26 de Setembro, Domingo
Levantei-me
tarde mas, mesmo assim, antes dos outros, que ainda devem estar nos respectivos
dormitórios. Não gosto de me demorar no meu, com aqueles zombies que por lá
param e que nunca parecem sair dos catres; um ou outro tem mesmo pinta de
agarrado, observei um a raspar pensativamente, com uma unha comprida e
castanha, a cal da parede ao lado da cabeceira do beliche. Dizem que há quem
injecte aquela porra nas veias quando não há produto do autêntico à mão,
ouve-se até falar em quem misture maionese nos caldos intravenosos e, a ser
verdade, mais uma vantagem em se estar aqui tão vizinho do Lâle Pudding Shop.
Vim para a
sala comum esperar por eles e, ao passar pela recepção, fui perguntar que dia
da semana é hoje: é Domingo!
A sala de
estar tem um sofá e vários maples que já viram melhores dias. Há, também, um
grande móvel-rádio, daqueles muito envernizados e assentes em pernas, como se
fossem uma cómoda ou um armário de bebidas. Este está sempre sintonizado numa
estação que só passa música rock e pop. Sento-me a escrever no diário, já estou
uns dias atrasado em relação ao dia de hoje, pois a fulgurância dos
acontecimentos e das aflições dos últimos dois dias desbarataram-me a
sequência. No rádio explodem de súbito as primeiras notas da guitarra, aguda e
nostálgica, do “Europa”[1],
o último sucesso do recém-convertido ao budismo Devadip Carlos Santana, peça
instrumental que é a coqueluche deste Verão. Em Portugal não se ouvia outra
coisa antes de virmos e o inesperado de sentir o som invadir os meus ouvidos,
como uma maré-cheia, neste canto do mundo congelou-me a esferográfica sobre as
linhas do caderno.
A música,
muito dançável e com o seu quê de bolero, pontapeou-me a um fim de manhã na
Rotunda da Boavista, no Porto, em que encontrei o Miguel Lamares armado de um
sorriso superior na cara barbada, nos olhos míopes ampliados por lentes
grossas. Estamos em 1969 e o Miguel é meu colega no liceu. É um gajo enorme e
há algo nele que lembra um urso e lhe dá um toque assustador, embora seja um
tipo bonacheirão. Outra das coisas boas do Miguel, para além do disco que tem
debaixo do braço e se faz rogado em mostrar, é a irmã, a encantadora Peki, uma
miúda mais nova e de quem me tornarei amigo no início dos anos 70. Mas nessa
manhã, numa esquina da Rotunda, o Miguel pendurava no sovaco um rectângulo
esbranquiçado.
–
Se soubesses
o que tenho aqui...
–
O que é
Miguel? – digo, percebendo pelo formato que é um disco – Mostra...
–
Aposto que
nunca ouviste nada como isto – continua ele.
–
Não sei, sei
lá; se não mostras o que é...
–
Já ouviste
uma música chamada “Soul Sacrifice”...?
Confessei
que não.
–
E uma
chamada “Evil Ways”?
–
Também
não...
–
Estás
ultrapassado, merdoso – concluiu. – Isto é o que vai dar... Isto é um som totalmente novo...
Depois permitiu
que olhasse a capa do álbum, na qual um focinho arreganhado de leão se
contornava a carvão numa caricatura em que surgiam cabeças rapadas de mulher,
camufladas nos detalhes do desenho[2].
Eu já sabia que o gajo não me ia emprestar o disco, mas não desisti de tentar
perceber o que era aquilo: que raio de banda se ia chamar Santana? Até parecia coisa portuguesa, de rancho folclórico!
Santana!?
–
Se eu te
trouxer uma cassete, gravas-me isso?
- Talvez...,
respondeu.
Claro que
gravou, que o Miguel, apesar do gigantismo e dos modos ásperos, era um coração
de leão, grande e bondoso.
E foi assim
que, aos dezasseis anos, conheci aquela música que contaminava tudo quanto
conhecíamos de uma nova sonoridade que, vista de agora, não é mais do que a
música cubana invadindo o rock com a sua batida, as suas congas e o agudíssimo
solar da guitarra do Carlos Santana, um som expelido alto como o soprar dos
trompetes das bandas de música do Caribe e do México.
Entretanto
em Istambul é Domingo e as ruas estão inundadas de gente no caminho até ao lado
de lá do Bósforo, onde vamos trocar traveller’s
checks por liras. Na ponte que liga a Europa à Ásia e se deixa atravessar
em vinte minutos, se olharmos à esquerda vemos o Mar Negro e à direita o
Marmára, um mar interior que é uma espécie de filial esquecida do Mar Egeu.
À sombra da
ponte, à beira da água, estendem-se pequenos cafés onde, no regresso do banco,
nos sentamos a beber uma Coca. O modo de vestir de quem passa faz lembrar o
jeito como, em Portugal, se vestem as pessoas da aldeia quando vão à cidade,
quase todas as mulheres amarraram lenço na cabeça e os homens que as precedem
seguem aperreados em fatos sem gravata e sapatos apertados. Os que parecem ter
maior poder económico vestem-se como os ciganos ricos: de preto, a luzir de
ouro nos pulsos, nos pescoços e nos sorrisos, chapéus de aba curta e barbas
negras. Gente vestida à oriental, com longas vestes, barretinhos ou véus, quase
nenhuma. Por todo o lado se veem soldados, fardados, a passear de mãos dadas!
Já tinha reparado que, por aqui, se encontram homens a caminhar alegremente de
mãos enlaçadas, mas que a defesa nacional o faça com esta descontração é coisa
que me espanta.
Multidões
apanham barcos que acostam e partem continuamente e, à janela de pequenas camionetas,
os condutores gritam os destinos para onde se dirigem. A engrossar esta
gritaria, vendedores de água como pulgas, com bilhas à cabeça. Volteámos por
entre as bancadas onde se vende peixe frito, boiões com estranhos frutos e
conservas. Atrevemo-nos a comprar uma sanduiche com um colorido ímpar e um ar
tentador: as duas metades da baguete estão recheadas de rodelas de tomate e
verdíssimos pimentos, estreitos e compridos. Dou uma primeira dentada e a minha
boca explode em chamas que só acalmam um pouco uns bons copos de água mais
tarde e sob o olhar divertido de quem passa. Verde traiçoeiro! Ao cruzar
escadas apinhadas de gente perfumes intensos entontecem-nos as narinas, como se
todo o escaparate de uma barbearia de bairro tivesse sido estilhaçado de repente.
Voltámos a
Sultanhamet, a zona da cidade onde fica o hotel. No parque do lado de lá da
avenida deparámos com as cores atrevidas de dois camiões enormes que dizem: Trans-Asia. Os donos são espanhóis e vão
para o Nepal. Andam à procura de dois motoristas. Começaram viagem em Barcelona
onde tencionam regressar em Janeiro. O Rui ficou tentado com a ideia, a mim,
embora me atraia também a facilidade de ter todo o trajecto garantido sem
esforço de planificação, não me apetece muito um compromisso tão longo e, além
disso, eles só tem lugar para duas pessoas, o que significaria termos de
abandonar o Des. Bem, poderemos voltar a passar por aqui e dar uma espreita: há
sempre carrinhas pão-de-forma, camiões e camionetes ocidentais acampadas por
aqui, uns ostentando riscas psicadélicas no estilo do Magical Mistery Tour[3]
e anunciando Magic Bus, outros
pintados de amarelo total ou verde-pistáquio; vimos até um autocarro inglês de
dois andares, intensamente vermelho, pronto para rumar à Índia mas com a pose
de quem acabou de sair de Piccadilly.
Amanhã, se
os nossos vistos ficarem prontos, poderemos arrancar para a etapa seguinte:
Teerão, capital do Irão, que ainda é reinado de um Xá da Pérsia. Já demos um
sinal numa agência de viagem e o Des acha que fizemos mal e podemos ter sido
vigarizados. Não sei o que o faz pensar isso, mas, ultimamente, ele parece-me
assustado com tudo, o que não deixa de nos surpreender depois daquela noite de
projectos tão épicos em Kavala.
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