24 agosto 2021

CONTRAFACÇÃO

  


                         Como mencionaste as nuvens
                         De uma tarde que anoitece

                         Enviei-te o retrato exacto

                         De uma noite que amanhece

 

                         Não deste pela diferença

                         Já que nuvens por lá estão

                         Quanto ao resto, pouco importa

                         Se não passou de ilusão

 

                         Falavas da fímbria rosada

                         De um sol que, indo, se demora

                         Ora uma tal tonalidade

                         Tinge também o nascer da aurora

 

                         Não deste pela diferença

                         Nem viste a contrafacção

                         Não é pela senda da verdade

                         Que palmilha o coração


© foto: pedro serrano, bico do muranzel, julho 2021.

22 agosto 2021

DE MORTUIS NIL NISI BONUM (Não faleis senão bem dos mortos)

Encontrei-o um dia numa das esquinas a nascente da rotunda da Boavista, na cidade do Porto. Visto de hoje, o paradeiro era até bastante lógico, pois ele morava a um quarteirão dali, na rua da Quinta Amarela. Mas estávamos num fim de manhã em 1969, eu tinha quinze ou dezasseis anos, não perdia tempo com detalhes desses.

Tudo quanto vi foi o meu colega de liceu Miguel Lamares, armado de um sorriso superior na cara barbada, nos olhos míopes ampliados por lentes grossas. Se comparado comigo, um tipo finguelas, ele é enorme, avantajado, há algo que lembra um urso e lhe dá um toque assustador, embora seja um bonacheirão. O Miguel está ali parado, como um poste do correio, daqueles redondos e grossos, tal se estivesse à espera de alguém que o arrancasse à imobilidade e aconteceu que esse alguém fosse eu. 

"Se soubesses o que tenho aqui..."

"O que é, Miguel?", digo, percebendo que se refere a um quadrilátero esbranquiçado que transporta encaixado no sovaco.

Ele não diz nada, olha em frente, para o passeio do lado de lá da rua, mas remexe o sovaco, revela um pouco mais e, pelo formato percebo que é um disco, um LP.

"O que é, Miguel, deixa ver..."

"Aposto que nunca ouviste nada como isto", continua ele, misterioso como um menir.

"Não sei, sei lá; se não me mostras..."

"Já ouviste uma música chamada 'Soul Sacrifice'...?”

Confessei que não.

"E uma chamada 'Evil Ways'?”

"Também não..."

"Estás ultrapassado, merdoso", concluiu com o à vontade e a sobranceria de ser uns meses mais velho do que eu. "Isto é o que vai dar... Isto é um som totalmente novo..."

Depois, como se fizesse um strip lento, permitiu que eu olhasse a capa do álbum, na qual um focinho arreganhado de leão se contornava a carvão numa caricatura em que surgiam cabeças rapadas, humanas, camufladas nas minudências do desenho. Não era preciso ser muito esperto para concluir que não iria emprestar o disco a um tipo que, afinal de contas, conhecia tão mal, mas não desisti de tentar ouvir aquilo: que raio de banda se iria chamar Santana? Até parecia uma coisa portuguesa, minhota, de rancho folclórico! Santana!?

"Se eu te levar uma cassete, gravas-me isso?"

"É uma hipótese...", respondeu.  

É óbvio que acabou por gravar, que o Miguel, apesar do gigantismo intimidante e dos modos ásperos, era um coração de leão, largo e bondoso.

O tempo tiquetaqueou, frequentamos agora Universidades diferentes (ele em Matemáticas, eu em Medicina) mas continuamos a cruzar-nos no mesmo café, onde arrastamos o nosso tédio pelas mesas. E de um desses enormes bocejos, nasceu a ideia de irmos dar uma volta longa, quem se daria conta de que perdíamos umas aulas enfadonhas, ainda por cima a Páscoa iria, em breve, riscar a Primavera de pétalas e céus de anil.

Arrancámos no meu Fiat 128 sem outro destino fixo do que virar a tromba azul do carro para sul. A combinação dos quatro ocupantes do automóvel era bastante improvável, alguns de nós mal conhecia alguns dos outros: ia eu, ao volante, o Miguel a meu lado, para que lhe coubessem as pernas e, no banco de trás, seguia o Paulo (uma gralha matraqueante e excêntrica, que não se calava um minuto) e, cosendo-se com o assento, o Vítor, aluno de engenharia, um tipo pequenino e cabeçudo, tímido como um colibri, que não abria a boca senão para gargalhar um murmúrio a cada disparate que o Paulo soltava, a cada réplica, cortante ou sarcástica, que um dos ocupantes da frente dava. Assim deambulámos por quase uma semana e, no Algarve, o ar já estava tépido e fragrante do odor das laranjeiras... Ficámos dois dias por Faro, instalados na Pensão Nautilus, de onde escrevi um postal endereçado a mim próprio, por gosto em captar o momento e para chocar os meus pais.

Nunca, nunca mais vi o Miguel e, apesar de ir perguntando a seres coetâneos com quem me ia cruzando, nada mais soube sobre ele. A imagem que me ficou da sua pessoa, cristalizada na memória, foi a daquele tipo de cabelo escuro, comprido e algo indomável nas pontas encrespadas; o bigode farfalhudo; uns olhos bondosos camuflados atrás do fundo da garrafa das lentes. Já neste século, usando o Facebook, inseri o seu nome e observei as opções que me foram devolvidas pelo motor de busca... Havia um Miguel Lamares, residente em Portimão, professor de liceu, que talvez pudesse ser ele. Mas não podia ter a certeza, a confidencialidade dos dados não me permitia ver fotos, ter acesso a mais elementos. Resolvi mandar uma mensagem, particular, que o Facebook deixava fazê-lo. Nunca obtive resposta.


Presente, Agosto de 2021: chega-me a notícia da morte dele, aos 69 anos, lá pelo Sul onde estivemos juntos uma vez; residia em Portimão, onde era professor no liceu local há trinta anos. A notícia do jornal electrónico é encimada por duas fotos: à esquerda, a preto e branco, o Miguel que eu conheci nesses dias dos nossos vinte anos, e, à direita, um Miguel, a cores, que não reconheceria se por ele passasse numa esquina a nascente da Rotunda da Boavista. Este último Miguel é um bocado careca, não usa óculos e os seus olhos, enfim revelados, são atentos, sorridentes e hospitaleiros. Nada que não estivesse à espera.

 

 

06 agosto 2021

DAVID MOURÃO FERREIRA E O LUGAR VAZIO

Pela segunda metade dos anos 80, e na primeira metade da década de 90, frequentei com alguma assiduidade um restaurante lisboeta que se identificava no néon como Dragão D'Ouro.

Como o nome sugere, o Dragão D'Ouro é restaurante chinês e ficava, algo recuado ao alinhamento dos prédios da artéria, numa transversal da Avenida de Roma, vizinho do Hotel Lutécia e do cinema King Triplex.

Ao contrário dos restaurantes chineses que, na capital, se concentravam na proximidade da Avenida Duque de Loulé, o Dragão D'Ouro era um restaurante chinês requintado, fosse pelas instalações, amplas e onde abundava o tom quente dos apainelados de madeira, fosse pelo menu, excelente em todas as sopas, crepes ou pratos que decidíssemos encomendar. Apesar destas qualidades, o restaurante encontrava-se frequentemente despovoado, o que lhe conferia uma sonolência e uma discrição que me atraíam. Essas características (ou talvez outras que ignoro) pareciam levar também até ali o poeta e escritor David Mourão Ferreira, que, sobretudo em finais de tarde de Domingo, descobria no Dragão D'Ouro, sentado à toalha alva de uma mesa. Outras vezes, já eu desdobrava o guardanapo de pano sobre os joelhos, via-o chegar sozinho com o seu cachimbo de amparo, mas a maior parte das noites se lhe reuniam familiares, na pessoa de uma nora (a bela silhueta de Margarida Mercês de Mello, locutora de TV), de um filho atarefado e atrasado, talvez um neto.

A sua mesa, era, como a minha (escolhida próxima das janelas que deitavam como um mezanino para a avenida), uma mesa de gestos discretos, quase silenciosa e posta no arco da sala que ficava mais próximo da zona de serviço e das escadas para o rés-do-chão. 

Depois, o restaurante foi-se degradando um pouco, esvaziando-se ainda mais, começaram a surgir as ameaças da novidade da comida japonesa, e deixei de o frequentar de todo. Por outras razões (morreu em Junho de 1996) David Mourão Ferreira deixou também de o frequentar, de todo. 

Lembro-me da presença dele, às vezes, se passo pela Avenida Frei Contreiras e levanto a cabeça para olhar aquele prédio recuado, aquele primeiro andar onde continua a teimar um qualquer restaurante chinês. Mas já não é como foi, falta-lhe o cachimbo, eu falto-me a mim próprio, mais tudo o resto que se esfumou no tempo.



Dito isto, deixo-vos com um dos muitos poemas que David Mourão Ferreira escreveu sobre o Natal - pelo menos trinta -, intitulado Ladainha dos Póstumos Natais, um poema de 1987, ou seja, razoavelmente dos mesmos dias em que o encontrava sentado a uma mesa do Dragão D'Ouro.

 




 Há-de vir um Natal e será o primeiro

 em que se veja à mesa o meu lugar vazio

 

 Há-de vir um Natal e será o primeiro

 em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

 

 Há-de vir um Natal e será o primeiro

 em que só uma voz me evoque a sós consigo

 

 Há-de vir um Natal e será o primeiro

 em que não viva já ninguém meu conhecido

 

 Há-de vir um Natal e será o primeiro

 em que nem vivo esteja um verso deste livro

 

 Há-de vir um Natal e será o primeiro

 em que terei de novo o Nada a sós comigo

 

 Há-de vir um Natal e será o primeiro

 em que nem o Natal terá qualquer sentido

 

 Há-de vir um Natal e será o primeiro

 em que o Nada retome a cor do Infinito