29 junho 2010

VOU-TE CONTAR: 10. Da jardinagem como ramo da poesia

Mal saí da curva fiz pisca à direita e apontei a frente do carro ao portão. Depois saí para o abrir. Uma cama de folhas opôs suave resistência ao empurrão com que costumo abrir as duas portas gradeadas de ferro do portão.
É um perfeito fim de tarde do princípio do mês de e Agosto e a luz espelha-se em dourados, o jardim está lindo, desmente que aquela casa está desabitada há mais de um ano! Abençoada a ideia, a decisão de mantermos o Sr. Alfredo, jardineiro da casa desde a sua construção, a ir lá duas vezes por semana, cuidar do quintal.
Não foi um contrato muito alegre, aquele que se estabeleceu para manter funções numa casa onde não habita ninguém, onde deixa de haver com quem troque uma laracha a meio da manhã, onde deixou de haver uma sandes e cerveja a meio da tarde. Mas o Sr. Alfredo gostou da ideia, ficou contente por manter a ligação à casa e a nós, perguntou se podia cultivar uma pequena horta pessoal na parte de trás do quintal, reocupar o galinheiro, há muito abandonado e castanho de ferrugem, com uma ou duas aves poedeiras.
“Achas que sim?”, perguntou a minha irmã Susana quando me ligou a expor a ideia, "não achas a ideia demasiado louca?"
“Sim, que dizer: não! Claro, claro que sim.”
O meu pai havia de gostar, pensar aquele quintal abandonado seria para ele tremendo desgosto. Todos os dias da sua vida, mais religiosamente ainda na parte final, ele dava uma volta completa ao quintal, sabia de cor quantos gomos tinham nascido nessa semana em cada uma das árvores de fruto, quantos pêssegos tinha cada um dos três pessegueiros-anões.
“Só este tem 73, este ano estão carregadinhos”, dizia com prazer.
Das árvores de fruto, o enorme limoeiro era o seu maior sucesso. Já por ali estava quando a casa foi construída, fazia parte da pequena quinta que era o quintal da casa dos meus avós, calhou-nos em herança junto com uma nespereira e um marmeleiro que entretanto secaram, mas, de repente, deixou de dar limões. Crescia e reverdecia em pujança, mas estéril. Desgostoso, o meu pai, num excesso terapêutico que nem quadrava com a sua habitual sensatez clínica, aplicou-lhe em simultâneo os dois remédios usados na sua aldeia natal em circunstâncias análogas: espetou-lhe um grande prego ferrugento no tronco e encheu a base da árvore de pancada, como quem dá uma coça num filho desobediente, a ver se aprende.
Com um grau de miraculosidade gémeo da oração a Santo António para encontrar objectos perdidos, o limoeiro desfez-se em limões e nunca mais cessou de o fazer: há limões todo o ano, uma curta excepção para o tempo em que em vez de frutos ele anuncia a chegada das suas lanternas amarelas produzindo flores de perfume meridional.
Extasiado com a visão do jardim, estacionei o carro no fim da rampa, tirei as malas para fora e fui dar uma volta antes que anoitecesse de vez. 
Venho, sozinho, passar duas semanas de férias nesta casa, antes que ela se estrague em demasia por estar fechada, por se sentir só. 
O Sr. Alfredo deve ter estado por aqui hoje ou ontem, nota-se na terra regada e no ruborizado consolado dos tomateiros.

© Fotografia de Pedro Serrano, Viana do Castelo (2007).

28 junho 2010

VOU-TE CONTAR: 9. Não disse palavra

O escritório é uma das divisões a que me dirijo automaticamente sempre que entro nesta casa. Já nada há lá a fazer, de facto, e como é virado a Norte e tem uma única janela é sala algo sombria, facilmente dada a ficar impregnada pelos os cheiros que por lá se demoram. Nos seus tempos mais movimentados, um dos odores presentes e mais marcantes era o cheiro a medicamentos que se evaporava das divisões com portinhola do armário-estante que enchia uma das paredes, estante em que o meu pai arrumava livros de medicina, pintura e filosofia e amontoava as amostras da propaganda médica. Mais abaixo, numa posição já perto de cócoras, ao abrir as gavetas onde se guardavam as fotografias de família (eram todas guardadas ali, não sei porquê), o nariz era-nos picado pelo acidulado odor a película fotográfica que tinham as fotos antes da era digital, no tempo em que eram reveladas e fixadas com cantoneiras e legenda em álbuns ou arrumadas em envelopes em vez de ficarem para sempre perdidas na memória de um disco duro de computador.

Não é que o meu pai passasse muitas horas fechado no escritório e ‘fechado’ é mesmo palavra desadequada, pois quando lá estava mantinha a porta aberta, mas é a divisão da casa que era indubitavelmente o seu sítio, todo o resto eram locais mais partilhados. 
“Deve estar no escritório do pai.” 
E assim, não sei até que ponto o facto de ir lá parar amiúde sempre que aqui entro não se relaciona com a procura da sua presença, a procura da sua companhia. Meu Deus, os mortos regressam e tornam-se tão vivos e tão pertença dos lugares onde viveram... Não é no cemitério de  Agramonte, ali ao lado da Casa da Música, que seja o que for que reste dele habita; é nesta casa.
Após a casa ser fechada, na primeira noite que lá dormi sozinho, acordei de um sonho forte com o coração a palpitar. Fiquei a reconstitui-lo no escuro (com o cuidado que se deve ter na reconstituição de sonhos, pois se os tentamos reter com força esfiapam-se), os cotovelos fincados no colchão da cama onde ele morrera menos de dois meses antes.
No sonho, eu estava no escritório, de joelhos, a procurar papeis para os ordenar e arrumar nas gavetas da estante, uma tarefa que se tornou obsessão obrigatória para todos nós após a sua morte. De repente, a porta abriu-se e o meu pai espreitou para dentro, mostrando um semblante algo surpreendido por me ver ali a mexer nas coisas dele. Não disse palavra, retirou a cabeça e foi-se embora. Quanto a mim, consciente dentro do próprio sonho, não ignorava que ele já tinha morrido e que, por todas as leis da lógica, não era suposto aparecer ali, os mortos não aparecem aos vivos em presença física – é um pacto antigo! De qualquer modo, ao vê-lo espreitar não deixei de me sentir um intruso, a espiolhar, a interferir no seu espaço. Deitado na sua cama, reconstituindo o sonho, após a apreensão supersticiosa do primeiro embate, quase sorri com a clareza do recado antes de adormecer de novo para a manhã de Natal.


© Fotografia de Pedro Serrano, Porto (2010).

25 junho 2010

VOU-TE CONTAR: 8. Sexo indeterminado

O meu pai mantinha um registo minimalista e pragmático da sua existência. Fazia-o sob a forma de agendas, daquelas do tamanho de um lenço de bolso e recordo, desde criança, o ritual dos primeiros dias de cada ano em que, aplicadamente sentado à secretária do escritório, respondia a todos os postais de Natal que lhe tinham enviado e passava dados da agenda do ano findo para a agenda do ano que se iniciava. Tudo começava com uma página de identificação, preenchida ao pormenor: nome completo, morada, número da apólice do seguro, a quem avisar em caso de acidente; contactos telefónicos de familiares, colegas médicos, daqueles doentes que se transformam em amigos e quase família; o electricista, o homem que vai contar os vasos de resina dos pinheiros sangrados nas matas de Viseu, todo esse mundo que convém manter à mão.
Mas depois dessa primeira página sobrelotada e minuciosa, os registos de cada dia volviam-se minimalistas e não continham nada de pessoal, consistiam apenas em informações factuais sobre doentes vistos, intervenções cirúrgicas realizadas, dinheiros recebidos, compromissos a realizar. Nada de íntimo.
Na agenda de 1953, para dar um exemplo, no dia em que nasci, o meu aparecimento no mundo consta em rodapé da quadrícula destinada ao dia 22 de Junho, e a menção é esquálida:

Peso com vestuário 3.550
                             340
                          3.210
Às 5,10 Nasceu

E é tudo. Por ali nem o meu sexo se ficava a saber ou alguma luz é derramada sobre a circunstância de o meu nome estar já ou não decidido. Sabendo que, nessa época, a minha existência não seria viável abaixo do, digamos, quilo e meio, concluo por exclusão de partes que a minha primeira roupa pesou 340 gramas...
Nos dias e nos meses que se seguiram à sua morte tivemos que remexer as gavetas da secretária dele, em busca da infindável lista de demonstrativos que a solicitadora nos ia exigindo para regularizar a situação perante as finanças e o registo civil. Num desses dias, enfiei as dezenas de agendas que encontrei na primeira gaveta da escrivaninha em duas caixitas de cartão e colhei-lhes uma etiqueta na tampa: “agendas do pai”. Arrumei as caixas numa das divisões com porta da estante onde dantes estavam amontoados as amostras de medicamentos e não pensei mais nisso. Elas não eram úteis de imediato, isto é, não iam servir como demonstração formal de nenhum facto. 


© Fotografia de Pedro Serrano, Porto (2010).
  

22 junho 2010

VOU-TE CONTAR: 7. Fogo, caminha comigo

Há lareiras espalhadas na minha existência desde que me lembro. Essa presença veio pelo meu pai, foi ele que trouxe consigo essa noção do fogo e de quando toda a vida familiar girava em torno da pedra do lar, isto é, da lareira.


Na remodelação da casa dos meus avós paternos, edificada há mais de 150 anos nos arredores da serra do Caramulo, o meu pai fez construir uma nova lareira no topo da sala de jantar, no recanto que funciona como sala de estar, mas na construção primitiva havia um dispositivo de fogo que ainda hoje nos deixa boquiabertos. A cozinha morava então num edifício separado do corpo da habitação principal, ao qual se tinha acesso apenas pelo exterior da casa e cujas paredes pareciam ter como única função a de suportar uma chaminé! A área dessa cozinha é um espaço onde hoje caberia um apartamento... E todo esse espaço, de chão de lajes de granito, é dominado por essa imensa chaminé cuja boca, negra da fuligem de um século, tem o tamanho do chão de lajes. Aí, nesse chão, se desenrolava tudo: se fervia a água, se cozinhava, se comia, se passavam os serões e se mantinham conversas que tinham por pano de fundo o rubro e o negro de um fogo sempre aceso, por meditação a coluna de fumo que subia até à noite e por banda sonora o crepitar da madeira.  
Na minha primeira casa no Porto, onde passei a infância e os primeiros anos da adolescência, não havia lareira nem seria fácil improvisar uma. Mas a noção de envolvência térmica era confortavelmente emulada por uma salamandra prateada com uma portinhola de vidro de mica através da qual se via a reverberação laranja de um fogo quase sem chama, originado na combustão de umas pedras de carvão muito atraentes à vista, ao odor e, até, à proibição absoluta de toque. Essas pedras pareciam conchas de amêijoa, um formato entre o rissol de camarão e o bolinho de bacalhau. Suponho que fosse carvão moldado para parecer assim, chamava-se coque e se o seu aspecto era marítimo, o seu odor lembrava comboios, estações de caminho de ferro. Acho, também, que ainda reconheceria, se o ouvisse, o ruído que produzia quando era despejado, de um balde de lata de pescoço alongado, na boca insaciável da salamandra. Que gabarito térmico aquilo encerrava! Ao fim de umas horas de carburação todo o ferro forjado do corpo cilíndrico da salamandra ficava em brasa, uma brasa que contagiava em cor laranja o primeiro metro do tubo da chaminé, tubo que trepava pelo interior da casa aproveitando as voltas do corrimão para se escapulir até à clarabóia e ao chapelito cónico que, já fora do telhado, precavia o retornar do fumo sob a ventania de inverno. Tanto quanto recordo, aquele tambor de ferro forjado e a sua chaminé de lata, pintados como papel de prata, aqueciam a casa toda, inclusive a flanela dos nossos pijamas que pairavam lá em cima, dispostos sobre o corrimão e envolvendo o cano como um cachecol, a tempo de estarem tépidos quando nos fossemos deitar e de fazerem parelha com a botija de água quente que esperava escondida em vale de lençóis.  


© Fotografias de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca: (1) 2010; (2) 2007.

21 junho 2010

VOU-TE CONTAR: 6. Trindades

Foi sem qualquer acento de queixa ou tom de mágoa que, oitenta anos depois do sucedido, no ambiente acolhedor e confessional que ganha a sala de estar ao fim da tarde, o meu pai revelou:
“Sabes que não me lembro da minha mãe? É que não guardo mesmo memória nenhuma…”
Sentado na laje da lareira, reajeitando as achas, mantive o olhar nas chamas e deixei que fosse o seu crepitar o único reflexo ao comentário.
“Não tenho aquilo a que se pode chamar uma recordação de uma relação entre mãe e filho…”, continuou, expondo uma ideia que nascera da conversa sobre o modo como certos fragmentos de memórias resistem ao tempo e emergem na consciência isolados de outras recordações, aparentemente rebeldes a uma cadeia de associações que os expliquem.
“Devia ter uns oito ou nove anos quando ela morreu, era pequenote, um miúdo…”, prosseguiu, como procurando na tenra idade uma justificação para tal vácuo. Mas isso também não pareceu remediá-lo:
“Mas é curioso, pois lembro-me de coisas ainda mais antigas, sabes? Lembro-me, por exemplo, de um dia estar ao colo de alguém – era tão pequeno que estava ao colo – e ouvir anunciar: ‘Chegou o Gaspar da guerra!’”.
Era a primeira grande guerra, a de 1914-1918, o conflito do qual esse vizinho regressava e o meu pai usava o último ano da guerra como bitola para calcular a própria idade à época:
“Sim, devia ter os meus três, quatro anitos, estava ao colo de alguém… Não me lembro de mais nada, nem de ver o Gaspar aparecer, nem de quem dizia aquilo a quem, nem sequer de quem me tinha ao colo… Só me lembro dessa frase solta!”
Eu também tinha experiências daquele tipo na minha vida, pedaços desgarrados de memória que vêm à tona e resumi um deles, relacionado com a primeira vez que me lembrara de ouvir uma música específica – o Domenico Modugno a cantar o “Volare”. Mas o meu pai estava mais inclinado em olhar e seguir os contornos dessa cratera onde faltava uma ponte que desse corpo à memória de uma relação entre mãe e filho.
A minha avó paterna, que sempre conheci olhando-me a preto e branco por trás de uma moldura, tivera dez filhos e morrera nova, com um mal arrastado que a afastou da vista dos filhos os últimos meses da vida. O meu pai não recordava nada de directo, de íntimo, relacionado com ela; com a progressão da doença, com os seus últimos momentos, uma eventual despedida…
“Só me lembro de me mandarem ir brincar para o quintal de cima – ela devia estar mesmo a tombar, percebes? – e de ouvir dizer que o funeral foi tão concorrido que o caminho para o cemitério ficara ensilvado de gente…”
Pousei a tenaz com cuidado, levantei-me da pedra e fui correr os estores das janelas que deitam para o terraço, pois lá fora o rosado do poente de Inverno volvera-se numa sombra que reflectia já as nossas silhuetas nos vidros.
“Fecha-me essas persianas”, recordei, como sempre acontece quando executo o acto de encerrar uma janela ao anoitecer, a voz da minha mãe que não gostava de “ver os olhos da noite…”
E num gesto disfarçado olhei a imagem dela que, junto a uma flor de camélia votiva, reina no primeiro plano de uma fila de livros na estante ao lado da lareira. 
“Só há uma cena, uma única cena em que me recordo dela, sabes?”, continuou o meu pai logo que me sentei na poltrona perto da dele.
Mantive-me em silêncio, esperando, pois o que o meu pai precisava não era de alguém que o questionasse, mas de alguém que o ouvisse evocar.
“Sabes o que são as trindades?”, perguntou.
Quase me senti chocado. Claro que sabia o que eram as trindades, sabia-o até duplamente, isto é literariamente e de eu próprio ter assistido, em Verões longínquos, a esse tocar fino de sinos que anuncia as ave-marias e a tardinha, o fim do dia de trabalho no campo... O meu pai julga sempre que eu sou mais novo do que o sou!
“Pois um dia vinha com a minha mãe, uns passos atrás dela, tínhamos acabado de passar a porteira e tocaram as trindades. A minha mãe parou e eu fiquei ali quieto a olhar para ela enquanto esteve parada, sei lá a fazer ou a pensar o quê...”
Ficou uns momentos a fixar a lareira e rematou:
“Não sei o que ela pensava nem o que eu próprio pensei. Fiquei ali parado, a olhar para ela... Mas olha que te podia mostrar, com um erro de centímetros, o lugar exacto onde isso se passou... É a única recordação que tenho dela...”
Com mais atenção do que o costume olhei a minha avó que continuava a fitar-me com muda insistência da moldura no rebordo de granito da lareira. Um pouco mais acima, espreitando na borda da estante, a minha mãe acompanhava atentamente a cena, enquadrada na tardinha rubra e dourada de um friso de livros de lombada vermelha com títulos gravados a ouro.


© Fotografia de Pedro Serrano, Porto (Novembro 2007).


19 junho 2010

VOU-TE CONTAR: 5. A tia embuçada

Sob certo ponto de vista, o meu pai faz-me lembrar um daquele sucessos americanos que descobrimos nos filmes feitos por lá e que eles tanto gostam de celebrar. O emigrante, frágil e sozinho, mas com a determinação do encurralado que procura a luz, que chega a um país desconhecido. Passados uns anos sobre a manhã em que chegou a Ellis Island, vemo-lo instalado, como se sempre por ali tivesse andado: constituiu família, tem casa própria, adaptou-se ao local onde vive mas mantém e vai propagando em surdina os valores que trouxe da terra natal.
No caso dele, a sua América foi a cidade do Porto e o seu ponto de partida uma aldeia que ainda hoje surpreende pela pequenez e isolamento, perdida entre Vouzela e Viseu, um daqueles locais anónimos que vemos passar com um estremecimento de desdém e desgosto ao olhar pela janela do carro durante uma viagem interminável por estradas secundárias. Não há rede de telemóvel para nenhum dos operadores no casarão de granito que foi dos meus avós, que o meu pai reconstruiu e tornou habitável para os seres que conheceu e a quem deu origem no Porto, habitável o suficiente para todos adorarmos ir lá passar um mês de férias seguido em cada fim de Verão da infância, para que a memoria de todos nós ficasse para sempre ligada ao local. Os meus avós daquele lado eram agricultores abastados, o que estava longe de significar dinheiro no banco, apenas terras, muitas parcelas de lavoura e pinhal espalhadas por uma grande extensão geográfica, animais, pessoal contratado para as lides de casa e do campo. Posses, num contexto daqueles, significava vida árdua, não se distinguindo com excessiva nitidez da vida dos outros todos que por ali andavam a arrancar algo à terra, demasiado dobrados sobre si próprios para sonhar que outra paisagem pudesse existir para além do recorte do Caramulo.
“A nossa família vem lá de cima, de Ventosa”, apontava ele o azulado da serra com um brilho de satisfação nos olhos, “gente esperta...”.
Mas dez filhos vivos, encavalitados uns nos outros sem intervalo, tornavam ainda mais remota qualquer hipótese de os meus avós paternos virem a alcançar liquidez. A minha avó morreu cedo, o meu pai andava na escola primária e o meu avô não tornou a casar; teve de despachar os filhos, pois que faz um viúvo com sete filhas sem idade sequer para casar? Dois dos rapazes foram despachados para o seminário, o terceiro emigrou logo que pôde para as américas, onde andou perdido longas décadas antes da família o conseguir voltar a encontrar. Já grande, descobri divertido que tinha uma tia mulata e que o meu tio do Brasil era dado aos orixás! Depois, as raparigas casaram entre a aldeia natal e Viseu, uma delas, para honrar a tradição, ficou solteira e áspera. O encontro com ela causava-me alguma ansiedade quando era pequeno, o olhar zombeteiro e implacável e o seu beijo, que incluía a esfregadela de um buço rijo, tolhia-me em cada Setembro de férias na aldeia, em cada passagem de ano em que visitávamos aquelas costelas da família.
Dos dois seminaristas, apenas um chegou a professar, o meu tio Vasco, meu padrinho, que chegou a cónego e me prometeu deixar a Casa da Mó e todos os seus outros bens se lhe seguisse as pegadas. “Nem morto”, imaginava já eu nessa altura, horrorizado que lhe passasse sequer pela cabeça tal ideia sobre mim. Quem, também, a dado ponto começou a suar frio com a perspectiva de usar marcas de distinção como um colarinho duro e semelhante a uma coleira, uma tosquiadela infligida no cocuruto, foi o meu pai. Mas mais do que essas praxes, contou-me ao pé da lareira da nossa sala de estar no Porto, foi um dia, aliás poucos dias antes de poder optar por qualquer outra coisa na vida, foi, dizia, a perspectiva de os seus pensamentos passarem a ser controlados, isto é, de a sua opinião nunca poder ser livre e ter de seguir determinada cartilha. E aos 19 anos, in extremis e já com a formação do seminário de Viseu completa, mandou tudo às urtigas.
Deve ter sido momento duro, carregado de angústia, essa decisão solitária e o que ela significava em termo de ter de procurar outro rumo na vida. Sem mãe, com um pai distante e a gerir uma manada de dez filhos, um irmão já estabelecido na profissão, toda a despesa ficou a cargo dele.
No seu modo de ser silencioso, o meu pai nunca explicitou demasiado as emoções associadas a esses instantes, mas é interessante que tenha guardado a memória dos momentos em que tomou a decisão e, instante não menos terrível, imagino, a comunicação da decisão ao meu avô. Não teve, sequer, uma mãe que pudesse interceder por ele, atrás da qual se pudesse resguardar um pouco da inclemência ou desabafar na noite desse dia.

© Fotografia: Passagem de ano em Oliveira de Barreiros, início dos anos 60 (fotógrafo desconhecido).

VOU-TE CONTAR: 4. Até Sempre

Não lembro, não lembrarei mais, a última vez que vi o meu pai vivo. Não me é difícil reconstituir o que poderá ter sido esse momento: desde o Verão desse ano passei a ir ao Porto com muito maior regularidade, habituei-me a fazer aqueles trezentos km que me separavam de casa quase sem pestanejar. O coração apertava-se ao virar a frente do carro para as grades do portão da casa do meu pai, enquanto saía do carro e o abria, enquanto deslizava rampa abaixo, fechava o carro, subia as escadas que dão para a porta da cozinha e me preparava para entrar em casa e enfrentar a visão dos detalhes que me tinham sido relatados ao telefone pelas minhas irmãs, aquilo que eu próprio somava por experiência directa. Nesses últimos meses não havia nada a pôr no monte das coisas que estavam a correr bem. E eu ao leme de quem tinha sido o meu leme, não há maior sensação de naufrágio.
Quando, nesses Domingos à tarde, regressava ao Sul, à minha própria vida, era com desalento que olhava a fachada da casa antes de arrancar, era com alívio que, umas tantas dezenas de km de auto-estrada volvidos, reparava enfim na beleza da tarde que se esbatia, que via surgir no céu um contorno de lua, o tom dourado que se espraiava a poente.
Antes de sair, passava pelo quarto a despedir-me:
“Pai, tenho de ir andando...”
“Vai, vai à tua vida”, dizia ele e rematava, quando me inclinava para o beijar na face ou na testa:
“Até sempre...”
Terá, pois, sido esse o modo como nos despedimos a última vez que o vi, com um “até sempre”, uma despedida que adoptou nos últimos anos de vida. Desde quando, quando se processou essa viragem na fórmula de despedida? Não sei, não sei; ele sabia mais do que eu sobre certas coisas e, com raras excepções, não falava do processo de chegar a elas.


© Fotografia de Pedro Serrano, Norte 2008.

18 junho 2010

VOU-TE CONTAR: 3. Novembro

O meu pai sempre detestou o mês de Novembro, que me lembre nunca explicitou os motivos, mas recordo o preguear de nariz ao referir-se à sua chegada.
Agora que nada posso confirmar junto dele resta-me especular sobre os motivos da aversão. Talvez pudesse ser até uma razão pessoal, relacionada com uma qualquer experiência de má memória, mas relembrando a sua personalidade rural, alicerçada em ciclos telúricos, a razão era provavelmente a situação encalhada de Novembro na roda do ano.
Setembro traz consigo uma acalmia em relação aos excessos do Verão, é o mês das vindimas, do armazenar de tesouros para o Inverno, contém uma certa alegria activa após o ensurdecimento e a inacção impiedosa de Agosto. E Outubro tem dias suaves, as cores na Natureza são de beleza admirável, as temperaturas consolam porque são muitas vezes melhores do que o esperado. Depois, Dezembro tem esse tom de esperança, esse milagre inexplicável que é o Natal, por muitas voltas que se dê, por muitas críticas que se lhe façam; um momento todo especial, que assinala o mês como uma marca registada. Mas Novembro... Não há esperança que se associe a Novembro, Novembro é uma espécie de segunda-feira dos meses do ano. As noites tomaram nitidamente conta do dia, o frio instala-se com crueldade, a terra despiu-se e encolhe-se, até o que não tem remédio, se celebra nesse mês como o dia dos Fiéis Defuntos! Novembro traz todas as gamas de cinzento à tona. 
Em Novembro, o meu pai deixou-se ir à deriva; não havia costa suficientemente à vista.


© Fotografia de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca 2010.

17 junho 2010

LESS THAN GREEK

My Funny Valentine é uma canção escrita por Richard Rodgers (música) e Lorenz Hart (letra), uma dupla que cravejou o firmamento das canções imortais com jóias como “My Heart Stood Still”, “Blue Moon”, “Lover” e “Litlle Girl Blue”.
A canção foi escrita para um musical chamado Babes in Arms (1937) e disso se desconfia logo pelo recitativo, uma espécie de prólogo, mais falado do que cantado, que é usado como transição entre os diálogos da peça e o aparecimento de uma nova canção. “Stardust” e “Over the Rainbow” são outros exemplos de canções que lançam mão deste preâmbulo musical. 
Usando um inglês antiquado, o recitativo de “My Funny Valentine” consiste numa estrofe de oito versos que reza:


                                          Behold the way our fine feathered friend,
                                          His virtue doth parade
                                          Thou knowest not, my dim-witted friend
                                          The picture thou hast made
                                          Thy vacant brow, and thy tousled hair
                                          Conceal thy good intent
                                          Thou noble upright truthful sincere,
                                          And slightly dopey gent


Há mais de um milhar de gravações em disco desta canção (e mais de 600 intérpretes contabilizados), mas nem em todas este preliminar aparece. Esta amputação sucede, por exemplo, na muito bela interpretação de Chet Baker, posteriormente celebrada e imortalizada na banda sonora do filme O Talentoso Mr. Ripley, onde Matt Damon (Tom Ripley) a usa como parte da sua estratégia para seduzir Jude Law (Dickie Greenleaf).
Após o recitativo começa então a canção propriamente dita e o modo como Rodgers e Hart conseguiram ligar a última linha do recitativo à primeira do corpo da canção é divino e de génio, pois não há transição visível, apenas uma suave continuidade.
A letra reza:


                                          You’re my funny valentine,

                                          Sweet comic valentine,

                                          You make me smile with my heart.

                                          Your looks are laughable, unphotographable,

                                          Yet, you're my favorite work of art.





                                        Is your figure less than greek?

                                          Is your mouth a little weak?

                                          When you open it to speak, are you smart?

                                          But, don't change a hair for me.

                                          Not if you care for me.

                                          Stay little valentine, stay!

                                          Each day is Valentine's day


Como se pode ver, a coisa trata de alguém muito apaixonado que embora, numa última centelha de lucidez, consiga reconhecer que o ser amado não é perfeito na sua beleza ou, quiçá, inteligência, se encontra totalmente dependente dessa perfeição a ser e lhe suplica que fique, pois de outro modo o seu coração não saberá sorrir.
Isto é o que a letra diz, mas agora vem a música que estabelece como isso deve ser dito da boca para fora. E deve ser dito repassado de melancolia, o diapasão da entoação afectiva deve estar sintonizado na tristeza branda de alguém que sabe estar completamente nas mãos de outro, um amor que se pode tornar infeliz de um momento para o outro e que só deixará a nostalgia a reverberar no ar. Como uma premonição, o tom da canção oferece já aos nossos ouvidos um rasto desse possível desalento. Estamos na coutada do destino. 
Pois bem, passando agora às interpretações da canção, houve muito boa gente que não percebeu o tom e a delicadeza de espuma que a interpretação desta canção exige. É longa a lista de celebridades que a interpretaram, ficam aqui listadas algumas: Nat King Cole, Frank Sinatra, Chet Baker, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Johnny Mathis, Etta James, Nina Simone, Nico, Michael Buble, Christina Aguillera e Chaka Khan. Na minha opinião, Frank Sinatra não soube pegar nela com suficiente subtileza e fico espantado com o modo como Nat King Cole, um cantor tão maravilhosamente intuitivo, lhe pegou – o tom com que a canta é completamente trágico, para ele aquilo já terminou! Também nem tanto! Nas interpretações desta cançãozinha aparentemente simples, mas uma autêntica armadilha vocal, as que mais gosto ficam nas interpretações soporífera de Chet Baker, na irrepreensível de Ella Fitzgerald e na mais recente e poderosa versão de Chaka Khan, senhora que arremessa aos ouvintes uns “stay” capaz de lhes dar um nó na espinal medula. A potência do canto dela pode até ser excessiva, mas aqui o que interessa é a intenção e ela acentua-a nos sítios certos.
Tudo isto, em som e imagem, pode o leitor encontrar no You Tube. Quando andei por lá à procura de uma versão para ilustrar este texto (post) topei em várias interpretações de amadores, seres que se colocam em frente à câmara de filmar do computador e bota cá para fora uma canção. Comoveu-me, em particular, a versão de uma rapariga Argentina, chamada Sofia, uma pessoa de ar muito triste. Essa tristeza não é pose para a canção, é evidente nos outros vídeos musicais dela que andam pelo You Tube. Pois essa menina, de voz mediana e timidez acentuada, capaz de rondar a fífia aqui e ali, sabe lindamente que pele é necessário despir para cantar “My Funny Valentine”. Ora vejam.




VOU-TE CONTAR: 2. O aniversário da Migaça

“Em que dia morreu o pai?” 
“Nove de Novembro!”, apercebi um toque de escândalo no tom, na velocidade do arremesso com que a minha irmã mais velha respondeu do outro lado do fio.
Nunca fui bom a reter datas de aniversário, quero dizer, para além daquelas que estão automaticamente entranhadas como as do nascimento dos meus pais, irmãos, alguns entes queridos ou ex-queridos... Sei lá bem em que dias fazem anos os meus tios, cunhados, primos, sobrinhos ou quem veio depois disso. Agora, com as agendas electrónicas e os avisos pré-configurados gerados por telemóvel e computador tornou-se mais fácil evitar certos esquecimentos, antes disso quem me valia era a memória das mulheres, que são, de longe, mais aptas que os homens neste e noutro género de detalhes que fazem o mundo rodar harmonioso no seu eixo.

“Não te esqueças que hoje o Docas faz seis anos”, relembra-me em sms a minha irmã mais nova, mãe do aniversariante, “diz-lhe qualquer coisa...” 
Ou se me surgiu uma lembrança duvidosa e telefono a perguntar: 
“Não está a fazer anos a Migaça...? Não é já para a semana, a 14?” 
“Não! É 14, mas só no mês que vem, estás a confundir Junho com Julho! É exactamente entre a Titona – que faz a 10 – e o primo Raul que, se fosse vivo, fazia a 18...” 
E eu pasmado com aquela capacidade, talvez ainda mais com as mnemónicas complexas que revelam quando explicam o modo como são capazes de reter e encontrar na memória tudo aquilo: 
“É fácil: O primo Raul nasceu no mesmo mês em que me casei – só que eu casei a 3. Assim só tens de somar 15, que é o dia em que faz anos a tia Lelé, só que em Agosto...” 
De modo que a Clarinha, minha irmã mais velha e um autêntico elefante, válido até à quarta geração de parentesco e vizinhança, no assinalar de efemérides, ficou naturalmente chocada com a minha ignorância quanto ao dia da morte do nosso próprio pai. 
Posto isto, achei melhor não esfrangalhar totalmente a credibilidade junto dela e telefonei à Susana, minha irmã mais nova, a precisar um outro pormenor: 
“Vai fazer dois anos que o pai morreu, não é...?” 
No Algarve apenas desde a véspera, sentada na borda da piscina a vigiar o Docas que se transformava progressivamente numa beterraba após tantas horas a mergulhar-sair-cá-para-fora-e-tornar-a-mergulhar, ela ficou atarantada com tal categoria de pergunta a meio de Agosto: 
“Agora até me puseste parva... Deixa ver: A mãe morreu a 3 de Março de 1999 e o pai no dia 9 de Novembro..., eu achava que de 2007... Sim, há mais de um ano já foi, já houve uma missa de aniversário, estiveste lá! 
Ainda a conseguia ouvir, no meio do vozear e do chapinhar, chamar o Zé Maria, o filho do meio, para ir confirmar junto do marido, o meu cunhado Gil – de quem nunca recordo o dia, ou sequer o mês, de aniversário – o ano da morte do sogro, meu pai. 
Do lado de cá do fio, melhor seria dizer da rede, senti a consciência a caminho do excesso de peso. Desconhecia o dia da morte do meu próprio pai, não tinha a certeza quanto ao ano em que isso tinha acontecido e, ainda mais inconfessável, não voltara a pôr os pés no cemitério desde o dia do funeral. É que nem sequer nos dias tradicionalmente votados a isso, seja de um modo personalizado, como o dia do seu aniversário natalício ou o dia da sua morte ou, até, em feição mais institucionalizada como no dia de Todos os Santos. 
Mas este pormenor espacial sempre era mais fácil deixar no vago.... 

© Poalha de Tipuana. Fotografia de Pedro Serrano, Lisboa, Junho 2009.

13 junho 2010

VOU-TE CONTAR: 1. A house is not a home

A chair is still a chair
Even when there's no one sitting there
But a chair is not a house
And a house is not a home
When there's no one there to hold you tight,
And no one there you can kiss good night.



Burt Bacharach-Hal David ("A House Is Not a Home")


© Fotografia de Pedro Serrano, Lisboa 2009.


Há muito que tenho o desejo, vago mas recorrente, de escrever sobre casas. Imaginava um livro, formado de várias partes, cada uma dedicada às casas que foram presença forte na minha vida, ou por terem sido lar ou por as ter visitado e revisitado e esses dias se me terem entranhado na existência. A parte de leão que me levaria a escolher uma sobre as outras encontraria, mais do que circunstâncias arquitectónicas ou de paisagem envolvente, justificação nas pessoas que lá moravam ou estavam. 
Incluiria nesse projecto virtual a casa dos meus avós paternos perto de Viseu, um casarão com paredes de granito de um metro de espessura, onde passei os meses de Setembro da minha infância e adolescência; e a casa, de traça árabe e lógica vertical, com terraços sobrepostos e jardim interior, empoleirada à sombra do castelo de Mértola, onde durante sucessivos Verões dos anos 80 e 90 me acoitei nos estios alentejanos.
Nesta lista faria presença obrigatória uma vivenda andaluz, erigida no meio da serra Morena, a menos de uma centena de km de Sevilha, e construída por um nazi mitómano de ascendência belga, casa apimentada pelo detalhe de um quarto secreto, sem janela para o exterior e de acesso feito por uma portinhola camuflada num dos quartos. Na descrição desta casa, como em outras, conviveriam as cercanias, os passeios dados pelas matas das redondezas em Outonos brumosos, as setas apanhadas nessas sortidas, as conversas e conservas que deles fazíamos dada a impossibilidade de comermos tanto cogumelo fresco em tão poucos dias....
Fossem prosaicas, como o terceiro andar do Fundo de Fomento da Habitação onde morei quatro anos em Trás-os-Montes ou misteriosas, como a vivenda espanhola que citei ou a casa centenária dos meus avós que, pelos ruídos que a habitam durante a noite ou pela emparedada escadaria para o sótão por trás de um guarda-vestidos tem estatuto para albergar um par de fantasmas, todas essas casas contariam uma rede de histórias de que eu seria o pretexto mas que, como uma trepadeira, entreteceriam outras pessoas e invadiriam outras dimensões. Finalmente, dessa lista fariam obrigatoriamente parte uma casa em Viana do Castelo e a vivenda em Cascais a cujas paredes acrescentei a longa convalescença de uma doença grave e a descoberta dos rolos de libras de ouro que o sol nascente projecta através dos interstícios dos estores.
Quando novo, o meu sonho era morar num chalé antiquado, com venezianas que, se escancaradas, permitissem ver o mar... Na minha imaginação essa casa teria, em letras de ferro forjado, um nome poético como Sol Nascente ou Sol Poente e seria perfeito se o nome da própria localidade ecoasse o bucolismo do local: praia da areia branca ou da areia dourada seria algo muito adequado a essa ideia. Por caminhos que desconheço como se traçaram foi a um sonho desses que fui parar, mas, como diz o ditado, não desejes demasiado uma coisa, pois pode ser que te aconteça. Ou, por outras palavras: os sonhos realizados nunca têm o sabor que lhe imaginámos, algo se perdeu quando lá chegámos.
O mesmo aconteceu ao meu projecto de livro sobre casas da minha vida. De súbito, eclipsando todas as outras, vi surgir ante mim, com a insistência muda de um pedinte, a necessidade de contar tudo o que associo ao deambular pela casa que o meu pai construiu no Porto e que vi ser erigida, habitada e fechada num período de tempo que se escoou entre os meus dedos como um chamamento que soa, ecoa e se perde no ar. 









Sob o título genérico e agregador de Vou-te Contar (olá, António Carlos Jobim, olá Chico Buarque) e a forma antiquada de folhetim em episódios irei contando por aqui, entremeadamente e sem pressas, a história dessa casa.







E aqui está o Luther Vandross a interpretar "A House Is Not a Home", 
uma composição de Burt Bacharach e Hal David














08 junho 2010

UM AMOR ÀS ESCURAS

Darkness at the break of noon
Shadows even the silver spoon
Bob Dylan 
I

Penaformosa é localidade pequena, apagada sobre a fronteira com a Espanha, no norte interiorizado do país. Está lá para que exista um posto fronteiriço, uma aduana, aquilo não é nada! O posto, o estático carimbo de ENTRADA, três ou quatro casas, uma cancela de madeira pintada de vermelho fosforescente e dois ciprestes.
O único pormenor digno de nota em Penaformosa, o único a merecer honra de menção em postal turístico, é o cemitério. Como é que um lugarejo que nunca conhecera mais que uma dezena de almas tinha um funéreo recinto com quatro centenas de campas?
Aos mais velhos de entre os meus leitores, a palavra Penaformosa talvez não soe totalmente estranha... Exacto, a batalha; o confronto onde, nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, os portugueses repeliram com bravura os alemães. Quatrocentas campas, um número igual de cruzes de madeira, confeccionadas em branco e em série, recordam as nossas perdas, os incógnitos heróis (os alemães abatidos foram atirados para vala comum).
Depois dessa hecatombe o cemitério recebera apenas mais dois defuntos: um guarda, fulminado por apoplexia no acto de revistar o porta-bagagens de um automóvel estrangeiro e, mais recentemente, uns cinco anos – se não erro – um civil, que atravessara a fronteira a pé e morreu, inesperadamente, no mictório do posto fronteiriço. Era homem magro, ainda novo e vestia um fato azul-claro, claro e leve em demasia para o gélido inverno desse ano.
O que levaria um tipo a vestir-se assim em Janeiro? Será que não possuía outro fato? Nunca se soube, pois transitava sem bagagem. Será que teria sido obrigado a abandonar à pressa alguma cidade? Ninguém reclamou o cadáver e chegou a pensar-se serem falsos os seus documentos, suposição alicerçada no facto de o defunto ser desconhecido na sua freguesia de residência.
Sem dinheiro, com má-fama, o cadáver acabou por ser enterrado sem caixão, ou sequer um lençol, e nada de humano ficou a assinalar o ponto exacto onde jazia. Apenas a Natureza se encarregou de diferençar aquele solo, diverso de todos os outros: no sinistro canteiro o solo aluiu e fixou uma depressão rectangular com um palmo de profundidade.

II

Agosto. É meio-dia. Está de ananases.
Não há turista que se aventure pelos caminhos de Penaformosa. Para uma tal excitação das glândulas sudoríparas, o Sahara é mais mundano. Os guardas bateram as portas, fecharam janelas e suam em volta de uma mesa posta com salada, azeitonas, vinho e pão. Lá de fora ninguém quer saber o que se passa, voltaram as costas àquele bafo maligno.
O guarda noviço pergunta:
“E se aparece alguém?”
“Que se fodam. Se quiserem alguma coisa podem sempre bater à porta, explicou Bento Riacho, responsável pela fronteira de Penaformosa.
Lá fora os ciprestes recolheram o verde, encolhem-se como se fosse noite. O sol faz estalar as ripas de madeira que formam o muro do cemitério, racha a continuidade do saibro em veios fundos, transformando cada um dos montículos de terra das campas num pão ressesso, às fatias.
Na cova do desconhecido do fato azul, uma fenda, grossa como a lombada de uma enciclopédia, acaba de se produzir a todo o comprimento da sepultura. Uma aranha corre, louca de pressa, para o rebordo exterior da campa. Grãos de terra rolam, lentos, para dentro do novo espaço e uma poeira lenta eleva-se do buraco, ocultando ao menos atento uma mão e depois o começo de um braço que ensaiam libertar-se do abrigo, como se não se importassem com o calor imenso que faz cá fora.

III

Gabriel Leitão, caixeiro-viajante, agarrava-se, perplexo, ao volante da sua carrinha diesel de assentos reconvertidos.
Mal acreditando em tanta sorte, desligou o motor, abriu a barreira e empurrou o carro pelo declive suave. Menos uma apreensão, menos um suborno, pensou ao enfiar-se de supetão no automóvel, menos uma badalada na úlcera nervosa. Ligou a ignição uns trezentos metros mais abaixo e respirou fundo. Sorriu, apesar do calor de Agosto: “Que sorte! Ouro sobre azul! Mil e duzentos contos, livres de impostos, em anéis, relógios, vestidos de senhora e tabaco”. O calor era seu aliado, ia ser preciso começar a incluí-lo nos planos.
De repente a úlcera disparou: na berma da estrada, enfiado num fato azul, um homem, sem bagagem, pedia boleia. Já estaria ali há muito tempo? Poderia ter topado alguma coisa? O melhor era tentar sabê-lo. Parou o carro, abriu a janela do lado da berma.
“Para onde é, chefe?” 
“Qualquer sítio com transportes está bem para mim...”
Gabriel Leitão abriu a porta, tranquilizado com o sorriso gaiato do desconhecido.
“Olhe que ficou mal fechada, advertiu Gabriel Leitão enquanto mirava de soslaio a estrada pelo retrovisor. Dois ou três km depois atacou:
“Vem de longe?”
“Estive a trabalhar em Espanha, cinco anos, voltei para casar. Apanhei boleia até uma terriola próxima da fronteira espanhola e como não passava ninguém vim andando.”
“Podia ter ficado à espera no posto da fronteira portuguesa, continuou Gabriel Leitão, sempre estaria mais fresco...”
“A fronteira estava fechada quando lá cheguei, e não sou gajo para me incomodar muito com a falta de carimbos no passaporte.”
Gabriel Leitão desatou a rir.
“É isso mesmo, amigo. Eu cá também não morro de amores por aqueles merdosos da alfândega, sempre a meterem-se na vida alheia. Vai um cigarro?”
Gabriel Leitão gostou da pinta de Valério, acabou por decidir levá-lo mais longe do que inicialmente previra.
“Em Fragalhinha você tem mais escolha de transportes, mais movimento. Olhe, vou-lhe dizer: vamos por aqui abaixo nas calmas, chegamos a Fragalhinha ao fim da tarde, jantamos, eu sigo e você fica e vai à sua vida. Que tal?”
Valério achou bem. Quanto maior fosse o sítio onde ficasse menor seria a probabilidade de lhe pedirem os documentos. Além disso, não tinha um tostão no bolso.
Em Fragalhinha jantaram numa esplanada à beira do cais, vingando-se com cerveja gelada do calor da tarde. Gabriel Leitão retratava o dia:
“Pois amigo Valério, estou satisfeito de o ter arrancado àquela torreira do inferno.”
Valério sorria, olhando as gaivotas que picavam o crepúsculo, sacudindo, discretamente, restos de terra da bainha das calças. Também a ele o dia correra bem. Chegou a hora de se despedirem. Gabriel Leitão chamou pela conta, pediu a Valério que o acompanhasse à carrinha.
“Tenho uma coisa para lhe dar. Ia ser um suborno, mas é com prazer que a vejo transformada num presente de casamento”, disse abrindo o porta-luvas.
Tirou de sob um mapa um objecto resguardado em papel celofane branco, que estendeu a Valério.
“Quartzo, os ponteiros são projecções electrónicas. Calculadora, calendário perpétuo, fases da lua, cronómetro, waterproof; tecnologia do futuro. Vale, bem à vontade, os seus sessenta contos...”
“Sessenta contos!”, espantou-se Valério.
Abraçaram-se. Gabriel Leitão desejou mil felicidades a Valério, este afirmou-lhe que Olga, a noiva, iria ter pena de não o ter conhecido.
Ficou a vê-lo afastar-se pela estrada fora. Atravessou a rua sopesando o relógio, decidiu que não ficaria na pensão ranhosa à beira da estação dos comboios. Ao chegar ao Hotel Parlamento, Valério parou, tirou do bolso um cartão plastificado que estudou à luz de uma montra. Não estava muito parecido, o outro era mais velho, mas era melhor que nada, concluiu Gabriel Leitão, caixeiro-viajante, entrando no hotel.

IV

As dúvidas de Valério, acerca do reencontro com Olga ao fim de cinco anos mudos, confirmaram-se da pior maneira, pois foi recebido muito friamente pela noiva, pela família dela, pelos vizinhos.
Olga estava noiva, mas não dele. O casamento estava marcado para dali a dois meses (fins de Setembro) e segundo todos demonstrava muito mau gosto, quiçá cinismo, ele ter voltado. E que quase chegara a sentir remorsos por ter vendido o relógio sem o ter mostrado a Olga!
Deambulou uns dias por ali, desorientado, aparecendo em casa dela nos piores momentos, incluindo o dia da primeira prova do vestido para a grande cerimónia, irritando o susceptível noivo. Sem saber muito bem que rumo dar à vida, na última visita Valério sacou da casa de Olga tudo o que pudesse render umas notas, meteu-se num comboio para a capital. Diluir-se o mais possível, forçar uma nova identidade, e depois se veria.

V

António Gonçalves, torneiro mecânico, entrou na agência de viagens como quem engole uma pastilha a seco.
Estava, na verdade, pouco à vontade, mas, pensou, para estas ocasiões o que importa é o estilo e achava que o mais apropriado seria pôr-se na pele do gajo do anúncio da TV que vai ao balcão do banco investir em arte, ou seja, transaccionar umas moedas de cunhagem limitada, apaladar umas faianças artísticas rubricadas pelo autor e, no fim, aceitar com desenvoltura o bacalhau do gerente.
Sentia-se extremamente orgulhoso: a direcção do sindicato indicara o seu nome para a visita de dez dias a organizações congéneres da Bulgária. Não que tivesse muito interesse pelo que faziam, para além de beber vodka, os gajos dos sindicatos búlgaros, mas ia andar de avião (nunca o fizera), laurear a pevide.., ia ter o primeiro passaporte!
O gajo do balcão mandou-o preencher uns papeis e apontou-lhe uma mesinha de pernas curtas, com umas poltronas à volta. Sentando numa delas, António Gonçalves hesitou,  esferográfica no ar, no preenchimento daqueles quadradinhos onde só cabia um número à vez. Tinha que se pôr um zero antes, quando só havia um número. Por exemplo, um gajo nascido em Julho tinha de pôr no mês um “07”. Tudo do género, uma confusão... Desanimou, levantou a cabeça do impresso.
Na poltrona em frente estava sentado um tipo de fato azul, a ler uma revista. Ao sentir-se olhado, o desconhecido baixou uns milímetros a revista e acenou uma saudação que não era nada. António Gonçalves, torneiro mecânico, sorriu-lhe:
“Desculpe lá, ó mestre, você não me daria aqui uma mãozinha?”
O desconhecido foi simpático. Preencheu-lhe os papeis, não quis aceitar nada e voltou à sua leitura. Levantou-se, entregou a papelada e as fotografias no balcão e perguntou:
“Quando posso vir levantá-lo?”
“Em cinco dias fica pronto e à disposição de V. Ex.ª”, disse o figurão estendendo a mão.
Volvidos cinco dias, às nove da manhã, um portador, por impossibilidade do próprio, procurou o passaporte de António Gonçalves, torneiro mecânico, nascido a 03 de Julho de 19.., na freguesia de Papagovas.
Pagou e saiu, metendo o passaporte num dos bolsos interiores do casaco azul.

VI

Ano terrível, aquele.
Não houve Primavera e quando Julho chegou desabou um verão insuportável. Com o Outono claro que as coisas amaciaram um bocado, mas Outubro e Novembro foram, mesmo assim, meses demasiado quentes.
Na capital, António Gonçalves experimentava os efeitos do calor tardio juntamente com mais um milhão de desnorteados. As pessoas não andavam nada bem e quem pode dizer que anda se ao chegar a casa da praia dá de caras, na televisão, com anúncios de Natal?
Tornou-se nostálgico. Fechou-se no quarto do quarto andar da residencial da Avenida António Augusto de Aguiar, onde morava, passou horas sem fim a fixar a iluminação das ruas, confundindo as luzes com barcos no mar, à noite. Por vezes saía, sufocado pelo silêncio espesso da madrugada, vagueava pelas avenidas da cidade a olhar as raras janelas iluminadas, uma ausência imprecisa fazendo tiragem no peito.
Em meados de Janeiro decidiu partir e pôs-se à espera. A espera desenrolou-se tranquila,  até que o momento chegou. Examinou-o com prudência, constatou que o saco das alternativas estava roto e vazio, e partiu.

VII

Bento Riacho encarou, entre o espantado (não o vira aparecer) e o irritado, o desconhecido.
“É para Espanha?”, perguntou.
O desconhecido do fato azul fixou-o um momento antes de falar.
“Despediu o empregado?”
“Não era empregado, era tarefeiro”, rosnou Bento Riacho. “E que é que você tem a ver com isso?”
“Pensei... Vou para Espanha, à procura de trabalho, mas se o pudesse encontrar no meu país... Você, aqui, neste buraco, vai ver-se à rasca para descobrir alguém...”
O guarda olhou o desconhecido, desconfiado.
“Ora mostre-me o seu passaporte.”
Abriu-o cuidadosamente e pôs-se a mirar, página por página.
“Aqui nesta fotografia você estava mais gordo...”
“Perdi uns quilitos, a vida não tem sido fácil. E a fotografia já era bastante antiga..”
“Isso é proibido, amigo. As fotografias devem ser de há menos de um ano, vão ter que durar cinco no passaporte!”
Enquanto Bento Riacho casquinava de gozo pela demonstração, o desconhecido engatilhava a história preparada para a página seguinte.
“Diz aqui que você é casado. Onde deixou a mulher?”
“Foi ela que me deixou. Já faz tempo...”
Como se trunfasse uma jogada, Bento Riacho bateu o passaporte na mesa.
“Aqui trabalha-se. E não tens direito a férias, nem subsídios, nem o caralho. Percebido?”
O desconhecido apanhou o passaporte, meteu a mala debaixo do braço.
“Onde vou ficar?”
“Ficas onde eu quiser, e o tempo que eu quiser.”
António Gonçalves, torneiro mecânico, encolheu os ombros. Tanto se lhe dava, porcos ou semáforos. O destino designara Penaformosa como seu estábulo. O sítio era horrendo, as pessoas seriam, talvez, piores, mas ali tinha um quinhão de terra a que podia chamar seu e onde era pouco provável ir alguém incomodá-lo. Seguiu Bento Riacho.

VIII

A escassez de verbas, tal como outra porra qualquer, pode ser um instrumento do destino.
Bento Riacho cansara-se a pedir um reforço do orçamento bienal para que se construísse um anexo ao quarto do empregado auxiliar. Esse mesmo quarto era já, de si, um anexo acoplado ao pavilhão principal da alfândega por sugestão e insistência de Bento Riacho.
De facto, escrevia ele na sua proposta, “esta solução tem dupla vantagem: permite ao funcionário a utilização das instalações sanitárias do posto (basta que para isso se ligue o anexo, através de porta, ao corpo do edifício principal) e, ao mesmo tempo, que ele zele pela segurança do erário público durante a noite”.
No novo anexo pretendia Bento Riacho instalar uma cozinha e, assim, cortar de vez com a intromissão dos empregados na sua vida familiar. Se, por um lado, já conseguira que eles deixassem o seu sabonete pelo sabão comunitário do Estado, por outro ainda não conseguira evitar que lhe sujassem louça e lhe esvaziassem o galheteiro.
Deste modo, António Gonçalves, tarefeiro alfandegário, passou a partilhar as refeições da família Riacho, pois que "lamenta esta Direcção-Geral informar que se encontram, para o biénio, esgotadas as verbas destinadas a ampliação de património...".
O agregado de Bento Riacho era constituído por ele próprio, que presidia, pela mulher, que cozinhava, e por uma filha, Ângela Riacho, que andava em dezoito anos. 

IX

António Gonçalves começou, desde logo, a não apreciar as refeições em casa de Bento Riacho. Sobretudo os jantares. Nada ali era agradável. Bento Riacho resmungava, da sopa à fruta, da pouca sorte que o pusera em Penaformosa (na realidade um caso de luvas noutra fronteira melhor situada) e a mulher cozinhava de um modo insultuoso para o paladar, desgraça que se agravava com o passar das horas e a ingestão progressiva de maduro-branco. Ângela Riacho também não ajudava nada. Tinha a cara cheia de borbulhas, estava  com a cabeça em permanência enfiada no prato e nunca falava, a não ser para chicotear o pai com interpelações hediondas.
António Gonçalves sentia-se um intruso, envergonhava-se por ter de assistir a tantos episódios íntimos. Tentava ser simpático com cada um deles, mas isso não lhe trazia espécie alguma de benefício. Ângela julgava que ele defendia o pai e amuava. Bento Riacho enfurecia-se porque ele interferia com a dinâmica familiar ao abrir a boca, e a cozinheira olhava-o, inexpressiva e muda, da sua fronteira de névoa.
Bem que ensaiou novas estratégias para a mesa, mas não teve melhor sorte. Dorido, emudeceu, aqueles almoços e jantares degeneraram num espinho na sua alma. E a primavera, o sol, que nunca mais chegavam...
"Já não há primaveras como dantes", suspirou ao entrar no anexo, "que terá mudado em mim?"
X 
 Cuivis potest accidere, quod cuiquam potest

Um dia, à hora do almoço, António Gonçalves foi sacudido do bacalhau-confiscado com macarrão por um incidente a que os outros se conservaram indiferentes, ou porque não se dessem conta ou porque o dessem e não o encontrassem digno de interesse.
Ângela Riacho inclinara-se na cadeira para pegar na jarra do vinho e uma generosa madeixa castanha deslizou-lhe da cabeça para a testa e depois por sobre um olho. A luz da uma da tarde, subitamente liberta de um rancho de nuvens de Abril, bateu no vidro da janela e incendiou o castanho-avelã do olho esquerdo de Ângela Riacho, olho que António Gonçalves conseguia vislumbrar através de um postigo aberto no meio dos cabelos desgarrados. Quando a cabeça voltou à sua posição primitiva, o olho camuflado fixou, por um segundo ou menos, António Gonçalves, tarefeiro alfandegário. Finalmente, uma sacudidela do pescoço reconduziu a madeixa ao seio da cabeleira castanha.
"Cuivis potest accidere, quod cuiquam potest"*, pensou António Gonçalves, pegando por sua vez na jarra do vinho.
Foi a partir deste momento que ele, com a aflição de quem chega atrasado, passou a apreciar e elogiar a desastrosa vocação culinária de D. Fernanda Riacho, mãe de Ângela Riacho. Mas a obnubilada senhora não deu por nada.
_________
* Do latim: Ninguém diga desta água não beberei.

XI 
Parva scintilla excitavit magnum incendium

Maio correu, as oportunidades de ver Ângela Riacho eram muitas. Mas em Junho o tempo mudou e se as oportunidades de a ver continuavam a ser as mesmas, a certeza de ser visto com olhos semelhantes era... desconhecida.
A partir daqui António Gonçalves perdeu o sentido da realidade. De tal modo ela ocupava o seu espírito que chegou julgar vê-la onde ela não estava, de tanto procurar presságios em todas as coisas chegou a julgar tê-la quando ela não estava.
Os almoços de festa, os jantares de gala, repassaram-se de ansiedade. Que desdobramentos! Evitar as agressões de Bento Riacho, vigiar a velha, que se tornara desconfiada, e ter ainda a capacidade de implorar a Ângela Riacho alguns olhares, de captar meia-dúzia de indícios.
Como consequência deste jogo, ou talvez porque a vida é assim mesmo, ele próprio se desbaralhou em diversos figurinos, confrontando Ângela Riacho com sucessivos personagens, ou seja, apalpando o terreno. E o tino, sob esta pressão constante, vai-se desagregando em fantasias e o que ontem era mero desejo vai funcionar amanhã como pedra de alicerce.
António Gonçalves assustou-se com a doença, mas, após uns minutos de apressada reflexão, concluiu que não havia maneira de voltar atrás. E se não podemos, qualquer seja a circunstância ou o motivo, retroceder, então o mais sensato é ir em frente.
Parva scintilla excitavit magnum incendium!”*, constatou numa breve centelha de lucidez.
De imediato se pôs a examinar a decisão.
________
*Do latim: Uma pequena faísca produziu um grande incêndio.

XII 

António Gonçalves varria o chão com aplicação.
A alguns metros, quatro talvez, Ângela Riacho lia uns papeis. Estava a substituir o pai, na eventualidade remota de surgir algum viajante. Tinha enfiado o vestido desmazelado, os pés descalços em cima da secretária, e uma madeixa de cabelo castanho, espiando a leitura, sobre o olho esquerdo.
António Gonçalves aproximou-se até a uns prudentes dois metros, agachou-se e pôs-se a apanhar uns papeis amarrotados que outonavam o soalho. O cesto dos papeis ficava por trás da secretária, do lado direito da cadeira, a menos de um metro de Ângela Riacho. António Gonçalves, tarefeiro alfandegário, caminhou lentamente, encostou a vassoura à mesa, e inclinou-se sobre o cesto, nas mãos um bouquet de bolas de papel.
Ao pegar de novo na vassoura estendeu a Ângela Riacho um papel verde, recentemente desamarrotado.
“Suponho que este é para si, disse. Deve ter ido parar ao lixo por engano.”
Ângela Riacho alisou o papel sobre a mesa, pegou-lhe com ambas as mãos e começou a ler. Era um triplicado do impresso do seguro automóvel e por cima dos caracteres, desbotados graças a um papel químico de fraca qualidade, alguém escrevera:
Primeiro - se puder guarde segredo disto
Segundo - não fique muito admirada, pois não vale a pena
Terceiro - acho que estou apaixonado por si.
Ângela Riacho riu-se, amarfanhou o papel e deitou-o no cesto do lixo. Depois olhou António Gonçalves e disse:
“Isso passa.”
O tarefeiro alfandegário afastou-se rapidamente com a vassoura, sem coragem sequer para balbuciar:
“E enquanto não passa?”

XIII

Se um amante da comemoração dos pormenores triviais, dos tempos mortos do dia-a-dia, residisse nas imediações de Penaformosa, diria com toda a razoável certeza:
“Faz amanhã um ano que Gabriel Leitão, caixeiro-viajante, atravessou a fronteira, vindo de Espanha, sem carimbo no passaporte.”
Mas o único jardineiro de detalhes de Penaformosa andava entretido noutras áreas do conhecimento...
Recuperou o triplicado verde do impresso automóvel, releu-o, treleu-o, como se não fosse o autor. O que haveria ali que pudesse mover uma gargalhada e um “isso passa” tão cruéis? 
Segurou-se uns séculos numa anestesia forçada, precavendo-se de ver e olhar Ângela Riacho, achando-se perturbado e quase irritado de cada vez que ela cruzava a sua insípida convalescença. Foi sol de pouca dura. Desanimou, emudeceu, desapareceu e, ao quarto dia, voltou ao local do agravo.
Ângela Riacho estava diferente, parecia-lhe. Seria porque partilhavam um segredo? Porque ficara, no fundo, sensibilizada com a declaração? Quereria experimentar-lhe o alcance das intenções? Não o sabia, mas era verdade que se mostrava mais compassiva, mais próxima. Os olhares eram mais prolongados e menos vazios, achava. Algumas ocasiões procurou-o espontaneamente, sem motivo aparente.
Uma manhã, ao entrar no quarto do anexo, encontrou a latinha de salsichas, onde costumava descansar a esferográfica, cheia de água e uma rosa de milagre a tomar banho. Propôs-lhe um encontro, às escondidas.
“Se me deres um bom motivo...”, avisou-o ela.
Deu-lhe o primeiro de que se lembrou, sem se importar muito com a escolha, pois qualquer um seria satélite da sua paixão.
“Está bem”, disse ela, continuando a esfregar roupa na pedra do tanque. “Vai ter comigo uma noite destas, depois da meia-noite, ao meu quarto. Combinamos a maneira mais logo.”
António Gonçalves, tarefeiro por necessidade, perdeu-se imediatamente na sua floresta de Esperanças, tanto as flores tinham medrado.

XIV

António Gonçalves, atarefado alfandegário, caminhava descalço pelo saibro fora.
“Isto é uma loucura desamarrada”, pensava, “se o velho dá conta mata-me!”. 
A porta da habitação de Bento Riacho encontrava-se entreaberta, como ajustado. Subiu os dois degraus da soleira e tentou perscrutar o silêncio no meio do escoucinhar desenfreado do coração. “Tudo em paz... ou será que a armadilha espera no topo das escadas?”
“O terceiro, sétimo, e nono degraus estalam”, prevenira-o Ângela Riacho. “Pisa o terceiro no meio e o sétimo à direita. No nono pousa primeiro o pé esquerdo”. Decorara o bilhete e fizera bem. Para já nenhum ruído.
“No fundo do corredor há uma porta ao fundo, é a sanita – não entres nessa – e outra à direita, que é o meu quarto. Deixo uma luz acesa, deves vê-la pela frincha no chão da porta.”
Tinha agora a frincha iluminada ao nível dos olhos. Parou um pouco, apoiado ao corrimão, a humedecer o céu-da-boca e os lábios com a saliva que lhe restava.
Ao chegar ao fundo do corredor uma frincha vertical, feita de luz, apareceu na porta à direita. “Sentiu-me”, espantou-se, convencido de ter sido absolutamente inaudível. Empurrou a porta de mansinho.
Ela estava recostada na cama, com o vestido desmazelado, descalça. Com a mão direita fazia-lhe sinal para que fechasse a porta, depois um sorriso e um dedo nos lábios a significar: “Com cuidado, sem ruído, que até aqui tudo certo.”
A luz da frincha, que no âmago das escadas lhe parecera ter a intensidade de uma espada flamejante, originava-se num tímido candeeirinho de mesa de cabeceira. O quarto estava pejado de sombras azuis-negras, pela janela aberta esfarrapava-se o luar e palpitava a noite de verão.
Baixou-se e fez deslizar um tapete de beira-de-cama até ao chão da porta. Desse modo se acabava a frincha e se precaviam as dúvidas de Bento Riacho quando, às três da manhã, em pleno pesadelo prostático, passasse para a casa de banho. Virou-se mansamente para a cama.
“Tu és o morto do cemitério, não és? Aquele que chegou vestido de azul e morreu a mijar...”, disse, sorrindo, parada em cima do lençol.
“Ângela, o que a leva a dizer tal...?”, ciciou quando já estava próximo.
“Agora não me podes chamar Ângela, já passa da meia-noite. Tens que me chamar de Alzira Mónica.”
António Gonçalves, tarefeiro alfandegário, sentou-se, perplexo e asténico, na borda da cama. Suores profusos coroavam-lhe a testa e temeu a aproximação de uma febre cerebral. Era uma da manhã.

XV
Hoc volo sic jubeo, sit pro ratione voluntas

“Tinha doze anos no dia em que chegaste, ninguém se lembra melhor do que eu. Ainda me parece estar a ver a tua cara, muito branca, ao lado de umas bolas de naftalina. Desconfiei logo ao ver-te aparecer aqui outra vez. Muitas noites fui espreitar à tua janela e tu nunca estavas na cama. Pensei logo, 'é ele e à noite vai dormir, ou lá o que é, no cemitério'.”
António Gonçalves olhava o chão, cabisbaixo, desarmado pela crueza e pela paixão.
“Afinal qual é o teu verdadeiro nome?! És António Gonçalves, Gabriel Leitão (descobri um bilhete de identidade no teu colchão), ou outra coisa?”
“O meu nome é Valério”, balbuciou António Gonçalves, tarefeiro alfandegário.
“Sempre é o mais bonito... E tu, gostas mais de Ângela ou de Alzira Mónica?”
Valério abriu a boca para responder, mas parou a tempo. Preferia a Ângela dos olhos luminosos, do meio-dia, mas conviria dizê-lo? Por certo que Alzira Mónica era o personagem mágico na ideia de Ângela Riacho. O sol ia demorar uma eternidade a aparecer, não o teria como aliado nessa noite. Obedeceu.
“Gosto mais de Alzira Mónica...”
“Eu também”, sorriu Alzira Mónica juntando as mãos. “A Ângela é fraca, tem que aturar o que os outros querem. Não tem liberdade nenhuma!”
Durante uns minutos permaneceu pensativa, a olhar o espelho da cómoda. O olhar de Valério procurou a janela, confuso. E agora? Como desbloquear o impasse? Não era aquilo que esperava, tudo suspenso, cristalizado... Não conhecia os maquinismos da noite.
“Afinal o que queria dizer aquele bilhete?”, perguntou de súbito Alzira Mónica.
“Apenas aquilo que lá estava escrito.”
“Já não me lembro bem... Estava tão cansada naquele dia; tive que registar todas as ENTRADAS.”
Valério fixou Alzira Mónica com angústia.
“Que estou apaixonado por si, se quer a história curta.”
A expressão dela tornou-se doce e cogitante. Semicerrou os olhos e esvaiu-se na cama, uns dedos distraídos a enrolar a madeixa castanha, um pé a coçar o peito do outro.
“Como é estar morto?”
Valério encarou o corpo abandonado, considerou o tempo perdido. Decidiu agir e mergulhar fundo naquele desatino em que estava atolado. Contou mentalmente até sete, inspirou fundo na ânsia de se libertar daquela angina pectoris*. Depois inclinou-se por sobre Alzira Mónica, torrou as retinas na proximidade daquelas pestanas negras e, murmurando "hoc volo sic jubeo, sit pro ratione voluntas"**, pousou os lábios nos dela.  
Um violento safanão atirou-o para o fundo da cama. Ela sentara-se e, irada, fuzilava-o com os olhos.
“Estás louco ou quê?! Julgas que me vou deixar apalpar por um morto-vivo, um lobisomem, ou lá o que tu és?! Era só o que faltava! Pensas que me interessa muito a tua paixão? Estou-me marimbando, ouviste, ma-rim-ban-do.”
Desmembrado pela dor, esquartejado pela desilusão, Valério deu um pulo felino e desapareceu pela janela na guinada da noite.
_________
*Do latim: Angústia do peito.
**Do latim: Quero-o, assim o ordeno, que a minha vontade substitua a razão.


XVI
Avatar que o pariu

Na sepultura Valério torcia-se de insónia.
Partira algumas unhas de tanto arranhar a terra, tinha a cara sarapintada pela liga macia nascida da comunhão entre as lágrimas e o saibro. Oh, desespero dos desesperos, para que voltara a Penaformosa? E a culpa era toda dele, o Outro bem que o avisara:
“Olha que te pode sair contrário aos propósitos...”
Seria manobra? Parou de esgravatar e abriu os olhos no escuro. Não, era impossível, ela não estava ali para isso... Ela era só ela.
“Será?”, pareceu-lhe ouvir soprado das paredes da cova.
Fosse como fosse, que interessava agora? Já era desumano aguentar a paixão inútil por Ângela Riacho, quanto mais partilhar-lhe os pormenores com o Outro!
“Que posso eu fazer? Que devo eu fazer?”, gemeu.
Sustine et abstine”*, uma gargalhada zombeteira ecoou-lhe nos ouvidos, vinda das profundezas.
“Avatar que O pariu”, gritou Valério, insubordinado. 
Acordou com o galo, mas deixou-se estar mais uns momentos a saborear a luz filtrada pelas fendas, a preparar-se para Ângela Riacho.
Encontra-la-ia só, o pai ia a Fragalhinha comprar uma almofada de tinta para os carimbos.
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*Do latim: Suporta e abstém-te.

XVII

Seria possível que você, algum dia, se viesse a apaixonar por mim?
Valério tremia. Ângela Riacho abanou a cabeça.
“Nem penses! Por muito que tentasses nunca me conseguirias embruxar, vou todos os anos à Cova da Iria. Para além disso que poderia eu fazer de um morto-vivo?”
“Faça ao menos um esforço. Procure ver-me como uma pessoa, como um ser que sofre... Esqueça a minha condição.”
“Não, é escusado.”
Os olhos de Valério, sem que desse por isso, encheram-se de lágrimas.
“Então vou ter de lhe pedir uma coisa...”
“Se for razoável...,” disse ela sem levantar a cara das unhas, que limpava com a tampa de uma esferográfica.
“Acabe comigo, destrua-me para sempre. Se me ajudar eu não volto nunca mais.”
“Estás louco!”, enfureceu-se Ângela Riacho.
Ao levantar a cabeça, para o enfrentar, cruzou os olhos molhados de Valério, pôs-se pensativa. Depois falou, uma voz mais suave:
“Eu não posso, mas talvez a Alzira Mónica...”
Valério encheu-se de esperança. Sorriu, esfregou os olhos, implorou:
“Você fala-lhe?”
“Prometo. Como seria...? Quer dizer, tem de ser especial, não tem? Dizem que vocês, os mortos-huumm, não morrem de qualquer maneira...”
“Eu trato de tudo. Ela só tem que dar uma martelada... Quero dizer, aqui...”
E apontou o peito.
“Só isso!?”
Ângela Riacho pareceu genuinamente admirada.

XVIII
Acta est fabula

Alzira Mónica bateu de leve na porta do anexo.
“Valério?”, chamou baixinho.
Esperou uns instantes e, como ninguém respondesse, empurrou o trinco. A porta cedeu e ela, mal se habituou à escuridão, entrou. O quarto estava vazio, mas a porta que comunicava com a alfândega encontrava-se aberta. Só uma das lâmpadas da casa de banho dos homens estava acesa e, mesmo essa, tinha um lenço de bolso a quebrar a luz.
Topou com Valério sentado na borda de um dos urinóis, a fumar um cigarro. Ao lado, no chão, viu um martelo enorme, daqueles que normalmente são utilizados para aparelhar pedra, e um pau (teria sido serrado de um cabo de enxada?) com um palmo de comprimento, aguçado numa das pontas.
“Olá”, disse Alzira Mónica.
Valério mirou-a com um sorriso estranho (estava tão pálido!) e falou, uma voz enrouquecida:
“Vamos a isto?”
Alzira Mónica desviou o olhar, fixou as bolas de naftalina que se acumulavam no fundo dos urinóis. Quando era pequena julgava que aquilo tombava do misterioso aparelho de mijar dos homens. Ganhou coragem, perguntou:
“Queres mesmo?”
“Há alguma esperança para mim? Se acha que sim...”
Alzira Mónica abanou a cabeça numa negativa desanimada.
“Não, ainda hoje lhe voltei a falar nisso. Até perguntei: ‘E se ele não fosse um morto-huumm, gostavas dele?’. Ela zangou-se e respondeu o que o pai dela diz quando a mãe dela lhe vem com 'ses': ‘Se, se.. Se a minha avó tivesse tomates seria o meu avô!’."
Valério levantou-se, desequilibrado. Atirou a beata do cigarro para o ninho de naftalina de um dos urinóis, desabotoou a camisa e deitou-se no chão.
“Encoste a ponta aguçada aqui (indicou um ponto abaixo do mamilo esquerdo) e bata com o martelo na outra ponta. Uma, duas, três, as vezes necessárias para que o pau desapareça na carne.”
Alzira Mónica acenava que sim, rolava o pau nas mãos suadas, não ousando enfrentar os aflitos olhos de Valério. Continuava a não poder afastar da mente as bolas de naftalina que pingavam silenciosas, uma a uma, do sexo dos homens...
“E, sobretudo, não pare a meio, nem tire o pau para fora depois de estar enfiado”, recomendou. “Nem que eu lho peça. Estou agora pronto.”
Alzira Mónica cavalgou Valério, apoiou a ponta aguçada no peito.
“Está bem aqui?”, perguntou.
Pegou no martelo, ergueu-o no ar e... hesitou. Valério fechara os olhos, as suas mãos, prostradas de cada lado do corpo, tremiam descontroladamente. Bolas de naftalina a rolar como berlindes, a derreter-se, encharcando o soalho.
“Tens a certeza absoluta que não vai ficar ferida nenhuma?”
Valério abriu uns olhos que a acariciavam com meiguice:
“Pode estar descansada, tranquilizou-a, vai ficar tudo como está agora.”
“Adeus Valério, esquece e descansa em paz”, despediu-se Alzira Mónica, desferindo a primeira marretada.
A primeira estocada pouco enterrou o pau, quase só serviu para afastar duas costelas teimosas. Mas Valério sentiu algo de muito especial a aproximar-se. Ia regressar ao inevitável fundo de si, desta vez de modo definitivo. E não queria, não podia, não queria acreditar na perda sem remédio dos olhos de Ângela Riacho iluminados pela luz do sol poente, tal como os tinha visto um fim de tarde quando ela apanhava peças de roupa no estendal das traseiras.
“Pare, pare; deixe-me viver...”
“Está quieto”, repreendeu-o Alzira Mónica. “Tu mesmo pediste que não parasse!”
E continuou a desferir a marrã sobre a metade do pau que ainda estava por enterrar, enquanto cantava hinos religiosos para não ser distraída pelos mansos uivos do agonizante e pela torrente de bolas de naftalina que se derramavam sobre ela.
A ponta do pau convenceu finalmente a teimosia do coração, a boca de Valério escancarou-se como se ele jazesse numa cadeira de dentista. Os olhos injectaram-se de vermelho e Alzira Mónica sentiu uma labareda lamber-lhe as entranhas.
A boca de Valério fechou-se com um rangido pavoroso de dentes a quebrar-se, voltou a abrir-se e uma ponta de língua esboçou o afago dos lábios despedaçados.
“Estava com todo o ar de quem queria falar”, contou, mais tarde, Alzira Mónica a Ângela Riacho.
Acta est fabula”*. 
Alzira Mónica sentiu-se parva! Por causa de uma estúpida golfada de sangue, que se vertera como uma cascata pelo pescoço de Valério, não percebeu as últimas palavras do morto!
Olhou o peito dele. Ao menos não mentira, ninguém poderia dizer que ali tinha sido enterrado um toco de enxada! Estava tudo intacto, a pele lisinha e virgem. Pôs-se de pé e estudou o cadáver de mãos na cintura. Era preciso abotoar-lhe a camisa, pousar-lhe a cabeça em cima do degrau do mictório. Assim ficaria como da primeira vez. Limpou o sangue, arrumou o martelo no anexo, apagou a luz e foi-se deitar.
________
*Do latim: Está representada a peça.

XIX
Epílogo

Ângela Riacho passou o dia do funeral de Valério um nada autista.
Ao crepúsculo animou, quando o pai lhe revelou que em breve a fronteira iria estar aberta também à noite e que, provavelmente, seria necessário que ela desse uma ajuda. Tarde, próximo da madrugada, acordou e teve uma espertina. Desceu à cozinha, trouxe uma fruta, umas bolachas, um copo de vinho fresco. Aproveitou a falta de sono para conversar com Alzira Mónica, que despertou com o ruído cavo das dentadas na maçã e, às tantas, toparam no assunto de Valério, o morto-morto.
“Custou-te muito?”, perguntou Ângela Riacho.
“Não... Bem, no fim, quando o vi ali esparramado, senti-me parva..”, confessou Alzira Mónica ausentando o olhar e sorvendo um gole de vinho.
“Deixa lá”, consolou-a Ângela, atirando o casquilho da maçã pela janela fora, “afinal ele era um chato.” 

© Fotografias de Pedro Serrano. De cima para baixo: (1) Lisboa, 2010; (2) Mértola, 2008; (3) Praia da Areia Branca, 2010; (4) Torres Vedras, 2010.