Em casa dos meus pais nunca houve o
hábito da árvore de Natal. O que se praticou, década após década, foi o
presépio, na sua forma mais clássica de sagrada família, animais de aquecimento
central, e delegação de visitantes.
No começo, há muitos anos, havia um
sábado frio de Dezembro em que, como se partíssemos para uma caçada, o meu pai e
eu saíamos no carro até a uma mata próxima para recortar o tapete de musgo que
serviria de chão ao presépio, a mala do automóvel acautelada com plásticos,
caixotes de papelão e enxadas.
Ao regressar, esturricados de frio, as
unhas enclavinhadas pela textura alienígena da terra, a satisfação pelas
provisões alcançadas chocava com o carpir da minha mãe perante os torrões que,
ao ser transportados para o canto do hall onde o presépio seria montado,
conspurcavam tapetes e alcatifas e, como se isso não fosse pouco, dispersariam no
esquecimento dos rodapés uma desenrolada minhoca ou uma estremunhada centopeia,
arrancadas ao seu hibernar pela trasladação das terras.
Inventivo na caçada, o meu pai juntara
às postas de musgo, cuidadosamente empilhadas no fundo do caixote, uns galhos
de azevinho, umas ramadas de carvalho com bolotas penduradas, pujantes maços de
fetos, um esquecido ninho de pássaro... Tudo aquilo esconderia o branco da
parede e serviria lindamente o horizonte dos personagens que rondavam a
manjedoura, um fundo florestal de fazer inveja a Belém da Judeia e quase tão
frondoso como Belém do Pará...
O presépio era persistentemente construído
no mesmo canto do hall, tendo, a oeste, como fronteira terrestre a mesinha do
telefone e a leste, por onde chegariam os reis magos, o primeiro lance das
escadas para o andar de cima, sob as quais, aliás, numa arrecadação bafienta se
guardavam os enfeites de Natal.
Embora me prestasse à tarefa com
naturalidade, o meu coração aproximava-se sempre mais da boca quando, avançando
sobre os joelhos, penetrava na arrecadação sem luz, os braços tacteando as
caixas que, uma a uma, empurrava à minha irmã que, esperando do lado de fora,
ia querendo saber:
“Há muitas aranhas aí dentro...? Vês
caganitas de ratos?”
Regressado ao mundo, depois de, pela
bravura, conceder a mim próprio uma rabanada surripiada ao armário da copa,
abríamos os caixotes dos enfeites como se eles próprios fossem uma antecipação
dos presentes a vir e não uma repetição de um recheio já bem nosso conhecido:
primeiro alinhávamos as bolas de vidros, onde as nossas caras, distorcidas em contornos
surreais, se espelhavam por dourados, prateados, vermelhos e azuis; dispondo as
casquinhas de vidro metalizado, em forma de losango, em forma de cabaça ou pinha
estilizada, sobre a mesa do hall, para, a seguir as ir semeando pelas divisões
da casa mais susceptíveis de serem visitadas pelos convidados na noite da ceia.
A segunda parte da nossa missão, fiscalizada pelas intermitências de uma criada
ou pontuada pelas sugestões benévolas do nosso pai, era a mais árdua para
perseveranças ainda verdes e consistia no desentrelaçar das fitas, rolos,
echarpes farfalhudas, das serpentinas de talha dourada que serviriam para
dispor sobre mesas e aparadores, pendurar dos caixilhos, enrolar nas armações
dos candeeiros e proporcionar riqueza festiva ao ambiente, como se um nevão
multicolor, soprado por um arco-íris de inverno, tivesse aterrado na sala de jantar,
no salão da lareira.
A caixa mais pesada continha,
resguardados do choque por papel de jornal, os personagens principais de toda
aquela agitação: as imagens do presépio, peças moldadas em gesso sobre uma
estrutura de arame, com finos acabamentos de pintura, feitos à mão, que dava
gosto esmiuçar com uma leve passagem de dedo: o Menino, nossa Senhora, S. José,
a vaca e o burrinho, os reis, soldados aos seus camelos e, mais secundários à
trama mas não menos perfeitos no acabamento, o jovem pastor que, sentado numa
sebe, sopra uma flauta de Pã ou, um pouco distante do ajuntamento, um velhote
careca, de suíças à Dickens, que suspende na mão uma candeia como se estivesse
a conferir se todas as ovelhas dispersas pelo musgo encontram, naquela noite que
arrefeceu subitamente, o caminho de regresso ao redil.
Com o tempo, como na vida real, perdas
e ganhos chegaram àquele último caixote: nas sucessivas arrumações uma das
patas do camelo do Gaspar partiu-se e deixou à mostra o branco do gesso, o
arame da estrutura, pelo que se torna necessário equilibrá-lo, com cuidado,
sobre a sua colina de musgo, esconder a pata e o casco por trás da fardeta, em
azuis e dourados, de um dos músicos de banda que transitou, sabe-se lá como, para
o material natalício vindo de uma cascata de S. João juntamente com o par que empunha
um arco e balão...
No fim de ser encenada, toda aquela
miscelânea produzia intensa impressão às retinas dos membros mais novos da
família que, mal desembaraçados dos abafos na noite, corriam para aquele canto
da entrada da casa onde um candeeirinho de secretária de pescoço flexível, entalado
num degrau das escadas, fazia jorrar uma luz de milagre sobre a estrela de
braços assimétricos, confeccionada e forrada à última da hora, suspensa sobre o
presépio.
De joelhos, sustendo-a nos braços,
pois queria pegar no menino Jesus a toda a força e com isso virar o ninho da
manjedoura de pernas para o ar, observava a minha sobrinha Ana Margarida a
esticar um dedo tremeluzente em direcção às palhinhas ou, anos volvidos,
impedia, num abraço semelhante, o meu filho de entrar a correr pelo presépio
dentro, torcendo-se com entusiasmo para a vaca e o burro que, por trás do
menino Jesus, o miravam numa adoração pestanuda.
“É, é uma vaquinha... E olha ali os carneirinhos,
o menino a tocar flauta...”
A cena repetir-se-ia, perante as
mesmas testemunhas de gesso, nos anos seguinte, só que desta vez é a Ana
Margarida a suster nos braços o seu Manelzinho que, pelo indicador gorducho,
quer saber quem é cada um daqueles bonecos e o que fazem naquele canto debaixo
das escadas, ao pé do telefone.
“É o bebé que nasceu, está na caminha;
e aquela, de azul, é a mamã do bebé...”
Depois, cada um foi para seu lado
viver a sua vida, mas, mesmo após a morte da minha mãe, o meu pai continuou a
tratar do presépio enquanto pôde e, na noite de Natal, ele ali estava sob o meu
olhar rápido ao atravessar o hall, a mesma estrela assimétrica colada ao tecto
com fita cola. Agora, com a casa fechada, que será feito das caixas com os
enfeites de Natal? Será que continuam à espera na arrecadação por baixo das
escadas? Será que os bonecos de gesso pintado se conservam silenciosos e mudos
como o resto da casa ou será que, em véspera de consoada, saem cá para fora e,
espalhados pelo chão nu, recordam entre si, na emoção disfarçada própria a quem
envelheceu, as noites em que eram a alma brilhante daquele canto da casa?
Fotografias de Pedro Serrano, Porto: (1) Novembro 2010; (2) Dezembro, 2010; (3) Novembro 2008; (4) Julho 2010.
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