Pela segunda metade dos anos 80, e na primeira metade da década de 90, frequentei com alguma assiduidade um restaurante lisboeta que se identificava no néon como Dragão D'Ouro.
Como o nome sugere, o Dragão D'Ouro é restaurante chinês e ficava, algo recuado ao alinhamento dos prédios da artéria, numa transversal da Avenida de Roma, vizinho do Hotel Lutécia e do cinema King Triplex.
Ao contrário dos restaurantes chineses que, na capital, se concentravam na proximidade da Avenida Duque de Loulé, o Dragão D'Ouro era um restaurante chinês requintado, fosse pelas instalações, amplas e onde abundava o tom quente dos apainelados de madeira, fosse pelo menu, excelente em todas as sopas, crepes ou pratos que decidíssemos encomendar. Apesar destas qualidades, o restaurante encontrava-se frequentemente despovoado, o que lhe conferia uma sonolência e uma discrição que me atraíam. Essas características (ou talvez outras que ignoro) pareciam levar também até ali o poeta e escritor David Mourão Ferreira, que, sobretudo em finais de tarde de Domingo, descobria no Dragão D'Ouro, sentado à toalha alva de uma mesa. Outras vezes, já eu desdobrava o guardanapo de pano sobre os joelhos, via-o chegar sozinho com o seu cachimbo de amparo, mas a maior parte das noites se lhe reuniam familiares, na pessoa de uma nora (a bela silhueta de Margarida Mercês de Mello, locutora de TV), de um filho atarefado e atrasado, talvez um neto.
A sua mesa, era, como a minha (escolhida próxima das janelas que deitavam como um mezanino para a avenida), uma mesa de gestos discretos, quase silenciosa e posta no arco da sala que ficava mais próximo da zona de serviço e das escadas para o rés-do-chão.
Depois, o restaurante foi-se degradando um pouco, esvaziando-se ainda mais, começaram a surgir as ameaças da novidade da comida japonesa, e deixei de o frequentar de todo. Por outras razões (morreu em Junho de 1996) David Mourão Ferreira deixou também de o frequentar, de todo.
Lembro-me da presença dele, às vezes, se passo pela Avenida Frei Contreiras e levanto a cabeça para olhar aquele prédio recuado, aquele primeiro andar onde continua a teimar um qualquer restaurante chinês. Mas já não é como foi, falta-lhe o cachimbo, eu falto-me a mim próprio, mais tudo o resto que se esfumou no tempo.
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
Belas palavras que resumem o que somos...
ResponderEliminarObrigada caro Amigo