Quando um dos seus colaboradores adoece
com dengue, é regra das Organizações Não Governamentais (ONG) com trabalho no
âmbito da cooperação internacional mandar regressar esse colaborador à base e
informá-lo que os seus tempos de missão no exterior chegaram ao fim. Nunca mais
essa alma poderá, ao serviço dessa ONG ou de outra igualmente cuidadosa, voltar
a trabalhar nesse projecto, nesse local, nesse país ou em outros onde possa
haver notícia de dengue. Santo Deus, pensarão porventura os meus ouvintes, que
medida tão desproporcionada para uma doença que é, genericamente, tão benévola,
por vezes assemelhando-se a pouco mais do que uma gripe com umas manchitas na
pele...
Sim, mas por trás desta medida
draconiana das ONG existe uma razão, muito razoável do ponto de vista da saúde
das pessoas envolvidas. Podendo ser provocado por quatro formas ligeiramente diferentes
do vírus (sempre transmitidos pela picada do nosso amigo mosquito Aedes), o dengue é geralmente benigno no
seu primeiro episódio, mas se acontece a quem já teve a doença ser repicado por
mosquito infectado com um dos outros tipos de vírus – e isso nunca se sabe
quando e como vai acontecer – a possibilidade de ter uma forma grave,
hemorrágica, da doença aumenta bastante. E a gravidade de um dengue hemorrágico,
sobretudo em doentes deficientemente tratados, pode ser tão dramática que chega
a matar 40 % desses doentes, um poder mortífero sobreponível à de alguns dos
cancros mais agressivos.
Toda esta conversa prévia me serve
para comentar, de forma mais fundamentada, as declarações que os jornais estamparam
na sequência da visita à Madeira de uma comitiva de personalidades, entre as
quais o nosso ministro da Saúde que, preocupado com a dimensão do fenómeno, se
quis deslocar ao território para se inteirar do modo como o assunto estava a
ser enquadrado por quem deve lidar com ele.
Durante a iniciativa, e como é
costume, houve quem aproveitasse os microfones da comunicação social para
regurgitar as opiniões mais levianas e, entre outras pérolas, ouviu-se a
estafada, pró-turística e irreflectida comparação com o Brasil que “teve 286.000
casos de dengue e 74 mortes”, enquanto nós, talvez por milagre ou meiguice do
mosquito madeirense, apenas somáramos “2.000 casos e nenhuma morte...” Maravilha,
ponham os olhos nesta diferença que fez impar o orgulho regionalista. O
problema é que, se pensarmos em termos de escala, tudo isto nos murcha rapidamente:
o Brasil tem 200 milhões de habitantes, a Madeira pouco mais de 250.000. Isto
é: se a dinâmica da nossa epidemia de dengue fosse transposta para a população
brasileira isso amplificaria os seus 286 mil casos para 1,6 milhões de doentes...
Não é por aqui que nos podemos gabar ou angariar potenciais turistas...
Quanto à tranquilidade com que, no presente, adormecemos perante a total ausência
de mortes da epidemia portuguesa seria prudente não cuspir para o ar, pois,
como disse acima, o dengue é geralmente simpático apenas na primeira visita e ainda não houve tempo para uma segunda...
Na dança das comparações absurdas,
outros argumentos de irmandade foram esgrimidos, tal como o apontar do dedo à
existência de casos recentes de dengue no Norte da Europa (exportados pela
Madeira, recorde-se) ou o lamento fadista de que temos de nos habituar a viver
com isto, como se nada se pudesse, ou devesse, fazer para tentar controlar a
epidemia... Seria bem melhor que, calados, metêssemos mãos à obra, pois, tal
como acontece com os famigerados mercados,
os agentes turísticos internacionais e os mosquitos transmissores de dengue
pouco se deixarão impressionar pelos perdigotos dos esconjuros soprados aos
microfones portugueses.
Num tom comedido e discreto, o
ministro da Saúde, em jeito de comentário final, referiu a importância de uma
vigilância apertada do problema e a preparação de um plano de contingência para
controlar e minorar a situação. Ou seja, deu a medida técnica a ser dada perante um problema que é sério e deve ser encarado de forma séria. Valha-nos
isso!
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