Já notaram o estado das palmeiras do
nosso país? Quase concluo ser impossível não terem reparado, de tal modo o
espectáculo é generalizado, despenteado e pungente. Por todo o lado, de Faro a
Viana do Castelo, o olhar tropeça-nos em tocos sem ramos, em restos de árvore
com as – uma vez majestosas – copas descaídas num desalento cor de mato seco
onde outrora morava um verde brilhante e orgulhoso. Pobres árvores.
Tudo isto começou de sul para norte,
graças a um escaravelho importado de África, via Madeira ao que ouço dizer. O
escaravelho, um bicho voador de tamanho impressionante (será 5 ou 6 vezes maior
do que o escaravelho da batata) e nitidamente um ser de outras paragens, põe os
ovos numa toca que escava no topo da palmeira – a sua parte mais tenra e viva –
e daí nascem umas larvas, enormes, com um ar tenebrosamente alienígena que se
vão alimentando do miolo da árvore, transformando a polpa viva numa nojenta pasta
alaranjada. Finalmente, as larvas preparam o seu sono de beleza envolvendo-se
num casulo finamente tecido com fibra de palmeira, até estarem prontas para
eclodir e se metamorfosearem no escaravelho de que falámos. E o ciclo repete-se,
ao ritmo do declínio das palmeiras.
Em Espanha, o país organizou-se para
enfrentar o problema e proteger as palmeiras, pois a praga é de potência e
progressão assustadora: há organizações públicas que lidam com o assunto a
nível regional e local, produz-se investigação operacional sobre o melhor modo
de combater a praga. O que fazer para prevenir a contaminação? Como tratar uma
árvore já infectada? Como lutar contra escaravelho e larvas? Quais são as
soluções químicas e as abordagens biológicas possíveis?
Tenho em minha casa uma palmeira, uma
única, comprada há cerca de vinte e cinco anos num vasinho, quando era uma planta
pequenina com dois palmos de altura. E sob o meu olhar, o olhar do meu filho e
de quem me visitava, a palmeira foi crescendo, tornou-se referência quando
pretendo indicar onde moro: “é uma casa com uma palmeira grande, vai vê-la logo
quando entrar na rua...” Sim, avista-se bem nos seus nove ou dez metros de
altura, na sua pose de quem ninguém a arreda dali, uma imortalidade vegetal...
Mas um dia, ao fazer de carro o
trajecto de Lisboa para casa, dei-me conta que ao longo do caminho era uma
mortandade de palmeiras doentes, que na própria localidade onde moro, quase à
esquina da minha rua, havia árvores atacadas, desfiguradas. Cá de baixo, num
pescoço torcido e ansioso, estudei com atenção a minha palmeira, em busca de
escaravelhos alaranjados, de palmas secas e descaídas... Não me parecia, assim
à vista desarmada, que estivesse atacada; mas que percebia eu da saúde das
palmeiras?
Palmeiras no Casino do Estoril (repare nos tubos ao longo do tronco). |
Primeiro, dei por mim a falar sobre
palmeiras com vizinhos e jardineiros das redondezas e o desnorteio era geral:
ninguém sabia onde ir ou o que fazer; os jardineiros eram de opinião nada haver
a fazer uma vez a palmeira atingida – só restava deixar o bicho roer todo o
miolo do tronco e fazer um vaso artístico da parte sobrante... Procurei, depois,
na internet e depressa cheguei à conclusão que não iria longe com as entidades
oficiais: é certo que poderia entrar em contacto teórico com uma direcção
regional qualquer da agricultura, uma daquelas repartições do Estado onde o
telefone toca e ninguém nunca atende... Informações ao público, sobre aquele
assunto, zero vírgula zero, como é costume. Quem raio se interessa pela merda
das palmeiras? Restou-me um site de
uma firma (de Cascais) que lidava com o assunto e que abordava e informava com
bastante detalhe quem o resolvesse ler. A firma demonstrava também a sua
experiência na matéria, ilustrando a obra feita com fotos de intervenções em vários
locais, um deles no belo palmeiral que se planta fronteiro ao Casino do
Estoril. Telefonei, a conversa foi afável, clara e esclarecedora: fiquei a
perceber os passos a dar, que não iria lá com amadorismos, e que a coisa não sairia
barata. Se a palmeira merecesse uma intervenção – primeiro era mandatório fazer
um diagnóstico do seu estado de saúde – seria necessário tratá-la durante um
ano, sem garantia total dos resultados, como acontece em qualquer doença humana
grave. E, claro, havia as deslocações, que de Cascais até minha casa, na ida e
na volta, são quase 200 km.
Suspirei fundo e decidi investir na
palmeira como se investe num familiar que está doente e a gente quer ver melhorar...
E os dois funcionários principais da firma lá apareceram no dia aprazado, uma
manhã soalheira de inverno. Mal relanceou um olhar à árvore – que já pré-observara
em fotografia que lhes enviara por mail – o homem confirmou a doença, fez-me
notar os pormenores que, vistos cá de baixo, indiciavam o mal. O passo seguinte
seria subir lá cima e avaliar a sua extensão. No começo da consulta as notícias
foram más, a árvore estava muito infectada, comentava ele do cimo da escada,
atirando, como demonstração, diversos casulos e pedaços alaranjados de uma papa
nojenta, que não era mais do que a polpa da árvore depois de sugada e mastigada
pelas larvas. Enraivecido, enquanto ele ia cortando ramos e pedaços de tronco
com uma motosserra, dez metros mais abaixo eu esventrava entre as solas dos
sapatos os casulos, observando os informes vermes acinzentados de focinho
aguçado e negro, antes de os esmagar contra o asfalto da rua.
Casulo da larva. |
Quase dois palmos de tronco foram
limpos com a motosserra e o senhor Morgado anunciou que, dali para baixo, a
árvore estava limpa e era ainda possível instituir um tratamento, pois o ponto
vital ainda não fora atingido. O que queria eu fazer?
Umas duas horas mais tarde, já a hora
do almoço roncava nos estômagos, o senhor Morgado deu por concluído o trabalho:
fora feita uma limpeza cirúrgica da árvore, aplicado um duche químico no topo
da palmeira e, nas escamas do tronco da árvore, tinham sido introduzidos
profundamente três catéteres com uma tampinha azul à superfície, tubos por onde
seria aplicada a quimioterapia, uma combinação de várias drogas cuja mistura
iria variando todos os meses, de modo a potenciar o tratamento e evitar a
resistência do bicho ao mesmo. Antes de regressar a Cascais, o senhor Morgado
deixou-me uma atraente mala térmica cheia com os frascos dos produtos químicos
a usar; contendo máscaras, luvas, seringas, todo o arsenal necessário a tratar
a palmeira ao longo de um período de doze meses. Os resultados ir-se-iam vendo,
o essencial era seguir as instruções e não deixar passar as datas da medicação.
Ele estaria à disposição, por mail e telefone, para qualquer informação, mas
achou-me suficientemente capaz para continuar a ministrar os cuidados à doente.
Poderia regressar em qualquer altura, se preciso fosse, mas 200 km, vezes x era factor a ter em conta, achava ele,
achava eu.
Isto foi em Janeiro e, religiosamente,
todos os meses, no dia apropriado, eu e o meu amigo Ricardo vamos a casa do
Luís António pedir a escada emprestada, uma grande escada, daquelas extensíveis,
quase à bombeiro. Preparamos as mistelas em grandes baldes de plástico e,
enviando-me constantes “segura bem na escada”, o Ricardo sobe os inúmeros
degraus e, em prestações vertiginosas, vai despejando os 12 litros do duche
químico no topo da palmeira. De vez em quando encontra um escaravelho moribundo,
deitado de patas para o ar no topo da palmeira, que me atira, anunciando:
“Está aqui mais um filho da puta...”
Rhynchophorus ferrugineus. |
Perguntarão os leitores: “Mas achas
que todo este esforço, dinheiro, vai valer a pena? Um ano de tratamento, sem
ter a certeza?!”
Bem, meus amigos, as pragas do Egipto também não duraram para sempre...
Bem, meus amigos, as pragas do Egipto também não duraram para sempre...
Parte nova a crescer no topo da palmeira. |
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, Praia da Areia Branca, Abril 2015; (2) Pedro Serrano, Estoril, Março 2015; (3) Pedro Serrano, Fevereiro, 2015; (4) Ricardo Ventura, Março 2015; (5) Ricardo Ventura, Maio 2015.
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