30 dezembro 2012

VOU-TE CONTAR: 56. OS PREDICADOS DO ROCHINHA


O rapazeco que sobressai no retrato a interceptar a objectiva do fotógrafo (provavelmente o meu pai) sou eu, um avançado entre o meu primo Heitor e a minha irmã Clarinha. Tenho doze anos, uso gravata e o modo como penteio para a frente as farripas do cabelo são sinal de que os Beatles já modificaram a minha vida e tento, no exíguo espaço de liberdade capilar que me é permitido, assemelhar-me a eles quanto posso.
É a noite de Natal de 1965, no ano seguinte já não estaremos naquela casa em que o frigorífico ainda se admite na sala de jantar, teremos mudado para um andar chic na Boavista. E apesar de não haver informação no verso da foto, consigo chegar ao ano pela idade da irmãzita recém-saída da casca e sentada, lá na cabeceira, entre a minha mãe e a avó Zaida.
Do lado de cá da mesa, em primeiro plano, alguém passa o molho do peru por sobre um prato de ameixas de Elvas, tarefa arriscadíssima, pois havia uma molheira em que a base da terrina estava soldada ao prato e outra que não e, essa diferença, era fonte de incidentes gordurosos com consequências  têxteis que alastravam além do novo ano.
Ao lado da minha irmã Clarinha, era aqui onde queria chegar, está sentado o Rochinha com o sorriso que a minha memória sempre lhe afivela. O Rochinha era um tio, pelo lado da mãe, do meu tio Mário, e o tio Mário era casado com a minha tia Titi Teté, irmã mais nova da minha mãe. Isto que parece tão complicado de dizer acaba por condizer com a realidade, pois o Rochinha não nos era nada por laços familiares directos: não era meu tio ou meu tio-avô, nem primo, nem nada disso, no fundo era tão da minha família como o guarda-nocturno que nessa tarde viera pedir a consoada ao portão. O que não o impedia de ser uma presença tão constante e importante nas noites de Natal como o peru, o presépio ou as ameixas de Elvas.
Todos nós, os mais pequenos, adorávamos o Rochinha, à época esse sentimento fazia trança única mas as madeixas eram várias: para começar, o Rochinha mantinha aquele sorriso de quem tudo está sempre sintonizado no acorde perfeito; depois era um tipo pequenino o que o aproximava do nosso nível de entendimento físico e, acho, ser daí que se lhe adicionava o “inha” ao Rocha de família. O Rochinha tinha olhos luminosamente azuis e uma tranquilizante parecença com o anão bonacheirão da Branca de Neve, só vantagens como podem calcular. Ah, mas as coisas não se ficavam por aqui! A nível profissional, ele era apenas o representante da distribuição para toda a zona Norte, talvez para o país, da Laranjina C e da água do Vimeiro pelo que, ao longo das épocas festivas (Natal e Carnaval, para só citar duas) havia grades inteiriças destas bebidas sob as mesas da copa e nós, a quem tais consumos só eram permitidos fora de casa e em dias de espaçada excepção, quando o Rochinha marcava presença passávamos as noites gaseados em arrotada felicidade.
Como se não fora pouco, para tão curta personagem, um mistério, adensado pelos zumbidos que se interrompiam à nossa aproximação, envolvia o Rochinha como as brumas envolviam as rochas em Leça da Palmeira: o Rochinha, solteiro como um monge e com aquele tamanho que o aproximava da infância, tinha uma neta! Essa neta, nunca percebemos nós como ele a arranjara, se por método directo ou se por representação, como à água do Vimeiro, mas que ela existia isso foi-nos dado comprovar quando, uns anos mais tarde, ela começou a ser admitida às consoadas. Chamava-se Armanda e, como o nome passou a deixar supor em mim sempre que o ouço invocado, era uma menina calada, de pele branca, e pose melada como a Larangina C quando lhe passava o gás...
Por vezes, mesmo quando já estava a enfiar o sobretudo, a enrolar-se no cachecol para se aventurar na noite fria e voltar à vida desconhecida de onde provinha, o Rochinha, com o "ah..." malandro de quem finge ter-se esquecido de algo, metia as mãos nos bolsos e retirava-as com um retinir por demais nosso conhecido: era o maravilhoso, o inigualável trinado de chicletes Adams a chocalhar dentro das caixas onde vinham acondicionados. Havia caixas de várias cores, mas nenhuma suplantava o brilho mágico das amarelas, as preferidas do nosso benfeitor. Quanto a tamanhos, havia-as das grandes (com 12 peças) e das pequeninas, apenas dois chicletes de uma brancura que não destoava da alvura imaculada da gola do vestido da Branca de Neve. Óbvio que o Rochinha, sendo um ser do reino encantado dos minorcas, nos enchia as mãos estendidas de caixas das pequenas, preciosos objectos de joalharia onde, através de uma janelinha de celofane no cartão, os nossos olhos pedintes encontravam, como num amor à primeira vista, o nacarado dos chicletes no seu leito de cartolina. 

© Fotografia: Natal de 1965, Porto, fotógrafo desconhecido.

28 dezembro 2012

4 DA MANHÃ, NO FIM DE DEZEMBRO (Leonard Cohen)


Trintão, dez anos mais velho do que a média dos outros famosos, quando estourou no mundo da música (1967-1969) e adolescentes acompanhados por uma viola perramente harpejada miavam o “Suzanne” e o “So Long Marianne”, eu não gostava dele. Achava-o chato, no género cantor-sem-voz as minhas preferências iam todas para o Dylan, que se electrificara havia pouco e cantava histórias mais exuberantes.
Quem sempre gostou muito dele foi o meu cunhado Pedro e essa era uma preferência tão vincada que no inverno de 2001, ao ver num escaparate o disco novo, o comprei para lho oferecer como prenda de sapato.
“Olha o Cohen”, pensara ao olhar a capa, “não sabia que o gajo ainda andava por aí... Já deve ter quase 70 anos!”
De facto, há quase dez anos que o homem não editava um álbum e aquele Ten New Songs era novidade acabada de sair, produto mesmo a tempo do Natal.
Cheguei a casa e, curioso, pus o futuro presente do Pedro a rodar no leitor de CD. Todas as dez canções, letras e músicas, eram espantosas, não mais parei de as escutar, suponho ter ouvido o disco milhares de vezes desde então, umas centenas logo nesse Dezembro vazio e gelado.
Meia dúzia de anos depois, ao ver um anúncio do festival Optimus Alive, reparei que uma das atrações era Leonard Cohen. Comprei bilhete e guiei até Alcântara, desprevenido de todo naquela curiosidade recente pelo homem. Estava uma noite de verão indescritível, daquelas que apenas são convocadas para um filme, uma lua cheia irradiava perfeita em brilho e dimensão, o palco fora montado na margem do rio e essa presença de água sentia-se na macieza da luz e da brisa que abençoavam o recinto. Assisti ao concerto de pé, era um espectáculo sem cadeiras ou lugares marcados, espetado no meio de uma multidão e sem o poder evitar, aí pela terceira canção (“Bird on the Wire”, acho) senti uma mão de veludo envolver-me a garganta e lágrimas a deslizarem mansamente. Apesar de ser noite adiantada, a lua derramava uma luz diurna sobre o terreiro e, entre duas canções, espreitei em volta, embaraçado, a investigar se alguém reparava na minha triste figura. Não precisei de me preocupar: lágrimas não rareavam por ali e o público parecia igualmente hipnotizado e comovido pelo balanço encantado que chegava do palco.
No género pronto-a-vestir, nada mais parecido com uma experiência mística do que ver Leonard Cohen em palco, algumas das suas canções são o que de mais semelhante pode haver com um hino, ou aquilo que a gente imagina que um hino deva soar no coração dos crentes.
Este Outubro de 2012 voltou a Portugal, e logo ao entrar no palco, de soalho revestido de tapetes como é costume, disse:
“Espero vir a encontrar-vos mais vezes, mas, se isso não acontecer, prometo que hoje daremos tudo...”  
O artista tem 78 anos, já passou por tudo que é imaginável, só continua a dar concertos porque a ex-fiel empresária lhe fugiu com o dinheiro todo, e, embora não seja apropriado como cartão de visita de um profissional do entretenimento, foi calmante ouvir esse equivalente a: “Deixemo-nos de merdas, já sou velho, cada vez pode ser a última...”
Dito isto, o nosso homem não parou de cantar ou recitar nas três horas seguintes, deixando cada espectador no charco de sonho que lhe cabia ao redor da sua cadeira do Pavilhão Atlântico. Eu, já me sei, de novo especialmente tocado por “Bird on the Wire”, “The Partisan”, “Secret Life”, “Alexandra Leaving”, estas duas últimas canções novas no tal CD que comprei para o meu cunhado nesse Natal gelado de há dez anos atrás.
Todas estas canções são (pelo menos mentalmente) em tom menor, mas nenhuma agasalha tão grande desalento como “Famous Blue Raincoat”, uma história de amor que acaba mal, conforme vai sendo cantada ao traidor, pela voz do traído, uma noite de Dezembro já distante do crime, por volta das quatro da manhã.

© Fotografia do palco: Pedro Serrano, 2012.
   




20 dezembro 2012

O NATAL, SEGUNDO LADY MARCHMAIN


"Os evangelhos são simplesmente um catálogo de coisas inesperadas. Não se espera que uma vaca e um burro adorem a manjedoura. Os animais estão sempre a fazer as coisas mais estranhas nas vidas dos santos. É tudo parte da poesia, do lado Alice-no-país das maravilhas da religião."

Lady Marchmain, personagem de Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh. 

© Fotografia de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca, Dezembro 2012.

18 dezembro 2012

VOU-TE CONTAR: 55. O MIOLO DO PÃO DE LÓ


Quando o telemóvel tocou andava pelo supermercado, na prateleira dos derivados do tomate, à procura de polpa, a explorar um spaghetti à bolonhesa que trazia na ideia para o jantar.
Era a minha sogra e queria saber como seria com o Natal deste ano. Contei o que já estava alinhavado: a 24 jantava com a família lá de cima, o cozido do almoço de 25 era por conta da minha irmã Clarinha e, a partir daí, não tinha nada programado.
“Então fica como o costume”, disse ela num despacho: “vens cá jantar a 25, com o Zé João.”
“OK”, agradeci do lado de cá da polpa de tomate, “aí estarei”, logo me escorregando o fluxo do raciocínio do spaghetti para a necessidade de encomendar, mal chegasse ao Porto, um bolo-rei e um pão-de-ló dos grandes, pois em casa da minha sogra são ferrenhos do pão-de-ló com vinho do Porto, e bolo-rei, já se sabe, não há igual ao que se enforna na capital do Norte, em que até a fava tem um torrado sem calcanhares a que se chegue.
Corriqueiro diálogo, concluirão ouvintes mais impacientes, dado que milhares de planos desta natureza terão lugar todos os Natais por esse éter fora... A pequena diferença, neste conto de supermercado, é que o contador é divorciado de mais de dez anos, pelo que esta sogra, antiga de trinta anos, e este telefonema de prazenteira combinação deveriam, no mínimo, jazer soterrados no pó do tempo ou no gelo do esquecimento.
Ah, mas vocês não conhecem a minha sogra, ela é uma especialista em manter famílias agregadas, uma espécie de íman familiar, teimoso e distraído... Para ela, separações, divórcios, filhos e netos a morar a 3.000 km, não são nada que não se ultrapasse com meia-dúzia de truques do livro de receitas de família. Já me dera conta disso quando os meus cunhados se separaram, e o mesmo aconteceu quando chegou a vez à filha mais velha e ao seu, então, marido – eu.
É claro que durante uns, escassos, anos as relações bilaterais amornaram – é humano que cada destroçada parte torça pelo seu grupo sanguíneo, qualquer especialista em transfusões nos explicará as razões disto – mas, ainda assim, a minha fotografia não desapareceu do lintel por cima da lareira, apenas foi remetida durante o período de nojo para plano mais discreto, mais atrás, perto da chaminé, que, no fundo, a minha sogra não me queria arrefecido de todo.
Agora, continuámos a encontrar-nos em casa dela para celebrar mais uma consoada e tirar uma sorridente fotografia de Dezembro, retrato onde só os mais novos aparecem de cara fechada ou em trejeito brincalhão, pois ainda não se aperceberam completamente do pequeno milagre em que participam nessa noite de outras muitas...
E, olha, lá estamos todos, depois do peru, das rabanadas, do pão-de-ló e do celebrado
“Olhem que este vinho do porto é colheita do ano em que eu nasci...,”
a sala tão bonita e ricamente decorada, o meu filho afagando as teclas do piano, a minha sobrinha belga à viola, cantando qualquer coisa alusiva, juntos, os que partilham o sangue e aqueles que nem sonhavam a existência dos outros antes de entrarem aquela casa; os que pisam as escadas para o andar de cima com a inconsciente desenvoltura de sempre e os que, como eu, optam agora pelo lavabo do rés-do-chão para lavar as mãos e darão uma última olhadela ao presépio (na mesinha onde outrora ficava o telefone) antes de rodar o puxador da porta da sala, movimento ao qual a minha sogra, como se fosse uma senha que só nós conhecemos, dirá:
“Ah, só faltavas mesmo tu... Meninos, já podemos ir para a mesa...”

© Fotografias de Pedro Serrano, Cascais: (1) 2012; (2) e (3) 2009.

15 dezembro 2012

2. DENGUE: A DANÇA DOS CURANDEIROS


Quando um dos seus colaboradores adoece com dengue, é regra das Organizações Não Governamentais (ONG) com trabalho no âmbito da cooperação internacional mandar regressar esse colaborador à base e informá-lo que os seus tempos de missão no exterior chegaram ao fim. Nunca mais essa alma poderá, ao serviço dessa ONG ou de outra igualmente cuidadosa, voltar a trabalhar nesse projecto, nesse local, nesse país ou em outros onde possa haver notícia de dengue. Santo Deus, pensarão porventura os meus ouvintes, que medida tão desproporcionada para uma doença que é, genericamente, tão benévola, por vezes assemelhando-se a pouco mais do que uma gripe com umas manchitas na pele...
Sim, mas por trás desta medida draconiana das ONG existe uma razão, muito razoável do ponto de vista da saúde das pessoas envolvidas. Podendo ser provocado por quatro formas ligeiramente diferentes do vírus (sempre transmitidos pela picada do nosso amigo mosquito Aedes), o dengue é geralmente benigno no seu primeiro episódio, mas se acontece a quem já teve a doença ser repicado por mosquito infectado com um dos outros tipos de vírus – e isso nunca se sabe quando e como vai acontecer – a possibilidade de ter uma forma grave, hemorrágica, da doença aumenta bastante. E a gravidade de um dengue hemorrágico, sobretudo em doentes deficientemente tratados, pode ser tão dramática que chega a matar 40 % desses doentes, um poder mortífero sobreponível à de alguns dos cancros mais agressivos.
Toda esta conversa prévia me serve para comentar, de forma mais fundamentada, as declarações que os jornais estamparam na sequência da visita à Madeira de uma comitiva de personalidades, entre as quais o nosso ministro da Saúde que, preocupado com a dimensão do fenómeno, se quis deslocar ao território para se inteirar do modo como o assunto estava a ser enquadrado por quem deve lidar com ele.
Durante a iniciativa, e como é costume, houve quem aproveitasse os microfones da comunicação social para regurgitar as opiniões mais levianas e, entre outras pérolas, ouviu-se a estafada, pró-turística e irreflectida comparação com o Brasil que “teve 286.000 casos de dengue e 74 mortes”, enquanto nós, talvez por milagre ou meiguice do mosquito madeirense, apenas somáramos “2.000 casos e nenhuma morte...” Maravilha, ponham os olhos nesta diferença que fez impar o orgulho regionalista. O problema é que, se pensarmos em termos de escala, tudo isto nos murcha rapidamente: o Brasil tem 200 milhões de habitantes, a Madeira pouco mais de 250.000. Isto é: se a dinâmica da nossa epidemia de dengue fosse transposta para a população brasileira isso amplificaria os seus 286 mil casos para 1,6 milhões de doentes... Não é por aqui que nos podemos gabar ou angariar potenciais turistas... Quanto à tranquilidade com que, no presente, adormecemos perante a total ausência de mortes da epidemia portuguesa seria prudente não cuspir para o ar, pois, como disse acima, o dengue é geralmente simpático apenas na primeira visita e ainda não houve tempo para uma segunda...
Na dança das comparações absurdas, outros argumentos de irmandade foram esgrimidos, tal como o apontar do dedo à existência de casos recentes de dengue no Norte da Europa (exportados pela Madeira, recorde-se) ou o lamento fadista de que temos de nos habituar a viver com isto, como se nada se pudesse, ou devesse, fazer para tentar controlar a epidemia... Seria bem melhor que, calados, metêssemos mãos à obra, pois, tal como acontece com os famigerados mercados, os agentes turísticos internacionais e os mosquitos transmissores de dengue pouco se deixarão impressionar pelos perdigotos dos esconjuros soprados aos microfones portugueses.
Num tom comedido e discreto, o ministro da Saúde, em jeito de comentário final, referiu a importância de uma vigilância apertada do problema e a preparação de um plano de contingência para controlar e minorar a situação. Ou seja, deu a medida técnica a ser dada perante um problema que é sério e deve ser encarado de forma séria. Valha-nos isso!    
© Fotografias de Pedro Serrano: Funchal, Novembro 2012