No Taj
Mahal Palace, em Bombaim, mesmo ao lado da Gate of India, os hóspedes deixam os quartos para jantar por volta
das oito da noite, razão pela qual, quando fechámos a porta do nosso, bem após
as oito, já não encontrámos ninguém no belíssimo jogo de escadas que leva aos
andares inferiores e à saída. Mas dizer ninguém será talvez excessivo, pois,
com toda a discrição, aproveitando a hora morta, um rapazito, manejando um
aparelho em tudo semelhante a um extintor de incêndio, aspergia com aplicação os
rodapés do corredor e as ombreiras das portas que davam para os aposentos dos
hóspedes.
Não ignorava do que se tratava, já assistira
àquilo em hotéis de outras cidades indianas, mas, mesmo assim, aproximei-me e
indaguei a que se destinava o que fazia.
“Pest control”, respondeu.
Esta cena passou-se no início de
Fevereiro de 2012, época seca na Índia e tempo de reduzida actividade para
mosquitos e outros insectos transmissores de doenças, animais sempre mais ávidos
e frequentes na altura das monções, época de chuvas e calor intenso que, nos
trópicos, atinge o seu auge entre Abril e Agosto de cada ano.
Aedes aegypti. |
Nos primeiros dias de Novembro do
mesmíssimo ano, desloquei-me à ilha da Madeira, local para onde, nos últimos 25
anos, tenho viajado a ritmo praticamente anual. Sabia que, desta vez, encontraria
na ilha um surto de dengue, doença viral transmitida pela picada de um mosquito
especial (o Aedes aegypti), mas não ia
à espera de encontrar muita mosquitada, pois estávamos em plena estação fria e
se há coisa que os mosquitos detestam é frio.
Pois muito me enganei, e dei-me conta
disso mal pousei as malas no hotel da baixa do Funchal onde fiquei instalado.
Em pleno dia, com as janelas fechadas, vários mosquitos tentavam passar
despercebidos nas pregas dos cortinados do quarto e no tecto do armário guarda-fatos,
localização (sei-o de África) onde adoram esconder-se, pois, pela escuridão e
confinamento, ficam mais resguardados de ser surpreendidos por uma almofada ou pelo
raio do espectro de um insecticida.
Espantado com tanto mosquito em pleno
dia e algo preocupado, pois o Aedes
é, ao contrário de outros mosquitos que só atacam ao anoitecer (como o que
transmite a malária), um day-feeder,
desci à recepção e pedi se me emprestavam um spray de insecticida para aplicar
no quarto antes de sair para jantar, técnica que também aprendi a usar em
África: aspergir o quarto antes de sair para, no regresso, os mosquitos estarem
mortos e o aposento livre dos efeitos do veneno, que é de semivida curta, quer
dizer: age de imediato e rapidamente se torna inactivo, e por isso não tóxico
para humanos.
Ao pedido a senhora da recepção fez
aquele ar de ‘isso é que era bom’ e respondeu:
“Não, não há cá disso. Se nem para nós
temos...!”
Fiquei esclarecido, perguntei onde era
o centro comercial mais perto.
Ao contrário do que sucede nos
supermercados do Continente, onde produtos como insecticidas, repelentes de
traças, xarope para caruncho e remédios similares, se subalternizam em
corredores esconsos e em prateleiras que nos obrigam a pôr de cócoras para os
encontrar, no Pingo Doce ao lado do
mercado do Funchal todo este arsenal se encontrava num cruzamento entre
corredores principais, bem exposto, bem iluminado, melhor publicitado e numa
quantidade e variedade que fazia lembrar um paiol militar! Este foi o primeiro
rumor silencioso que me alertou para que algo, com uma dimensão superior ao que
parecia, se estava a passar. E o que parecia a todos, o que se fazia crer pelas
notícias, pelo menos visto do quadrilátero luso, era que o que se passava na
Madeira era situação sem contornos especiais, a caminho de se resolver um dia
desses, não aconselhando medidas especiais nem restrições nas deslocações
àquelas paragens. Ao ser aflorada a sensível questão do turismo, o contexto Madeirense era pacificamente comparado ao do Brasil ou de outros países
tropicais ou subtropicais onde também havia dengue e, dizia-se, as pessoas também
não deixavam de lá ir por causa disso. Toda esta paz de comportamento me
surpreendia, e ver que as eventuais discussões sobre as repercussões
sobre o turismo eram dadas como satisfatoriamente encerradas pela comparação
com outros países parecia-me argumentação demasiado à superfície. De facto,
quando faço as malas para ir para a Tanzânia sei que vou para África e o que
posso esperar, quando arrasto a Sansonite para apanhar o avião para as Canárias
ou para o Funchal julgo que vou para a Europa!
Entretanto, na Madeira, o segundo
sinal indirecto foi-se-me entrando pelos olhos dentro ao mirar as montras das
lojas dos chineses que, tal como os mosquitos, invadiram o centro da capital
madeirense e tomaram conta do comércio local, mais uma semelhança com África...
Na montra de cada uma destas lojas havia, pendurada em gritante evidência, uma
daquelas raquetas eléctricas que, brandida como um instrumento de ping-pong ou,
mesmo mais elegantemente – como um leque, carboniza os incautos animaizinhos
voadores com um aprazível ruído de febra a ser afogada numas brasas.
Faltava, para a evidência se tornar
completa, uma volta pelas ruas do Funchal e nunca me senti tão em África, não
na África árabe do Norte (Marrocos, Tunísia...), mas na África negra, aquela onde
a gente, quando se enfia no avião, já sabe que vai encontrar uma gama floreada
de bicharada, potencialmente perigosa, deserta para nos sugar. No Funchal, em
Novembro, vi mosquitos em todo o lado, a profusão aconselhando o evitar das esplanadas,
mas mesmo dentro de estabelecimentos (à semelhança do que fazia em Angola),
dei comigo a jantar com o tubo do repelente de mosquitos aberto em
cima da mesa, pois os tipos detestam o cheiro daquilo (quanto mais o sabor) e,
logo que o sentem, voam, amuados, para outra mesa.
“Mas o que se passou aqui?” Aquela
ilha, a nossa pérola turística do tempo ameno todo o ano, não era mais a que eu
me habituara a conhecer...
Isto, que conto, teve lugar há
exactamente um mês e o que se sabe agora? Que o mosquito Aedes aegypti, que não
existia na Madeira e para onde terá migrado (vindo possivelmente do Brasil ou
da Venezuela) há meia dúzia de anos, aproveitou estes anos, em que ninguém
reparou nele e lhe deu luta, para se adaptar ao local e se tornar apto a
infectar humanos. Conseguido isso, num repente o pequeno surto se transformou em brutal epidemia: em dois meses 2.000 casos numa população de cerca de 250.000 habitantes.
À nossa escala isso seria algo como, em cenário semelhante, termos novos 80.000
casos de dengue em Portugal.
Destes 2.000 casos confirmados, 35 são
em turistas estrangeiros, ou seja, transmitidos
por mosquitos madeirenses a
pessoas que foram adoecer nos seus países de origem o que, divergindo das
brandas palavras portuguesas sobre as implicações disto tudo, começaram já a
tornar pública lá fora a opinião de que o mais sensato é evitar a Madeira como destino
turístico. Na realidade, com tanta ilha no mundo onde ir passar férias, para
quê pensar num fim de mundo onde nem sequer os hotéis têm uma
lata de insecticida para emprestar a um hóspede com o quarto assombrado por zumbidos
estranhos?
© Fotografias (excepto a do mosquito) de Pedro Serrano: (1) Bombaim, Índia, Fevereiro 2012; (2) e (3), Funchal, Novembro 2012.
Sabes o que mais me choca? Segundo consta o mosquito chegou ao país numas palmeiras que foram trazidas por motivo das eleições, não tendo sido respeitado o tempo de quarentena necessário.
ResponderEliminarSe isto for verdade, a política passou a um novo n
nível: além de nos tirar dinheiro, agora também nos tira saúde!
abraço, Gil
@ Gil, É duvidoso que se consiga precisar o modo como o mosquito chegou à Madeira. Pode ter sido de várias formas, designadamente através de pneus com água acumulada, transportados nalgum barco. Não se irá nunca saber com segurança. Quanto à política, podes crer que ela sempre teve grande capacidade em nos tirar a saúde e o fenómeno não é novo! Abraço.
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