Meio século depois ainda me interrogo
por que raio chamaríamos nós caramileiro
ao homem? Seria por causa da bata branca que sempre usava? Nesses anos 60 de
que falo havia à porta das escolas e dos liceus uns carrinhos de madeira que
vendiam chupa-chupas e outras guloseimas cujo denominador comum eram as cores
fortes (vermelho strawberry-fields-forever; verde-papagaio; amarelo
goodbye-yellow-brick-road) e a uniformidade minimalista da composição: açúcar e
corantes. Minto, alguns deles, uns em forma de guarda-chuva gordinho, eram
revestidos de hóstia, a primeira coisa a derreter-se quando, pensativamente, os
rodávamos dentro da boca. Divago: frequentemente os vendedores desses carrinhos
usavam uma bata para se distinguir, às vezes azul outras vezes branca. Seria
por isso que chamávamos caramileiro
ao homem? É claro que esta alcunha, embora do domínio universal, não podia ser
pronunciada em voz alta, sob grande risco de reguadas, que o caramileiro tinha um feitio algo
emotivo. Quando nos lhe dirigíamos era pelo seu verdadeiro nome, isto é: Sr.
Araújo, que todos nós, em afinada imitação, pronunciávamos como Seraújo.
Tudo isto se passou numa zona do Porto
conhecida como Amial e, nesses dias, eu morava na Rua Nova do Tronco, uma rua
que me parecia a uns 200 km do Bairro da Azenha, onde ficava a escola. Essa
distância mítica (a real percorre-se, a pé, em dez minutos) resulta
possivelmente de este trajecto casa-escola ter representado o meu primeiro
contacto com o mundo exterior, longe das saias da minha mãe e dos muros da
minha casa na Rua dos Padres Capuchinhos, como era popularmente conhecida.
Rapidamente me viciei naquela
liberdade, nas infinitas possibilidades do trajecto: não é que a gente podia
chegar à escola virando na Rua do Amial e subindo a rua da Azenha, mas
regressar dela descendo a Rua da Ribeira Grande até à Rua do Amial?! (Demorei
também quase meio século a dar-me conta da pressuposta abundância em água do
ambiente em que morava: azenha, amial, ribeira grande, arca de água...).
Ao cimo da rua da Azenha, escassos
metros antes de se virar para a rua que nos fazia desaguar na escola, havia uma
mercearia onde, usando a semanada ou as
moedas surripiadas de sobre as cómodas, comprava todas as caixas de chicletes
Adams que conseguia; caixas das pequenas, quero eu dizer, daquelas que traziam
apenas dois encantadores quadradinhos cor de neve, polidos e reluzentes como os
dentes da frente da Adelina, a minha primeira paixão antes dos onze anos. É que
havia duas modalidades de caixas à venda: uma delas – tipo familiar, suponho –
continha uma dúzia de chicletes, um empreendimento que não estava ao alcance de
qualquer bolsa! Mas as pequeninas desempenhavam bem o seu papel de me fazer
sentir rico pela quantidade chocalhante com que me enfunava os bolsos, riqueza
que usava quer para uso próprio quer como suborno para vários tipos de favores,
como o de conseguir que alguém me mostrasse as cartas com mulheres nuas nas
costas das espadas e das damas do baralho, ou me fizesse os deveres do dia
seguinte, que eu, andando a escavar um subterrâneo no quintal de casa, tinha
mais o que fazer.
Ah, mas o caramileiro, para além de ter olhos nas costas, parece que detinha
poderes extrassensoriais! Ficou rubro de raiva quando descobriu que fora o
Alvarinho a alinhavar os números da minha tabuada e ainda mais
vermelho-apoplexia quando descobriu o meu ritual de trabalho à base de
chicletes. Avisou logo que o meu pai ia ser convocado à escola para ser posto a
par da bela peça que era o filho, mas, antes, para eu ir reflectindo no assunto,
chamou-me lá à frente, perto da sua secretária, e mandou-me estender a mão. Apresentei
a direita, pois sou canhoto, e não desconhecia, de experiências anteriores,
como ia ficar a palma da mão: vermelha, quente, anestesiada e imprópria durante
uma boa meia-hora. Mesmo sem se dar ao incómodo de se levantar, o Seraújo
aplicou-me então uma boa dezena de reguadas, que o crime era grande, emitindo
durante o processo uns pequenos silvos de esforço e satisfação (não inferiores
aos que emite, nos dias de hoje, a tenista Maria Sharapova), para gáudio de
todos os outros rapazes da sala, felizes pelo entretenimento e por não ser esta
a vez deles.
metodologias de educação pacifistas, estejam horrorizados com a violência infantil que descrevo. Nada disso, caros leitores, tudo aquilo era justo e merecido e nenhum de nós o sentia de outro modo: nunca o caramileiro me deu mais do que eu necessitava e nunca o fez por motivos outros que não fossem os da minha irrepreensível educação. Tal como todos os outros que passaram pelas suas mãos junto-me ao reconhecimento público de que era um bom professor e nos deixou bem preparados para o que vinha a seguir.
Na continuação do canto à letra A – a
que este texto parece estar condenado: Adams, Amial, Azenha – deixem-me, antes
de regressar ao presente, que diga algumas palavras sobre nomes que invoquei em
linhas anteriores: Álvaro e Adelina.
O Álvaro era meu vizinho de carteira e
todos o tratávamos por Alvarinho ou Varinho. A esta última variação não achava
ele grande graça, pois vinha geralmente associada a uma cantilena de rima
perfeita com que, em grupo e nas nossas vozes de anjo, o assediávamos. Rezava
assim:
Varinho
coqueiro, Varinho totó
Arrebita
o cu e faz cocó.
Quanto à Adelina, que poderei dizer
que faça justiça à luz com que iluminou os meus dias na quarta-classe? Como que
caída do Céu, apareceu de repente na metade da escola onde andavam as meninas
e, mal a vi pela cerca à hora do recreio, fiquei fascinado pelo seu cabelo liso
e castanho, pelos grandes olhos a condizer, pelos faiscantes dentes da frente.
Tinha chegado há pouco tempo ao Amial e morava numa casa moderna e sem telhado
que é agora uma escola de condução. No caminho até lá, descendo a Rua da Azenha
o mais devagar que conseguiam os meus pés, gastei resmas de caixinhas Adams
para conseguir que, por uma brevíssima eternidade e antes de dobrarmos a
esquina, me concedesse a felicidade de lhe dar a mão.
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Alf Sousa; (2) publicidade Adams; (3) Eduardo Serrano.
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