Entrámos em
Istambul e o que se segue da canção esmorece na nossa vontade de a entoar:
Every
gal in Constantinople
Lives
in Istanbul, not Constantinople
So
if you've a date in Constantinople
She'll
be waiting in Istanbul...
São seis da
tarde, cai uma chuvinha persistente, está frio e nós só com uma camisa em cima
do corpo. Na central de camionagem milhares de pessoas correm para as
camionetas com o intuito cego de as apanhar e de sair dali, abrigadas da chuva,
ao encontro de um trânsito demoníaco.
Rapidamente
tomámos consciência de que a camioneta onde seguem as nossas mochilas e os
nossos casacos não vai, afinal, para ali! O tempo passa, dezenas de camionetas
chegam continuadamente à estação, mas nenhuma é nunca a nossa.
E assim
estamos: encharcados, a tiritar de frio, sem saber para onde ir. Os
companheiros da última parte da viagem puseram-se a andar alegremente, no meio
de grandes adeuses e dentuças arregaçadas. Querem lá saber do nosso destino, já
cumprimos a nossa função no dia deles.
No frenesi
dos guichets acabámos por conseguir uma vaga indicação do local onde talvez
tenha aportado a nossa camioneta, logo saltámos para um táxi e novo inferno.
Apesar de, com grandes acenos, nos ter garantido, antes de entrarmos no
automóvel, conhecer o destino para onde
queríamos seguir, logo se vê que o taxista nem sequer percebeu o que lhe
dissemos. Não fala uma única palavra em inglês e, de vez em quando, imobiliza o
táxi e deixa o volante, sabe-se lá para ir fazer o quê! Exasperado – morríamos
de pressa em chegar ao novo local antes que a camionete e toda a gente sumisse
no nada – o Rui, sentado ao lado dele, berra-lhe a simplicidade do que
pretendemos. Um pouco mais à frente, o Rui e o Des, deixando as portas
encostadas, saem do táxi em busca de informações e eu fiquei sozinho,
esperando, alheado, no banco de trás. Eis que, num alerta galopante e roçando o
horror, me apercebo que o chauffeur fechava as portas do carro (a porta do meu
lado não abria por dentro, já o sabia por ter tentado também sair uma vez em busca
de informação) e, como se tivesse uma qualquer intenção, manobrava uma inversão
de marcha. Gritei-lhe que parasse, mas ou porque não me entendeu ou porque um
sujeito sozinho pouco lhe intimidava os planos, continuou a manobra. Rolei
banco fora, abri a porta do outro lado e atirei-me para o exterior, quase me
estatelando no asfalto. Mas melhor assim, não queria ir parar a um desconhecido
porventura ainda mais inseguro do que aquele em que nos encontrávamos.
Sem
clientes, o tipo estacionou o carro, ordeiro e confiante de que não havia outro
táxi por perto. O Des e o Rui voltaram, entrámos no táxi e continuámos em
voltas sem fito pela cidade. Quando nos mentalizámos que não íamos encontrar
camioneta nenhuma, mandámo-lo seguir para o Hotel Güngör, o local onde combináramos
(nós e mais alguns da camionete original Atenas-Istambul) ir ficar. Essa
indicação o homem conhecia, pois o Güngör é do outro lado da rua onde fica o
grande parque ajardinado da Mesquita Azul e mesmo pegado ao famoso Lâle Pudding
Shop, o Piolho lá do sítio, o café
aonde se pode encontrar toda a gente em trânsito por Istambul.

Na Turquia a
moeda muda de dracmas para liras (nesses dias cada lira valia 2 escudos
portugueses: 1 cêntimo de euro) e o homem do táxi, possivelmente tão exasperado
connosco como nós com ele, quer levar-nos 100 liras em vez das 30 inicialmente
acordadas. Recusámo-nos a pagar, saímos porta fora, e ele entrou pelo Lâle
Pudding Shop perdigotando as nossas costas. Um sujeito simpático que estava no
café, turco mas falando inglês, serviu de intermediário à contenda e acabámos
por nos livrar do pesadelo sem lhe pagar
um tusto!
No Hotel
Güngör, que de hotel, no modo como o entendemos habitualmente, tem pouco –
aquilo é apenas uma pensão e bastante rasca – a dormida vai custar-nos 20 liras
(20 cêntimos) e se é tão barata, para um pardieiro tão central, é porque a
estadia se faz em dormitórios de oito a dez pessoas. E, se queremos alojamento
para os três, vamos ter de ficar separados que aquilo está cheio.
Jantámos no Lâle, mas foi um jantar desperdiçado
pois não temos fome, o desânimo e o cansaço deram cabo do apetite. Quanto ao
café-restaurante, é um poiso de decoração bastante ocidental, cheio de hippies e freaks e onde a música de fundo consiste em Dylan e o último dos
Pink Floyd. Aqui, tal como em Portugal quando saímos, ouve-se o “Shine On You
Crazy Diamond”[1] e, à
tona da infelicidade, a música traz-me aos braços Guimarães e o pessoal de lá.
Antes de deixar o café, sem o consolo do I
Ching, que anda perdido sabe-se lá onde, tomámos uma única decisão: a de
continuarmos viagem, mesmo sem mochilas, sem casacos e em fralda de camisa.
Deitámo-nos cedo, para esquecer e tentar derreter o frio que se nos infiltrou
no corpo por termos estado tão longamente encharcados. O meu dormitório tem
cinco beliches e, felizmente, coube-me um dos de cima. O aspecto geral de dois
ou três gajos que vegetam por ali não é tranquilizador e um deles, de olhar
enevoado e ausente, cabeceia sentado, enquanto coça os braços maquinalmente.
Quero lá
saber: tapo-me até ao pescoço com o cobertor de papa, abraço-me, e adormeço
quase instantaneamente.
Fotos: Istambul, anos 70, fotógrafos desconhecidos [fotos obtidas na Internet].
Sem comentários:
Enviar um comentário