Sentei-me na esplanada do Morabeza era já perto da hora do almoço,
embora estivesse ali a matar saudades usando como pretexto um pequeno-almoço
tardio. Numa mesa à minha esquerda estava encaixado um tipo enorme, de óculos
escuros à mosca, envergando uma t-shirt de padrão camuflado. Nervoso, batia sem cessar com uma garrafa de água de plástico vazia na
borda da mesa, perturbando um pouco a morabeza envolvente.
Chegou o meu sumo de ananás com
hortelã e chegou um colega do artista da garrafa tamborilante: este era
igualmente enorme, musculado como um vigilante das noites do Porto; vestindo
roupa caqui, óculos escuros na testa, ar desconfiado e tenso. E mais preocupado
ficou quando a moça que servia às mesas – uma brincalhona de boininha
verde-pistáquio e polo cor-de-rosa flamingo, lhe ralhou brejeiramente: “Então
isto hoje são horas de chegar! Daqui a pouco já não te dava almoço...” E ele a
levar o responso a sério, justificando-se muito, pousando os dossiers que sobraçava numa
cadeira vaga.
Formadores portugueses de pessoal militar, concluí
numa mirada preguiçosa, pois há um quartel ali por perto, com uma magnífica
vista sobre o mar – eu e o Paulo andámos por lá numa tarde sonolenta a
coscuvilhar o interior com a pachorrenta cumplicidade dos responsáveis de serviço
– devem vir aqui almoçar todos os dias. Com aquele ar de rambos e aquela rotina alimenatar não
era preciso pensar muito para chegar a essa conclusão, aliás estava demasiado calor para pensar.
Ao mesmo tempo que o segundo Rambo fez
a sua entrada, chegou uma dupla constituída por uma mãe e sua encantadora
filha, uma donzela de suprema graça e de fazer torcer pescoços na sua t-shirt
negra cabeada, na saia comprida de piedpul em xadrezinho cinzento e preto.
Sentaram-se mesmo em frente a mim e tirei a máquina fotográfica do estojo
para obter uma foto discreta. Tento
sempre que as fotografias sejam tiradas
de modo não ostensivo, imperceptível se possível, embora, em certas ocasiões,
os visados se apercebam da minha curiosidade. Às vezes isso fica a notar-se na imagem
final pelo olhar directo para a objectiva com que são imortalizados. Quase
sempre não se importam, as mulheres fazem até amiúde um sorriso contente ou
malandro dirigido ao vácuo. Saem geralmente muito boas essas fotos em que é
captado o visado a fazer luzir um olhar de entendimento e de cooperação,
involuntária e instantânea, com o fotógrafo.
Desliguei a máquina; já tinha obtido as
minhas fotos, e a tosta mista chegara. Estava a trincá-la em sossego quando o
segundo Rambo, que até aí estivera entretido, de garfo empunhado na vertical, a
despedaçar umas coxas de frango, se levantou, chegou à minha beira e, sem
preâmbulo, prólogo ou introdução, declarou:
“Não quero que o senhor me tire
fotografias...”
“Escusa de se afligir, você é um
bocado feio para o meu gosto...”
Ficou desconcertado com
a reposta, suponho que estaria mais à espera de uma réplica salpicada de “deu
entrada já cadáver”, “o alegado indivíduo”, “quando os nossos homens chegaram
ao local” e outras das pérolas que integram o léxico de polícias e bombeiros. Mas continuou
numa arenga amuada de que vira a máquina assestada à mesa dele, a objectiva ora
aberta ora fechada...
“Ouça,” tentei chamá-lo à realidade,
“não estava a focar a sua mesa, não há nada na sua mesa que me interesse;
estava a tentar fotografar um pouco mais à direita...”, respondi, a ver se o
tipo olhava em volta e percebia que havia coisas mais interessantes na paisagem
do que tipos a fazer de agentes secretos.Nada, não valeu a pena, Rambo2 continuou naquela de “só quero que não me tire fotografias, ok?” e, como um guarda-fatos ambulante, lá regressou à mesa de onde continuou a desferir olhares de atenta desconfiança até ao momento em que chamei Miss Pistáquio, paguei a conta e me fui, desejando “bom proveito” ao passar pela mesa deles a caminho do Pão Quente, onde o café é melhor e não havia objectivos militares à vista.
© Fotografias de Pedro Serrano, Praia, Cabo Verde, Julho 2015.
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