Uma tarde, no final do Verão de 2005, telefonou-me o Francisco Vale, editor e proprietário da Relógio d’Água: “Não queres traduzir para português a obra lírica completa do Bob Dylan? Estou a pensar comprar os direitos aos americanos…” Para lá do baque, tentei ganhar tempo: "Deixa-me pensar uns dias..."
Nos anos 60 os meus pais tinham uma quinta nos arredores do Porto, com uma fronteira aquática no seu limite sul, o rio Douro. Nas férias da Páscoa de 1966 eu e um amigo passámos lá uma semana, sozinhos com as nossas latas de atum, acampados a três metros do solo num espigueiro, um casinhoto onde se guardava o milho, bem arejado e a salvo de roedores.
Na fotografia, estou nas escadas e o tipo sentado na ombreira da porta é o Rui, hoje oftalmologista no Porto. Se reparar bem, junto à mão esquerda dele passa um fio que cruza um dos pilares de granito em que assenta o espigueiro e se perde no canto direito da fotografia. É um fio eléctrico e a ele estava ligado um gravador de fita Gründig, a nossa companhia sonora permanente.Nessa semana ouvimos incessantemente um álbum que aparecera em Portugal não há muito tempo, embora já tivesse sido editado nos Estados Unidos há quase um ano. Intitulava-se Highway 61 Revisited, o cantor chamava-se Bob Dylan, as músicas eram todas dele e eu nunca tinha ouvido nada parecido, tão estranho e tão poderoso. Tão hipnótico e pleno de detalhes a absorver que mal a última música acabava eu puxava a bobina para trás e fazia começar tudo de novo.
Se, à época (tinha 13 anos), alguém me dissesse que um dia seria convidado a traduzir Dylan, eu acreditaria tanto como se me dissessem que havia vida em Marte e sentir-me-ia tão esmagado pela honra e pela responsabilidade como se me comunicassem ter sido escolhido para gerar um profeta…
“Vê se não demoras muito a decidir”, disse o editor do lado de lá do fio, “o meu direito de preferência sobre a tradução está a acabar...”
Mas, voltando a essa tarde do Verão de 2005, para além da honra e da responsabilidade quase cósmica havia ainda os aspectos práticos: a obra a traduzir (Lyrics 1962-2001) era imensa (600 páginas de uma mancha densa, quase tamanho A4, em American-English); a poesia labiríntica; as interpretações em volta do que ele escreveu geraram milhares de teorias interpretativas, teses, 500.000 presenças activas na net.
Uma semana depois acabei por dizer que sim, mas apresentei uma contraproposta: sim, mas só em boa companhia. Esse a meias andara, entretanto, a preparar. Tinha uma amiga, licenciada em inglês e alemão, especializada em literatura anglo-saxónica, de quem conhecia a demonstração do gosto pelo rigor e a capacidade de trabalhar em regime de escalada, passo a passo, palavra a palavra.E assim foi, durante dois anos e meio lá se foram as nossas horas vagas, as férias. Metemos Dylan na cabeça como uma obsessão, como uma maldição: comprei os muitos discos que ainda não tinha, encomendei livros, passei dois anos embebido na sua música e embrenhado na leitura do que ele tinha escrito, do que se tinha escrito sobre ele e sobre a sua obra. E, agarradas às suas músicas, às suas letras, vinha o caldo a partir de onde tudo aquilo explodira: as influências literárias, musicais, cinematográficas, as musas; e, como consequência, lá estávamos nós a ler sobre poesia inglesa, baladas escocesas e irlandesas, sobre blues e lendas dos blues, a rever Fellini, Hitchcock e Scorsese. Até debruçados sobre coisas aparentemente menos do domínio das artes como activistas políticos, gangsters, jogadores de basebol e pugilistas, pois Dylan tudo cantou, como qualquer songster que se preze.

Foi duro e tanto mais o foi porque tínhamos decidido, como axioma geral, que a nossa abordagem da tradução seria asperamente literal, isto é, iríamos respeitar em absoluto o que estava escrito e não nos deixar cair em tentação pelo que talvez fosse a intenção do autor, o sentido das palavras, a intuição ou a sensibilidade...
Essa opção causou-nos frequente sofrimento estético e eis-me desiludido por não conseguir outra palavra mais densa do que ‘brincalhão’ para a misteriosa figura do Joker na apocalíptica letra de “All Along the Watchtower” (“Ao Longo da Torre de Vigia”), algo que retratasse melhor a enigmática figura, algo diabólica, retratada nas cartas de jogar. Nenhum dos dois escapou a essa frustração e agora é a Gina a percorrer todos os dicionários, todos os sites possíveis, todos os fóruns de tradutores, em busca de alternativa à ‘pandeireta’ do “Mister Tambourine Man” (“Senhor da Pandeireta”), que imaginara poder traduzir por “tamborim”, acabando por não lhe restar alternativa que não a rústica pandeireta para uma canção passada numa melodiosa manhã de sonho. E nem as sentenças esclarecidas de Vladimir Nabokov sobre traduções nos consolavam totalmente: “Um autor torturado e um leitor enganado, este é o inevitável resultado da paráfrase artística. A única finalidade e justificação da tradução é carrear a mais exacta informação possível, e isso só pode ser conseguido por uma tradução literal, com notas."* Muitas notas e muitos rebuçados de mentol...
Que a edição seria bilingue sempre foi um dado adquirido entre nós e o editor, mas inicialmente foi ventilada a hipótese de a mancha principal do livro consistir na versão em português de cada canção, aparecendo o texto original em nota de rodapé, os versos de cada estrofe apresentados na horizontal, separados por traços. Algo deste género:
Once upon a time you dressed so fine /You threw the bums a dime in your prime, didn´t you?/People’d call, say, “Beware doll, you’re bound to fall”/You thought they were all kiddin you/You used to laugh about/Everybody that was hangin’ out/Now you don’t talk so loud/Now you don’t seem so proud/About having to be scrounging for your next meal.E isto é apenas a primeira estrofe de uma canção que tem oito! A Gina e eu ficámos horrorizados com esta sugestão editorial, sensatamente apresentada como forma de poupar espaço e bastante utilizada por aí. Para além da questão estética da apresentação, desejávamos que o todo surgisse perante os olhos do leitor em total transparência e clareza comparativa: na página da esquerda o texto original, em inglês, e na página da direita, em espelho, a tradução do mesmo; alinhadas de modo a que a cada linha em inglês à esquerda correspondesse, taco-a-taco, a sua legenda em português à direita.

Tudo isto acabou por condicionar a dimensão física da tradução para português da lírica de Bob Dylan (Canções 1962-2001) e a obra teve de ser editada em dois extensos volumes: o primeiro, com 665 páginas, saiu para as livrarias em Setembro de 2006 e contém as canções escritas entre 1962 e 1973. O segundo, 754 páginas, foi editado em Junho de 2008 e contém as canções escritas entre 1974 e 2001.
As tais notas de rodapé dos tradutores, que prevíamos abundantes, acabaram por ser em número de 409 e as notas de fim de volume, com considerações de enquadramento de álbuns e canções, vieram a gastar 30 páginas do total da tradução.
As reacções à edição dos dois volumes foram parcas e discretas e rondaram a dezena nos jornais portugueses (Público, Expresso, Diário de Notícias, Visão, Sol, entre outros), a que podem ser somadas mais duas ou três notícias sobre a novidade literária em blogues brasileiros. A grande maioria dos comentários limita-se a duplicar os textos que surgem na contracapa ou nas badanas dos livros e apenas uma se pode considerar minimamente crítica do conteúdo da tradução, a do Diário de Notícias que se intitulava “Dylan Legendado em Português” (João Morgado Fernandes, 15 Dezembro 2006, crítica ao Volume I).
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spaces.live.com, blogue de Christopher Rollason. Este senhor é um inglês que vive em França e é um conhecido especialista da obra de Bob Dylan, em cujo nome se tropeça constantemente quando se lêem obras de referência sobre o compositor.
Uma noite, na dúvida aguda gerada por uma opção a tomar sobre o sentido de determinada situação dylaniana encontrei um artigo de Christopher Rollason sobre o assunto. Esse artigo não dava resposta à nossa dúvida, mas andava perto. Não foi difícil encontrar o endereço electrónico do homem e escrevi-lhe um mail em inglês, pedindo a sua opinião. No dia seguinte recebi, com grande espanto pela resposta pronta e pelo idioma usado, uma resposta dele em português. Tinha vivido em Portugal entre 1979 e 1987, onde foi docente na Universidade de Coimbra. Tem obra publicada sobre José Saramago e outros temas portugueses! Recorremos à sua ajuda várias vezes, as suficientes para lhe agradecermos a disponibilidade e o apoio na edição do segundo volume.



* A citação de Vladimir Nabokov é do livro Opiniões Fortes, editado em Lisboa pela Assírio e Alvim, 2005.
Imagens (de cima para baixo): Quinta do Outeirinho, Avintes, 1966 (fotografia de Eduardo Serrano). Restantes fotografias de © Pedro Serrano: Praia da Areia Branca, 2007; Braga, 2008; Praia da Areia Branca, 2008; Lisboa, 2008. Maquete da capa e contracapa do Volume 2 e capas dos livros: © Relógio d'Água editores, 2006 e 2008.
Extra, Extra, Read all about it!
O texto (post) "Once upon a time: Bob Dylan (na cozinha de uma tradução)" está agora comentado em dois sites especializados:
probably the best Bob Dylan site ever!
On the Portuguese translation of Dylan’s LYRICS
For those who read Portuguese, I am pleased to add that on his blog at: http://www. semcompromisso.com/2010/05/once-upon-time-bob-dylan-na-cozinha-de.html Pedro Serrano, the co-translator into Portuguese of Dylan’s Lyrics, has posted an interesting piece on the history of that translation, in which he also kindly credits me (Chris Rollason): in fact I have a number of credits in the 2nd volume of the translation. I posted myself on the subject on 28 July 2008 at:http://christopherrollason.spaces.live. com/ blog/ cns!459178C2F5215F32!1000.entry. The Portuguese Lyrics (Bob Dylan, Canções vol. 1962-73 (2006) and Canções vol. II 1974-2001(2008), Lisbon: Relógio d’Agua, trans. Angelina Barbosa and Pedro Serrano), is an exemplary piece of work, rendered with loving care and attention to detail.
Pode visionar este mesmo comentário em: http://nicolamenicacci.com/bdcc/blog/
É também mencionado em Expecting Rain, um muito conhecido site totalmente dedicado a Bob Dylan. Veja a referência 19 em http://74.54.108.222/
(Pedro Serrano, em 17 de Maio 2010)
Eu não diria melhor :-)
ResponderEliminarDois anos e meio de trabalho duro, de decisões tantas vezes difíceis... Ah, mas foi uma bela jornada na tua companhia!
Um beijo grande
Gina
Hi Mrs Tambourine Girl, translate a song for me, I'm not sleepy and there is no place I'm going to. Um beijo
ResponderEliminarGosto da 1ª fotografia e da explicação do encanto desses anos.
ResponderEliminarQuanto ao Nabokov, direi mesmo mais: em vez de traduzires, ensina inglês para se apreciar completamente o que diz (ou não diz) o Dylan - é o que tenho estado a fazer nestes anos (embora quase sempre sem sucesso!)JB
Congratulações desde Galiza. Merquei os dous livros quando saírom á venda. Tenho 48 anos,som filólogo e seguidor de Dylan desde os trece. Estou moi enfermo pero disposto a ajudar no que gostedes. Tenho quatro discos con letras traduzidas de Dylan.Podedes descargá-las grátis na minha página (aí verás o meu endereço). Por certo, o meu Jokerman chama-se 'Paspalhás'
ResponderEliminarCaro Pedro,
ResponderEliminarparabéns pelo trabalho, que espero ver logo. Eu mesmo alimentei durante algum tempo um projeto de tradução de (algumas) letras do Bob. A maneira como você faz aqui o seu relato me deixou certo de que o trabalho esteve em muito boas mãos....e curioso também para conferir o resultado. Será que já encontro a obra no Brasil?
Um abraço,
Fernando Viotti
fviotti@ufmg.br
The answer my friend is blowin' in the wind....
ResponderEliminarhttp://www.youtube.com/watch?v=eA6oPl82HuI
foi um trabalho hercúleo, teu e da gina, que tive oportunidade de ver de perto.
ResponderEliminarmuitos parabéns para os dois.
um abraço,
manuel
Num época em que todos se julgam "tradutores" porque percebem vagamente o que se diz/escreve num outro idioma que não o nativo, o vosso exemplo de rigor, integridade, honestidade para com ambas as línguas, fazem-me sorrir com esperança de que se recupere o respeito pela tradução e tradutores, como algo de muito culto e sábio... espero que tenham enviado um exemplar ao BDylan, pois terão criado uma oportunidade magnífica de um dia o ouvirmos cantar em Português... Obrigada pelo vosso trabalho, Len
ResponderEliminar@ Fredi Barreiro:
ResponderEliminarCaro Fredi Barreiro,
Obrigado pelo comentário ao meu texto sobre o making of da tradução dos Lyrics de Bob Dylan.
Quanto ao Joker. Em português o termo "paspalho" (o mais próximo do seu "paspalhás") significa "parvo", "lorpa", no fundo alguém que anda no mundo sem dar conta de nada! O que é algo muito diferente de "joker", aquele bobo misterioso das cartas de jogar, entidade que pode assumir o valor de outra. Ora isto dá-lhe uma profundidade e uma complexidade de caracter muito longínqua do que, em português, é um "paspalho". Assim, o termo "brincalhão" ainda foi o melhor que se encontrou, pois "brincalhão" não exclui, à partida, uma personalidade complexa e dúbia.
Fiquei curioso em relação à sua doença. Por um lado sou médico e por outro eu próprio passei por um violento processo de doenças (a narração disso está no livro "Coração Independente", a que pode ter acesso integral através do meu blogue).
Espero que tudo corra bem consigo. um abraço
@ Fernando Viotti
ResponderEliminarCaro Fernando,
Meus pedidos de desculpa pelo atraso na resposta, mas andei por fora e longe de mails. Por outro lado, o facto de o meu post (semcompromisso.com) ter sido colocado nos sites referentes a Dylan (sobretudo o Expecting Rain) provocou uma epidemia de visitas e mails relacionados e tenho estado a responder um a um.
Obrigado pelo seu mail e suas palavras gentis.
Sei que o primeiro volume das Canções (1962-1973) foi posto à venda no Brasil e, por comentários lidos em blogues brasileiros, que desapareceu depressa das livrarias pois havia gente se queixando de não o ter encontrado mais. Também se queixavam do preço (por volta dos 35 euros em Portugal, o que ronda os 78 reais).
Quanto ao segundo volume, desconheço, mas penso que tal como o primeiro volume terá sido colocado aí. Mas, na generalidade, me parece que a política de trocas livrescas entre nossos países é tímida, o que acho uma pena. Por cá, para além dos livros do Chico Buarque, do Vinícius de Moraes, do Rubem Braga ou da Patrícia Melo, que são fáceis de encontrar e editados em Portugal por editoras portugueses, é muito complicado e raro ter acesso a outros autores ou mesmo livros importados. Lembro, por exemplo, ter comprado (e bem caro) Chega de Saudade (Ruy de Castro) e Noites Tropicais (Nelson Motta) e quando tentei comprar outros exemplares para oferecer já não encontrei mais.
Se quiser saber mais sobre a tradução do Dylan, nos aspectos relacionados com a venda de livros, por favor contacte directamente a Relógio de Água e estou certo que o editor (Francisco Vale) lhe responderá. Aqui vão os endereços do site (www.relogiodagua.pt) e o mail (relogiodagua@relogiodagua.pt). Pessoalmente falando, fico ao seu dispor para o que entender por bem sobre os aspectos mais literários da tradução.
Aceite um abraço transatlântico do