. É o mar
Egeu e Samotrácia, a pequena ilha da estátua alada, não é muito longe na curva
da estrada marginal.
Anoitece
quando, às sete, entrámos em Kavala, uma cidade portuária no norte da Grécia,
onde ficaremos até à manhã seguinte. Ficámos a saber, em primeira mão, que não
nos será permitido dormir na camionete nem aí deixar os nossos pertences, ou
seja: uma óptima maneira de tentarem estimular a hotelaria da Macedónia. Um
magote de passageiros, inclusive os americanos, reagiu às restrições, de modo
que, na companhia enfastiada do motorista, nos pusemos à procura de um poiso
grátis. Encontrámo-lo num grande edifício em construção, talvez um liceu, e, no
seu interior de cimento cru, tábuas de cofragem e ferro à vista, numa sala
imensa com uma espécie de estrado de betão ao fundo. Foi aí, nesse palco
inacabado, que, sem palavras ou acertos, todos começaram a dispor os acessórios
para dormir, pois que talvez o ser alteado em relação ao resto do espaço e não
ter acesso pelas traseiras nos tenha transmitido uma sensação automática de
segurança.
O Rui, o
inglês, eu e o ‘turco’ (que afinal é cidadão de Bagdade e mecânico de
automóveis) saímos para comer alguma coisa. O iraquiano, para além de
praticamente não falar inglês, é um tipo estranho, desconfiado, com uma
personalidade oleosa que não me faz confiar nele. Quanto a Desmond, o inglês,
estudou budismo-zen numa universidade e, em ar muito misterioso, confiou-nos
pertencer aos Rosa-Cruz, uma confraria hermética de inspiração cristã. Vai para
a Índia, donde segue para a Austrália ter com os pais, que vivem por lá. Bem, o
tipo está de tal modo interessado nas mesmas coisas que nós que combinámos logo
ali, perante o ar abstracto do iraquiano, seguir juntos pelo menos até ao
Paquistão. Resolvemos consultar o I Ching
sobre este pacto e Des lançou os escudos portugueses com uma concentração de habitué: Hexagrama 45 (Ts’ui), O Agrupamento, o oráculo manda dizer que
apareceriam convidados, que seríamos três!
De súbito a
noite tomou um aspecto mágico e fiquei tão excitado com a torrente de
acontecimentos e zumbidos de energias que, quando às nove horas voltámos ao
‘hotel’, não consegui adormecer. O imprevisível passa a real sem nos dar tempo
para respirar! Em cima do palco, à luz duma vela, uns sentados em caixotes,
outros estendidos nos sacos-cama, meia-dúzia dos nosso colegas de viagem
conversam sobre expedições à Índia, à Amazónia, à Austrália, as suas sombras
gigantescas projectadas na parede ao fundo, onde deveria estar o lençol do
ecrã... A imaginada noite dos westerns,
ao vivo. Tão emocionante que, quando o ambiente esmoreceu, eu não esmoreci com
ele e tive de me levantar, vir escrever para um café. Lá fora a noite está
mergulhada em bruma, translúcida como o ouzo
que escorropicho e que se volve alaranjada na zona da montra do café; a
atmosfera é portuária como num romance do Camus. Passa da meia-noite e, fechado
o caderno, estive a ver um pedaço da velhinha série do O Santo numa TV a preto e branco. Por Alá, que já estamos perto da
sua área de influência, como pude eu um dia gostar daquilo?
Saímos daqui
às cinco da madrugada e pelas quatro da tarde chegaremos a Istambul, a porta da
Ásia.
Entrei para
o autocarro ressacado pelos mosquitos, pelo chão duro, por aquela semi-vigília
em que se transforma o sono quando dormimos na companhia de outros em quem não
confiámos plenamente. Mas, pontual, o sol nasceu e pintou de malva, rosa e ouro
o céu e as águas de um lago onde nadam patos e, em trajectórias suicidas,
mergulham a pique aves de grande porte. Que é aquilo, pergunto, virado para
trás, entusiasmado pela beleza. Indiferente, um grego informa que é o lago
Vistonida. Será...
Lago Vistonida |
Ipsala,
fronteira entre a Grécia e a Turquia. Duas horas para atravessar uns metros! Do
lado grego vasculharam as malas dos turcos e nem tocaram nas nossas; do lado
turco vasculharam as bagagens dos gregos e nem tocaram nas nossas. Esta cena
patética tem uma ridícula razão de ser: os gregos e os turcos, tal como os
espanhóis e os portugueses, os ingleses e os franceses, os brasileiros e os
argentinos, odeiam-se com sinceridade. É uma coisa de vizinhos. As guerras
entre turcos e gregos sucederam-se ao longo dos séculos e, há precisamente dois
anos, em 1974, sem aviso, a Turquia invadiu Chipre, em resposta a um golpe
militar na ilha apoiado pela ditadura militar grega. Acontece que oitenta por
cento da população cipriota é de origem grega, pelo que se pode imaginar as
relações de boa-vizinhança com a nova e autoproclamada República Turca de Chipre
do Norte. Tudo isto se reflecte no rigor com que os funcionários alfandegários
esmiúçam a roupa suja de quem chega e de quem parte; mas, apesar de os Estados
Unidos e da NATO terem apoiado a ideia da invasão turca, nem os americanos nem
nenhum dos europeus do norte viu as mochilas ou os sacos remexidos.
Dado que
nada se perde e tudo se transforma, o tempo de espera foi útil para estreitar
relações com os americanos e australianos que seguem a mesma rota que nós.
Criou-se uma morna solidariedade que se traduziu na vigilância mútua de
bagagens, troca de pequenas informações, procura dos passaportes uns dos outros
retidos nas instalações da alfândega. Como analisou um alemão que segue
connosco, e que aparenta a tranquilidade indiferente de quem já deu a volta ao
mundo várias vezes, o Rui teria aí a sua first
lesson, pois os turcos confiam tanto nos gregos que a camioneta e o
condutor que nos leva da fronteira até Istambul não são os mesmos que nos
trouxeram de Atenas. Resultado: um livro querido, que ele deixara encafuado na
rede que existe nas costas de cada assento, quedou-se esquecido na Grécia, e já
nada havia a fazer, uma vez que agora estávamos irremediavelmente em território
turco.
A nossa
segunda lição surgiu poucas horas depois, a pouco mais de uma centena de
quilómetros de Istambul, ao pararmos para comer num lugarejo chamado Marmara
Ereğlisi. O condutor estabeleceu como “1 hora” o tempo de paragem e nós os dois
e o Des partimos num reconhecimento desentorpecedor pela localidade onde, pela
primeira vez, experimentámos regatear o preço de um pão e de um melão. É
realmente verdade aquilo que se diz de que, daqui para a frente, se devem
discutir os preços de tudo: não só se conseguem comprar as coisas pela metade
(ou menos) do preço inicialmente pedido como os vendedores se pelam pelo
processo e, dizem-nos, nutrem altivo desdém por turistas que pagam de imediato
o que lhes é extorquido, encurtando indecentemente o tempo da transacção e o
prazer do regateio!
Cerca de
quarenta minutos depois regressámos ao local onde a camionete ficara
estacionada para descobrirmos que já partira para Istambul.
[1] I Ching: or book of changes (traduzido
do chinês por Richard Wilhelm, com prefácio de Carl Jung), editado por
Routledge, 3rd ed., Londres, 1968. Esta é, talvez, a mais clássica e famosa
versão moderna do I Ching e a que
usámos durante a viagem.
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