04 dezembro 2012

VOU-TE CONTAR. 54: NATAL C/ TODOS


Em casa dos meus pais nunca houve o hábito da árvore de Natal. O que se praticou, década após década, foi o presépio, na sua forma mais clássica de sagrada família, animais de aquecimento central, e delegação de visitantes.
No começo, há muitos anos, havia um sábado frio de Dezembro em que, como se partíssemos para uma caçada, o meu pai e eu saíamos no carro até a uma mata próxima para recortar o tapete de musgo que serviria de chão ao presépio, a mala do automóvel acautelada com plásticos, caixotes de papelão e enxadas.
Ao regressar, esturricados de frio, as unhas enclavinhadas pela textura alienígena da terra, a satisfação pelas provisões alcançadas chocava com o carpir da minha mãe perante os torrões que, ao ser transportados para o canto do hall onde o presépio seria montado, conspurcavam tapetes e alcatifas e, como se isso não fosse pouco, dispersariam no esquecimento dos rodapés uma desenrolada minhoca ou uma estremunhada centopeia, arrancadas ao seu hibernar pela trasladação das terras.
Inventivo na caçada, o meu pai juntara às postas de musgo, cuidadosamente empilhadas no fundo do caixote, uns galhos de azevinho, umas ramadas de carvalho com bolotas penduradas, pujantes maços de fetos, um esquecido ninho de pássaro... Tudo aquilo esconderia o branco da parede e serviria lindamente o horizonte dos personagens que rondavam a manjedoura, um fundo florestal de fazer inveja a Belém da Judeia e quase tão frondoso como Belém do Pará...
O presépio era persistentemente construído no mesmo canto do hall, tendo, a oeste, como fronteira terrestre a mesinha do telefone e a leste, por onde chegariam os reis magos, o primeiro lance das escadas para o andar de cima, sob as quais, aliás, numa arrecadação bafienta se guardavam os enfeites de Natal.
Embora me prestasse à tarefa com naturalidade, o meu coração aproximava-se sempre mais da boca quando, avançando sobre os joelhos, penetrava na arrecadação sem luz, os braços tacteando as caixas que, uma a uma, empurrava à minha irmã que, esperando do lado de fora, ia querendo saber:
“Há muitas aranhas aí dentro...? Vês caganitas de ratos?”
Regressado ao mundo, depois de, pela bravura, conceder a mim próprio uma rabanada surripiada ao armário da copa, abríamos os caixotes dos enfeites como se eles próprios fossem uma antecipação dos presentes a vir e não uma repetição de um recheio já bem nosso conhecido: primeiro alinhávamos as bolas de vidros, onde as nossas caras, distorcidas em contornos surreais, se espelhavam por dourados, prateados, vermelhos e azuis; dispondo as casquinhas de vidro metalizado, em forma de losango, em forma de cabaça ou pinha estilizada, sobre a mesa do hall, para, a seguir as ir semeando pelas divisões da casa mais susceptíveis de serem visitadas pelos convidados na noite da ceia. A segunda parte da nossa missão, fiscalizada pelas intermitências de uma criada ou pontuada pelas sugestões benévolas do nosso pai, era a mais árdua para perseveranças ainda verdes e consistia no desentrelaçar das fitas, rolos, echarpes farfalhudas, das serpentinas de talha dourada que serviriam para dispor sobre mesas e aparadores, pendurar dos caixilhos, enrolar nas armações dos candeeiros e proporcionar riqueza festiva ao ambiente, como se um nevão multicolor, soprado por um arco-íris de inverno, tivesse aterrado na sala de jantar, no salão da lareira.
A caixa mais pesada continha, resguardados do choque por papel de jornal, os personagens principais de toda aquela agitação: as imagens do presépio, peças moldadas em gesso sobre uma estrutura de arame, com finos acabamentos de pintura, feitos à mão, que dava gosto esmiuçar com uma leve passagem de dedo: o Menino, nossa Senhora, S. José, a vaca e o burrinho, os reis, soldados aos seus camelos e, mais secundários à trama mas não menos perfeitos no acabamento, o jovem pastor que, sentado numa sebe, sopra uma flauta de Pã ou, um pouco distante do ajuntamento, um velhote careca, de suíças à Dickens, que suspende na mão uma candeia como se estivesse a conferir se todas as ovelhas dispersas pelo musgo encontram, naquela noite que arrefeceu subitamente, o caminho de regresso ao redil.
Com o tempo, como na vida real, perdas e ganhos chegaram àquele último caixote: nas sucessivas arrumações uma das patas do camelo do Gaspar partiu-se e deixou à mostra o branco do gesso, o arame da estrutura, pelo que se torna necessário equilibrá-lo, com cuidado, sobre a sua colina de musgo, esconder a pata e o casco por trás da fardeta, em azuis e dourados, de um dos músicos de banda que transitou, sabe-se lá como, para o material natalício vindo de uma cascata de S. João juntamente com o par que empunha um arco e balão...

No fim de ser encenada, toda aquela miscelânea produzia intensa impressão às retinas dos membros mais novos da família que, mal desembaraçados dos abafos na noite, corriam para aquele canto da entrada da casa onde um candeeirinho de secretária de pescoço flexível, entalado num degrau das escadas, fazia jorrar uma luz de milagre sobre a estrela de braços assimétricos, confeccionada e forrada à última da hora, suspensa sobre o presépio.
De joelhos, sustendo-a nos braços, pois queria pegar no menino Jesus a toda a força e com isso virar o ninho da manjedoura de pernas para o ar, observava a minha sobrinha Ana Margarida a esticar um dedo tremeluzente em direcção às palhinhas ou, anos volvidos, impedia, num abraço semelhante, o meu filho de entrar a correr pelo presépio dentro, torcendo-se com entusiasmo para a vaca e o burro que, por trás do menino Jesus, o miravam numa adoração pestanuda.
“É, é uma vaquinha... E olha ali os carneirinhos, o menino a tocar flauta...”
A cena repetir-se-ia, perante as mesmas testemunhas de gesso, nos anos seguinte, só que desta vez é a Ana Margarida a suster nos braços o seu Manelzinho que, pelo indicador gorducho, quer saber quem é cada um daqueles bonecos e o que fazem naquele canto debaixo das escadas, ao pé do telefone.
“É o bebé que nasceu, está na caminha; e aquela, de azul, é a mamã do bebé...”
Depois, cada um foi para seu lado viver a sua vida, mas, mesmo após a morte da minha mãe, o meu pai continuou a tratar do presépio enquanto pôde e, na noite de Natal, ele ali estava sob o meu olhar rápido ao atravessar o hall, a mesma estrela assimétrica colada ao tecto com fita cola. Agora, com a casa fechada, que será feito das caixas com os enfeites de Natal? Será que continuam à espera na arrecadação por baixo das escadas? Será que os bonecos de gesso pintado se conservam silenciosos e mudos como o resto da casa ou será que, em véspera de consoada, saem cá para fora e, espalhados pelo chão nu, recordam entre si, na emoção disfarçada própria a quem envelheceu, as noites em que eram a alma brilhante daquele canto da casa?

Fotografias de Pedro Serrano, Porto: (1) Novembro 2010; (2) Dezembro, 2010; (3) Novembro 2008; (4) Julho 2010.

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