23 maio 2010

SONHAR, DORMIR TALVEZ

Esta noite dormi mal nas  poucas  horas em que dormi.
É tremendo adormecer nos braços da insónia, naquela inquietude por não encontrar posição, por sentir o coração bater demasiado forte contra o lençol ou contra o ouvido, por todos os pensamentos que nos brotam virem carregados de negrume, de uma angústia rançosa. “Oh, a minha vida, que suprema e completa inutilidade…”
Assim, quando o despertador tocou – pelas sete da manhã – era um náufrago exausto, a boiar crucificado em despedaçada jangada, num mar que acalmara mas se mantinha de chumbo e prenhe de ameaças. E aquele soar do despertador, que em outros dias pode ser quase tão discreto como um trinado de grilo que escapou à gaiola, sobressaltou-me como o roncar de uma sirene de ataque aéreo.
Levantei-me sem outro remédio, com a cabeça a estalar como as desconjuntadas tábuas da jangada onde vogava no mar do sono… E, por entre a bruma, subiu o sonho que acabara de ter, e que (pelo menos é isso que sempre nos parece) fora interrompido por um despertar abrupto, de causa externa à nossa vontade.
Aquele sonho é recorrente, que engraçado. Não muito, não daqueles que já só consigo contar pelas mãos de avultados dedos. Não demasiado recorrente, mas contabilizo já uma ou duas variações do tema, isto é: a ilha.
É uma ilha pequena, à noite, acabo de chegar do aeroporto. Foram-me buscar, o carro é um velho Citroen Dyane e quem me espera é um senhor já de uma certa idade, muito educado, conheço-o mas não sei bem quem é…. Paramos na praça principal da vila para encontrarmos o filho do senhor. É esse filho, desse senhor, que, supostamente, é o elo de ligação comigo e entre mim e aquela gente. Quem será? Quando o vejo sei quem é, embora apenas vagamente… Talvez seja um colega meu. Tem barba, é arruivado, é metido consigo em termos de olhar, é vagamente parecido com o irmão do engenheiro S. Ferreira, um tipo que vejo às vezes a jantar no Cantinho da Mimi. Mas não o conheço da vida real (por exemplo: não o cumprimento quando o encontro no restaurante), só o conheço no sonho e não é ele, apesar de se parecer bastante. 
A praça está escura como breu, não há luz, a luz é racionada; a energia eléctrica da ilha é fornecida por geradores a diesel. A praça é uma poça negra, cinzento-escuro, de fachadas de pedra vulcânica, atulhada de carros estacionados, com ar de estarem ali parados desde sempre. Pois, aqueles carros raramente andam - a gasolina é severamente racionada. Ali nada se dá, é tudo importado, a vida é agreste, embora ninguém se queixe. Aceitam aquilo, nunca conheceram outro estar, a resignação deles é endógena e só se manifesta no vagar da existência. Eu é que me dou conta de cada vez que lá vou, sou de fora.
Quase todos os carros são Austin Mini, que curioso, pergunto-me porque será… Talvez por serem resistentes e económicos. Estão para ali, cobertos de uma espessa camada de poeira cinzenta, cor de lama de vulcão, aqueles vidros já não veem o que se passa cá fora há séculos.
O filho do senhor, o tal arruivado barbudo que não nos olha nos olhos, fala ininterruptamente, aliás como toda a gente ali na ilha; o senhor idoso que me foi buscar ao aeroporto parece ser a excepção. Falam que se fartam, de modo compulsivo, descrevem constantemente tudo o que se passou, tudo em que pensam, aquilo que supõem ser previsível acontecer a seguir. Suponho que é a solidão do local que os leva a isso, a falar sozinhos, pois as conversas cruzam-se e emaranham-se como um enxame de moscas sobre fruta que apodrece numa mesa vazia na orla do mar, como diria o Robert Zimmerman*. Estas últimas palavras não me soam bem, embora...
“Pai, já te esqueceste que temos de ir buscar X. ao aeroporto às 2 da manhã?”
“É verdade”, diz o pai ao volante, “então vamos ter de ir à bomba encher bidões de gasolina…Oxalá a fila não seja grande!”
Desatam a fazer cálculos de quantos litros serão precisos, enquanto, no banco de trás da Dyane, me pergunto o que afinal estou ali a fazer e vejo passar por mim a luz amarelada de uma montra e uma porta de café entreaberta.
É óbvio que vou ficar hospedado em casa deles, é para lá que nos dirigimos. Eu sou um hóspede.
“Quando regressa?”, pergunta-me o senhor idoso.
“No Sábado”, respondo, “vou no avião de Sábado.”
“Oh!” respondeu o senhor, “julguei que ia na sexta…”
E parecem ambos espantados, ele e o filho, não por falta de delicadeza ou algo similar, mas mais por parecerem surpreendidos de eu desejar permanecer tão longamente naquele lugar.
Fiquei a dormir no quarto que é de alguém que mo cedeu. Estou na cama, a pensar como pode haver um sítio tão confortável no seio daquela aspereza. Uma casa tão como outra casa qualquer, a minha cama é muito fofa, sinto-me tão quente e agasalhado. E, no entanto, a cama está no meio da rua, quero dizer, está dentro de um quarto e esse quarto é mobilado e tem até cortinas nas janelas, só que não tem paredes e vejo a rua e o seu empedrado e árvores e há alguém que se aproxima da cama. 
É uma mulher, nova, de cabelo pelos ombros, vestida de enfermeira; de branco, tem uma touca na cabeça com um toque de vermelho, talvez seja uma cruz. Usa tacões altos, apercebo-o claramente pelo ressoar no empedrado, pelo oscilar de embarcação que lhe dão ao andar. Ao chegar à minha beira senta-se na borda da cama e diz:
“Vou fazer um domicílio. Quer vir comigo?”
“Está bem”, respondo.
“Então porque não mo pede?”, retorque ela
Aceno com a cabeça, digo: 
“Posso ir consigo ao domicílio?”
“Então vamos”, diz apontando com a cabeça um par de figuras que se encolhe mais abaixo. Percebo que devem ser os familiares do doente, pelo modo ensimesmado e cavernoso com que se assumem. Têm um ar miserável e escuro, soturno e dão a entender que vão connosco na Dyane, como se tivessem qualquer direito, régio e automático, a isso. Quase o exigem, sem dizer palavra mas colando-se a nós como aves de mau agouro. Sinto-lhes o cheiro a fumo, a águas mal evaporadas.
“Entrem lá para trás”, ordena-lhes a enfermeira com mau modo, a impedir mais abusos. E seguimos em silêncio pela noite fora, a bata dela é a única luz no meio das trevas. 
“Lâminas de barbear na garganta, um colar de adenopatias…”
O despertador tocou como uma sirene de ataque aéreo. Levantei-me e desci cá baixo, em silêncio, para tratar do pequeno-almoço do meu filho. Dei duas pancaditas leves na porta do quarto dele, ouço a minha voz dizer:
“Z., são horas.”
Estou na cozinha a espremer uma laranja, a ouvir o zunido familiar do espremedor, a cortar outra laranja ao meio com uma faca. 
“Lâminas de barbear na garganta, um colar de adenopatias…”
No sonho alguém me tinha dito aquilo! No despertar da lembrança foi primeiro o meu espírito que se sorriu. Depois transmitiu-se à face e suponho ter ouvido o crepitar dos meus olhos a desencarquilharem-se na névoa da manhã.


Apenas uma mesa que está vazia/Na orla do mar”, Bob Dylan, “Farewell Angelina”, 1965. In:  Canções,  Relógio d’Água, 2006. 



© Fotografias de Pedro Serrano: Praia da Areia Branca, 2010 (primeira fotografia); Lisboa, 2010 (segunda fotografia).


  

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