06 maio 2010

CONTO DE NATAL

No Natal em que fez sete anos, Sara recebeu, entre outros presentes, um maravilhoso lápis.
Foi a prenda de que mais gostou. Deu-lho o avô, juntamente com umas meias cinzentas, tricotadas pela avó, e uns anõezinhos de chocolate forrados a papel de estanho e sorrisos todos tortos pelo calor que sofreram, junto à lareira, esperando que Sara acordasse. Foi também a única prenda que escolheu para revisitar à noite, a sós. Durante o dia o lápis esperou numa cestinha de vime, ao lado da cama, e Sara nem sequer olhou para ele nas várias idas ao quarto com os primos, a mostrar os presentes novos.
Era um daqueles lápis a que dificilmente se resiste quando vamos apenas comprar um tubo de cola. Enorme, de um redondo facetado em poliedro (como Sara via acontecer às batatas sempre que eram descascadas), metade azul e metade vermelho. O vermelho cheio de risquinhas paralelas e azuis, o azul cheio de risquinhas vermelhas e paralelas.




Semelhante a uma carta de jogar, na simetria e no mistério. O lápis não vinha com bicos feitos, o que lhe agradou. Conservava ainda as cores estancadas por duas medalhas douradas.
À noite, deitou-se e esperou que a mãe lhe viesse dar as boas-noites. A mãe ficou ainda cerca de dez eternidades, recordando a festa, os avós, os tios, os primos... Sara impacientava-se, evitando os olhares do lápis. Finalmente, a mãe saiu, apagando a luz e fechando a porta de mansinho, tal qual como no anúncio da televisão. 
Aguçando o ouvido para verificar os barulhos no corredor, Sara esperou o pedaço que estimou provável a uma última visita e acendeu o candeeirinho vermelho. A luz não seria notada pela frincha da porta e o quarto pintava-se com todos os objectos suaves e amigos. Tinha um pouco de medo de certas sombras.
Pegou no lápis e olhou-o devagar, a mão acariciando as risquinhas, levemente reveladas, como quem faria carícias a um esquilo. Ela nunca tinha visto nenhum esquilo (a não ser os dos livros do Pato Donald, mas esses não eram um esquilo, eram dois esquilos), mas imaginava-o assim como um urso de pelinho, embora mais magro e com um rabo mais viçoso.
Levantou-se. Precisava de um afia-lápis para desenhar uma árvore de Natal. Foi uma desilusão verificar que o lápis não entrava no buraquinho do afia - era muito grosso! O afia precisaria ter um furinho maior.
Voltou à cama um pouco triste, pois já não poderia desenhar essa noite a árvore de Natal azul. Sara decidira-se pelo lado azul do lápis; logo que o vira resolvera que iria aguçar primeiro o lado azul. Quando estivesse cheia do azul ou precisasse mesmo de mais uma cor, então afiaria o vermelho. No dia seguinte pediria ao pai que lhe aguçasse o azul; entretanto dormiria com o lápis, a árvore de Natal podia esperar. Dormiria com a luz acesa (embora soubesse que a mãe lhe ralharia depois) e com o lápis, não com o urso.
Meteu as mãos por baixo do cobertor e colou o lápis à barriga. Mas ali não sentia bem o lápis. Ia deixar que aquecesse um pouco na camisa de dormir (branca e com koalas cor-de-rosa) e então po-lo-ia na barriga, sobre a pele.
Ali o lápis estava melhor e Sara também. Carregou com ambas as mãos, até sentir a pele quase doer. Sentia-se feliz por o avô lho ter dado. Deslocou-o para cima até ao meio do peito, ali não ficava muito bem. Tinha osso por baixo, o lápis ficava levantado numa ponta. Fê-lo escorregar novamente. Ali também tinha osso por baixo, acabava por ser ainda pior.
Sara flectiu um pouco as coxas e descobriu que assim o lápis ficava melhor: em cima segurava-o com a mão, em baixo ficava apertado entre as coxas. Conseguiria prendê-lo entre as coxas sem ter de o segurar com as mãos? Era fácil, desde que uma das pontas ficasse colada ao rabo.
Apertou bem o lápis entre as coxas e estendeu-as lentamente. Estremeceu, como às vezes antes de adormecer. Voltou a empinar as pernas levemente, estendeu-as em seguida. Aah..., era fazendo assim que era bom e era a ponta dourada, a que estava encostada ao rabo, que a fazia estremecer. Com a mão esquerda fechada (Sara era esquerdina) agarrou o lápis pela fronteira entre o azul e o vermelho e experimentou roçá-lo no rabo, levantando-o e baixando-o devagarinho. Era melhor ainda.
Fechou os olhos, pensando em muitas coisas ao mesmo tempo: o Natal, as prendas, tanta gente em casa, a chuva lá fora, os primos, os anõezinhos de chocolate a derreter-se num sorriso, o pai amanhã a afiar o lápis. Quase sem dar conta, pois distraía-se com toda aquela corrente de assuntos, descobriu que podia também mexer o lápis para dentro e para fora. Não era só para cima e para baixo. Sentou-se na cama, para ver melhor. Puxou a camisa mais para cima e afastou as coxas devagarinho, não fosse o lápis escorregar, abrindo-as o mais possível. Via o lápis lá ao fundo, a sair do meio das coxas: conseguia ver o lado vermelho todo e ainda um bocadinho pequenino do azul. Se empurrasse com a mão, suavemente porque a dor era tão boa, ficava metade certinha lá dentro.
Ao pequeno almoço, ainda ensonada, a mãe a ralhar por ter aparecido na sala descalça, Sara esteve quase quase a pedir ao pai para lhe aguçar o azul; mas depois lembrou-se a tempo.  

© Fotografias de Pedro Serrano: Praia da Areia Branca, 2010 (primeira foto); Porto, 2008 (segunda e terceira fotos).


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