Trintão, dez anos mais velho do que a
média dos outros famosos, quando estourou no mundo da música (1967-1969) e adolescentes acompanhados por uma viola perramente harpejada miavam o “Suzanne” e o
“So Long Marianne”, eu não gostava dele. Achava-o chato, no género
cantor-sem-voz as minhas preferências iam todas para o Dylan, que se
electrificara havia pouco e cantava histórias mais exuberantes.
Quem sempre gostou muito dele foi o
meu cunhado Pedro e essa era uma preferência tão vincada que no inverno de 2001,
ao ver num escaparate o disco novo, o comprei para lho oferecer como prenda de sapato.
“Olha o Cohen”, pensara ao olhar a
capa, “não sabia que o gajo ainda andava por aí... Já deve ter quase 70 anos!”
De facto, há quase dez anos que o
homem não editava um álbum e aquele Ten
New Songs era novidade acabada de sair, produto mesmo a tempo do Natal.
Cheguei a casa e, curioso, pus o
futuro presente do Pedro a rodar no leitor de CD. Todas as dez canções, letras
e músicas, eram espantosas, não mais parei de as escutar, suponho ter ouvido o
disco milhares de vezes desde então, umas centenas logo nesse Dezembro vazio e
gelado.
Meia dúzia de anos depois, ao ver um
anúncio do festival Optimus Alive,
reparei que uma das atrações era Leonard Cohen. Comprei bilhete e guiei até Alcântara,
desprevenido de todo naquela curiosidade recente pelo homem. Estava uma noite
de verão indescritível, daquelas que apenas são convocadas para um filme, uma
lua cheia irradiava perfeita em brilho e dimensão, o palco fora montado na
margem do rio e essa presença de água sentia-se na macieza da luz e da brisa
que abençoavam o recinto. Assisti ao concerto de pé, era um espectáculo sem
cadeiras ou lugares marcados, espetado no meio de uma multidão e sem o poder
evitar, aí pela terceira canção (“Bird on the Wire”, acho) senti uma mão de
veludo envolver-me a garganta e lágrimas a deslizarem mansamente. Apesar de ser
noite adiantada, a lua derramava uma luz diurna sobre o terreiro e, entre duas
canções, espreitei em volta, embaraçado, a investigar se alguém reparava na
minha triste figura. Não precisei de me preocupar: lágrimas não rareavam por
ali e o público parecia igualmente hipnotizado e comovido pelo balanço
encantado que chegava do palco.
No género pronto-a-vestir, nada mais
parecido com uma experiência mística do que ver Leonard Cohen em palco, algumas
das suas canções são o que de mais semelhante pode haver com um hino, ou aquilo
que a gente imagina que um hino deva soar no coração dos crentes.
Este Outubro de 2012 voltou a Portugal, e logo
ao entrar no palco, de soalho revestido de tapetes como é costume, disse:
“Espero vir a encontrar-vos mais
vezes, mas, se isso não acontecer, prometo que hoje daremos tudo...”
O artista tem 78 anos, já passou por tudo
que é imaginável, só continua a dar concertos porque a ex-fiel empresária lhe fugiu com o dinheiro todo, e, embora não seja apropriado
como cartão de visita de um profissional do entretenimento, foi calmante ouvir esse
equivalente a: “Deixemo-nos de merdas, já sou velho, cada vez pode ser a
última...”
Dito isto, o nosso homem não parou de
cantar ou recitar nas três horas seguintes, deixando cada espectador no charco
de sonho que lhe cabia ao redor da sua cadeira do Pavilhão Atlântico. Eu, já me
sei, de novo especialmente tocado por “Bird on the Wire”, “The Partisan”, “Secret
Life”, “Alexandra Leaving”, estas duas últimas canções novas no tal CD que
comprei para o meu cunhado nesse Natal gelado de há dez anos atrás.
Todas estas canções são (pelo menos
mentalmente) em tom menor, mas nenhuma agasalha tão grande desalento como “Famous
Blue Raincoat”, uma história de amor que acaba mal, conforme vai sendo cantada
ao traidor, pela voz do traído, uma noite de Dezembro já distante do crime, por
volta das quatro da manhã.
© Fotografia do palco: Pedro Serrano, 2012.
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