29 setembro 2015

MORENA ROSA

© Edi fotografada por Pedro Serrano, Bissau (Guiné), Setembro 2015.

27 setembro 2015

A TRISTE HISTÓRIA DO PERU ABU

Mari
Olá, queridos amiguinhos e amiguinhas:
Desta vez este texto é dedicado aos mais pequeninos. Eu sou a borboleta Mari e vou-vos contar a triste história do peru Abu.
Abu era um belo peru, grande, tufado, bem tratado e alimentado, que não largava penas e, não fora aquela ideia, que o angustiava, de estar predestinado a uma ceia de Natal, seria um peru totalmente feliz. Mas todas as noites tinha pesadelos e sonhava que estava a ser trinchado às fatias e, pau-la-ti-na-mente, começou a meter-se nas bebidas enlatadas... E os amiguinhos, aí em casa, sabem – o bom gnomo George não se cansa de nos alertar para isso – o veneno que aquilo é com os seus açúcares, corantes e conservantes. Pois Abu não quis saber de mais nada e passado pouco tempo consumia uma dose tremenda de enlatados!
Abu

E acabou assim, mirrado e assustador. Como já não tinha dinheiro nenhum para comprar refrigerantes, procurava no meio do lixo, nas latas abandonadas, à procura de eventuais desperdícios de bebidas. Nas horas vagas, ajudava a arrumar carros e todas as moedas que pudesse juntar queimava-as a comprar refrigerantes. Pobre Abu!
© Fotografias de Pedro Serrano, Bissau, Setembro 2015.

26 setembro 2015

NEM SÓ DE PÃO

No Hotel Coimbra, instalado numa antiga casa colonial e respectivos acrescentos, temos acesso a tudo quanto se queira para além de cama, mesa e roupa lavada. Há uma biblioteca e uma videoteca na recepção, outra pequena exposição de livros na sala de jantar e, no espaço do bar, aguarda a nossa curiosidade uma estante com uma sólida colecção de dicionários e enciclopédias em língua portuguesa. Depois, descendo as escadas e saindo para o inclemente calor exterior, encontra-se no andar térreo do edifício, mas pertencendo também ao hotel, um modesto supermercado à esquerda e uma livraria à direita. Que se pode pedir mais? Mas ainda há mais e pelos corredores, nos quartos, há quadros e desenhos nas paredes, produção de artistas locais, delicadamente escolhidos.
Já na secção de objectos animados, no pátio onde pontificam os enormes geradores que dão luz a isto tudo, há, ao fundo, um pequeno tanque com uma grelha de metal como cobertura. Lá dentro estão três crocodilos, tão apertados no exíguo espaço – ainda por cima, são forçados a partilhá-lo com algumas tartarugas – que a sua envergadura não passa do metro e raspas quando, aqui na Guiné, atingem facilmente os quatro ou cinco metros. Coitados, como não lhes foi dada a capacidade de enroscamento, como às cobras, só lhes resta viverem num atrofio.
“Para que é que vocês os têm aqui?”, pergunto ao empregado da recepção que mos foi mostrar, “é para comer, ou dar sorte?”
“Não”, responde ele com simplicidade e algum horror por eu propor que se pudessem comer, “aparecem por aí na rua a vender, a gente foi comprando e foi pondo aí...”
E quando lamentei o aperto de sardinha em lata em que estão os bichos, informou-me que nas novas instalações do Hotel já está programado um espaço, como deve ser, para os sáurios, com piscina e tudo. Boa espreguiçadela, pessoal!
Mas não é tudo quanto a animais: no terraço mais frondoso do hotel, fornecido de sombra pelas esteiras estendidas por cima das nossas cabeças existem duas gaiolas, do tamanho de um homem, e numa delas estão dois pequenos papagaios, verdes como pistáquios verdes, a que por aqui chamam periquitos. Da outra olha-nos um bicho solitário, tão velho que está completamente depenado e se nota a pele como a uma galinha a quem já se preparou o corpo para a panela. “Que pássaro é este?”, pergunto a Sacovaz, o director do hotel, que se ofereceu para me vir explicar as aves quando demonstrei curiosidade por elas.
“Também é um periquito, mas diferente; não o podemos pôr com os outros senão mata...”
“Quem mata quem?”, quis saber, mirando com dó o velho pássaro despelado e imaginando já o par de jovens papagaios a esfarelar o solitário idoso.
“A cinzenta, mata os outros logo...”
Fiquei a matutar naquilo e a olhar com redobrado respeito o bico, recurvo e poderoso, do periquito cinzento; os olhos amarelos onde não morava ponta de piedade, mas apenas luzia uma desconfiança predadora. Entretanto, Sacovaz produzindo pequenos ruídos assobiantes com os lábios, introduzia um dedo por entre as grades e tinha-se posto a coçar a cabeça do periquito cinzento, a única parte do corpo onde a pelagem se mantinha. Feliz, o pássaro revirava a cabeça cento e oitenta graus, de modo a melhor oferecer ao dedo do amigo o cocuruto do crânio e, embora os olhos não conseguissem adoçar a sua expressão de perigo iminente, toda a sua linguagem corporal era de balsâmica plenitude.
“Acha que lhe posso também fazer uma festita ou ele só é assim manso consigo?”
“Acho que pode...”, respondeu num laconismo não muito tranquilizante.
Fiz a minha esfregadela de ponta de dedo e o bicho tolerou a carícia, mas com visível indiferença.
“Parece-me que ele nota a diferença”, comentei para Sacovaz.
“Yá, acho que sim...”, admitiu ele, “venho aqui muitas vezes fazer isto, ele já me conhece bem”.
Regressei ao quarto cheio de sede, pois estar aqui ao ar livre mais de cinco  minutos faz-nos suar como lagostas na panela. Abri o frigorífico e a sensação de sombras a deslizar no interior assaltou-me, mas já sem a surpresa de alucinação do primeiro dia. No meu quarto, como nos outros, há algumas baratas e preferem morar dentro do frigorífico, único local onde as encontro: penso que esta preferência é, para elas, uma opção prática de associar hipótese de comida com frescura. No fundo, à dimensão humana, não será muito diferente de um bar de piscina num resort.
© Fotografias de Pedro Serrano, Bissau (Guiné), Setembro 2015.

23 setembro 2015

ENTRETANTO NA GUINÉ-BISSAU...

O gerador do hotel é omnipresente na rua, como se alguém tivesse deixado um camião com o motor ligado e um tijolo esquecido sobre o acelerador. Não se consegue sequer escapar-se-lhe do lado de lá da rua, no “Farol do Porto”, um restaurante com esplanada ou, melhor dizendo, uma esplanada que é restaurante e onde o proprietário, um alentejano que mora por aqui há um quarto de século, tem mesa reservada. Não admira, passa a vida lá sentado, recebe cada cliente individualmente abancado como um soba de adopção, inclinado para trás na cadeira, pois tem um ventre tão abrangente que de outro modo embarraria na mesa, tombá-la-ia. Enquanto vai apontando um controlo-remoto ao plasma de LCD, pendurado numa coluna no lado oposto da esplanada, e mudando os canais à medida que se irrita com o que está a ser emitido, o Sr. Torres ingere enormes talhadas de melancia, que ele mesmo seccionou com a reverência de quem trincha um peru. O fruto tinha um ar tão rubro e o apetite prazeroso do homem era tão visível que, à sobremesa, pedi uma fatia para mim.
“Não há...”, comunicou-me a sorumbática empregada.
“Mas ainda há pouco... não sobrou nenhuma?”, protestei debilmente apontando a mesa reservada.
“É do patrão...”, resumiu ela, propondo-me manga como alternativa. Não fiquei a perder, eu que nem aprecio grande coisa a fruta exótica. Duas fatias finas e longas, alaranjadas como um sol nascente, com meia lima a fazer contrastar a cor e sublinhar o sabor. Ainda hesitei sobre uma segunda dose mas afazeres profissionais  esperavam-me às duas da tarde, de modo que fui despedir-me do Sr. Torres e vazei.
“Boa sesta...”, desejou ele.
© Fotografias de Pedro Serrano, Bissau, Setembro 2015.

21 setembro 2015

ANTES QUE ARREFEÇA

Generoso, quase em excesso. Pelo menos foi isso que pensei, quando,  sem me conhecer de lado nenhum, se ofereceu para me emprestar dinheiro.
Eu explico: um amigo avisou-me de uma colunas de som que estavam à venda, umas JBL4311, um par de objectos místicos, profissionais, com uma qualidade de som ainda hoje imbatível. Fiquei arrebatado com a hipótese de poderem vir a ser minhas, mas onde tinha 90 contos para pagar aquilo? Isto passou-se em 1978 e nesses anos tal quantia correspondia a cerca de 20 vezes o meu ordenado, qualquer coisa como uns 90.000 euros de hoje.
“O Fernando diz que empresta a grana pra você”, telefonou-me, uns dias mais tarde, o Flávio, o amigo comum, a comunicar.
“O quê?! Mas o gajo nem me conhece, não tem garantia nenhuma que  lhe venha a pagar...”
“Você não conhece o Silva”, avisou ele, “falei-lhe do seu gosto em ter aquilo e ofereceu-se logo.”
Foi assim que o conheci, por causa do dinheiro que me emprestou para comprar as colunas por onde ainda hoje ouço música, por onde a ouvi nestes mais de 35 anos. Conheci-o e com isso recebi a pronto duas lições: uma sobre generosidade, esse bem tão frágil, e outra sobre confiança no mundo. Com essas duas vinha agarrada uma terceira, essa em prestações vindouras: amizade.
Quanto a ele, morreu num instante, como um tordo alvejado por um tiro certeiro; morte invejável, a de morrer como um passarinho. Meti-me no carro, fui por aí acima, foi no habitáculo solitário, sem testemunhas, que chorei as primeiras lágrimas. Já no átrio da igreja, chorei outras ao conseguir espreitar, por uma nesga da porta aberta, a filha, que chegara a correr de Inglaterra, encostada ao topo do caixão, passando uma mão carinhosa pelos cabelos do pai, a conversar com ele palavras inaudíveis.
O átrio por trás da igreja estava repleto, toda a gente da terra passava por ali para o visitar, era um tipo querido de todos, já o suspeitava. Estavam por ali todos os ex-empregados da oficina de automóveis onde tinha sido mecânico e depois patrão: o Leão, o Chaparral, o Neca, o Aguiar, outros colaboradores. Quando resolveu desfazer-se da oficina, fez os empregados sócios, deixou-lhes aquilo quase de mão beijada... E médicos, assim ao correr da pena, andavam por ali uma dezena. Que raio fazia com que tivesses tantos amigo médicos, Fernando? Não usaste nenhum deles em benefício próprio, nenhum te serviu profissionalmente; um deles era antes a tua companhia fiel dos passeios diários à beira-mar.
O barzinho do Centro Paroquial estava aberto – para servir quem ali andava a visitar o defunto, a entregar respeitos à família – fomos lá meia-dúzia de nós comer um caldo-verde e picar uma carne de porco à Alentejana. Teríamos ido contigo se o defunto fosse outro, Silva; terias esfregado as mãos ao sentar-te à mesa, que a noite pôs-se friota, bonita – um crescente de lua no céu nítido e a luz dos aviões a confundir-se com estrelas – mas friota. O senhor do Centro Paroquial falou-nos de ti enquanto nos servia, de como eras generoso às escondidas:
“Mas olhe que não queria que se soubesse: era a primeira coisa que pedia. Ajudava toda a gente, ainda outro dia andava por aí uma senhora muito doente, a viver sozinha, sem posses, uma situação... Fomos ter com ele: Fernando é preciso dar uma ajuda... E ele sacava do livro de cheques. Mas nunca queria que se soubesse. Vá perguntar ao jardineiro da Igreja de São Miguel-O-Anjo  quem é que tem pago os arranjos do jardim...”
Voltei a chorar quando cheguei ao hotel, ao fim da noite, e li em sossego a brochura que a agência funerária preparou. Abre com uma frase, uma espécie de poema branco, inteligentemente redigido, onde parece que ele se dirige em discurso directo a cada um de nós. E a fotografia foi bem escolhida: reproduz o ar prazenteiro que lhe era característico, que ostentava quando nos aproximávamos e fazia com que nos sentíssemos sempre bem-vindos... E há um brilho líquido no olhar, como se estivesse comovido com a comoção que nos provocou a notícia da sua morte.
Olha, Fernando, sabes que não posso ficar para o funeral: tenho um avião para apanhar e 300 km para chegar até ele. Morrias um dia mais tarde e eu não teria podido ir dizer-te adeus, ia ficar com isso atravessado quando o soubesse lá longe. Não vou poder ver o teu fumo branco subir direito no céu anil do norte da cidade. É que se pôs um lindo dia, azul, sem vento, quase sem nuvens... Vou andando, querido amigo, ainda vou tentar escrever umas palavras sobre tudo isto antes que arrefeça.


Nota: Em memória de Fernando Silva, 15/3/1948-20/9/2015.

17 setembro 2015

NÃO VENHAS TARDE: 23. A MINHA RELIGIÃO NÃO PERMITE

Já não recordo, alguém me disse ou teremos lido no Overland to India que os guardas que fazem a triagem dos passageiros nas fronteiras terrestres do Irão são treinados pela CIA na detecção de droga. E, de facto, é impressionante o profissionalismo hábil com que lidam o assunto e, no meio de perguntas banais, feitas em ar distraído e impessoal, perguntam, de repente:
– Transportas droga na bagagem?
Com um chofre destes é, para quem tem a consciência pesada, quase impossível não corar ou deixar escapar um frémito perceptível. Mas nós já estávamos preparados para aquilo e o Rui respondeu, com gravidade quase solene:
Não, a nossa religião não permite o uso de drogas.
Ora naquela parte do globo, onde a religião é levada com esmagadora seriedade e o álcool um grande pecado, uma resposta deste tipo tem peso. Mas, para além de estarmos preparados para a pergunta, não levávamos uma molécula de nada nas mochilas, nos bolsos ou nos pulmões. É que o Overland to India é bem explícito na enumeração dos países nos quais é demasiado perigoso entrar ou ser apanhado com qualquer espécie de droga ilícita: Turquia, Irão, Índia. Havia um denominador comum a esta política extremamente dura e repressiva para com os prevaricadores: todos estes países são acusados pela ONU, e outros organismos amantes da Humanidade, de abrigar abundante produção (sobretudo das papoilas de onde se extrai o ópio, a partir do qual se fabrica  depois a heroína) e facilitar o tráfico, razão pela qual todos eles querem ficar bem na fotografia e afixar alguns culpados na placa de cortiça da Justiça.
A fronteira entre a Turquia e o Irão é um exemplo sinistro disto tudo: para além do ambiente de ditadura militar que se faz sentir mal pomos o pé em solo persa, para além do método científico-criminal de abordagem dos guardas alfandegários, o turista recém-chegado é ainda brindado, enquanto espera a vez de ser revistado e carimbado, com a exposição, em catalogadas vitrinas, de troféus da vigilância antidroga: um pneu sobresselente seccionado e recheado com sacos de heroína; um depósito de gasolina em corte, onde se pendura por um fio um embrulho plastificado envolvendo barras da hashish; e, fruto do engenho humano de quem esconde e de quem encontra, outras peças de veículos onde foi encontrada droga. Mas a cereja no topo consiste numa sequência fotográfica, exposta com o rigor fúnebre do preto e branco, das consequências das apreensões, que, monotonamente, consistem nos retratos de tipos pendurados pelo pescoço numa corda. Isto, particularmente à hora de jantar, tira a vontade de fumar a qualquer um.

Mas tudo acabou em bem e ninguém foi preso; depois da revista alguns guardas, embora seja proibido, deixaram-se até fotografar com alguns dos viajantes antes de seguirmos viagem. Amanheci com montanhas, algumas com neve lá no cima, corvos, águias, instalações militares, desolação e uma paisagem bonita, tornada às vezes monótona pela erosão. E camelos, muitos camelos, dando finalmente o necessário tom exótico ao percurso.
Voltei a acordar com a camionete a parar para pequeno-almoço, numa espécie de caravanserai dos tempos modernos. O café tem umas instalações miseráveis e as moscas pousam em tudo onde luza uma molécula lambível. Mas, apesar disso, lá está a fotografia, a cores, de Mohammad Reza Pahlevi, o Xá da Pérsia, e da sua fotogénica imperatriz, quase tão omnipresentes nesta desolação como os anúncios da Coca-Cola.



10 setembro 2015

SETE SEM TRAÇO (AMIAL)

A rua Sá da Bandeira, na cidade do Porto, como um rio que para nascer busca o recolhimento de uma gruta, brota do vão de um prédio suspenso em arcos de betão e, com os caprichos de um curso de água, lança o piso de paralelo por ali abaixo, descrevendo no seu trajecto, até aí rectilíneo, um meandro ao passar entre os cais do Teatro e da Brasileira. No troço final, comprimida nas margens, hesita se segue a direito pelo estrangulamento de Sampaio Bruno, mas acaba, numa nova contorção e tentada pelo Douro que a atrai como a um afluente, por encaminhar-se para S. Bento, a espreitar a parte ribeirinha do burgo. 
Apesar do comércio e outros ramos de labor da cidade só encerrarem as portas para almoço à uma da tarde, há um momento, por volta do meio-dia, em que um apaziguamento de armistício se abate sobre Sá da Bandeira, entorpecendo tudo quanto se move, desde o trânsito, que se escoa preguiçoso, até ao ritmo com que os seres evoluem ao longo do quadriculado dos passeios.
Era, precisamente, essa hora especial e na varanda do último piso das Representações Portuenses, fumando uma cigarrada debruçados sobre a balaustrada de ferro, desfrutávamos quem passava na nesga da rua e da Praça D. João I que daqui se avista. E embora o que de largueza daqui se vê não seja muito, esse pouco abrange os colhões de um dos dois possantes cavalos de bronze que, de cada lado do lago, vigiam a praça do alto dos seus pedestais e anseiam, de pata semilevantada, que alguma das damas antigas acotoveladas na platibanda do Rivoli desça do seu friso de pedra e consinta cavalgá-los.
Eu e o Aires, que partilha comigo a linha de montagem (como pomposamente se refere o Hernâni à tosca bancada de madeira onde fazemos placas de pastilha de cerâmica italiana), apreciamos observar as gajas que, subindo a rua de olhos baixos, ao roçar o bicho não resistem a erguer o queixo para coscuvilhar os guizos bronzeados do animal. Como disse, é por volta do meio-dia, quando tudo se acalma e elas cruzam a nossa nesga como em câmara lenta, que esse espectáculo é mais encantador. Mas não há bela sem senão.
“Ó Romeu...”, ouvi berrar de baixo.  
Corremos para dentro e, num repente, sentamo-nos à bancada, pois já se ouviam os passos do Hernâni escada acima.
“Romeu”, troou numa voz de encarregado na ausência do patrão, “preciso que me faças uma entrega urgente no Amial”.
“Diga, Sr. Hernâni”, respondi sem levantar os olhos da mesa.
“É fundamental entregar, antes das duas da tarde, uns catálogos em casa do Sr. Sá Lemos. Ele vai hoje à tarde à Trofa e quer levá-los. Quero que trates disso.”
“Certo, Sr. Hernâni”, disse, levantando-me. “Vou buscá-los lá em baixo?”
“Espera, ainda não acabei! Já que vais para aqueles lados, passavas depois na obra da Freitex, na Ponte da Pedra, a insistir na factura da última remessa de ladrilhos – já estão atrasados três meses. Pede os papéis à Anabela e as amostras ao Pereirinha.”
Mal o gajo saiu, pisquei o olho ao Aires.
“Hoje não ponho cá mais o cu...”
“Cabrão...”, rosnou ele, invejoso.
Mas eu já estava no andar de baixo, no escritório, à procura do Pereirinha, um santo que, embora tenha idade para ser pai dele, é um pau para toda a colher do Hernâni.
“O Sr. Pereirinha está no armazém”, informou-me a Anabela com o ar enjoado que usa comigo, “aqui estão as facturas para a Freitex”, disse, estendendo-me um envelope, “e o dinheiro para o eléctrico”, concluiu, apontando um par de moedas pousadas na escrivaninha do Hernâni.
Desci ao rés-do-chão, onde dei com o Pereirinha empoleirado num escadote, rodeado por prateleiras atafulhadas de caixotes de madeira e caixas de papelão.
“Ó Pereirinha, tem por aí uns catálogos para mim?”
“És tu que vais ao Amial? Olha que não vais leve... São três catálogos de pastilha e dois de marmorite.”
“Foda-se, carago! Bem, sempre arejo. Meta-me isso num saco resistente...”
“Já meti”, informou, indicando um saco de ráfia com asas.
Tinha levantado o saco, dado um arquejo simbólico e dirigia-me à porta quando ouvimos um gritinho vindo do andar de cima:
“R-o-o-m-e-u”, agudizou a voz da Anabela, logo seguida de um troteado de saltos altos pelas escadas abaixo.
“Romeu...”, soprou, alterada, “telefonaram agora mesmo da residência do Sr. Sá Lemos: é preciso que passes antes na Casa Tamegão, a levantar uma encomenda para a D. Teresa”.
“Tá bem, Belinha”, assenti em voz meiga, “Tamegão eu fosse...”
A Anabela é escriturária nas Representações há pouco mais de um ano. Não se pode afirmar que seja uma flor de competência em dactilografia ou no despacho do expediente, mas foi o próprio Sr. Sá Lemos a recomendar a admissão e é, como diria o Júlio, “boa nas horas”, alegrando as nossas jornadas com os seus decotes em v e as saias-rachadas. Não acha graça às minhas tiradas nem, diz ela, ao olhar “nojento” com que alguns a miram. Esses alguns incluem, para além de mim, o Aires, o Zé (o nosso motorista) e, até, o pobre Pereirinha. Dos outros níveis de comando não se queixa.
“O recado está dado...”, cortou com secura virando-nos as costas.
Ficámos, em silêncio, a vê-la evoluir pelas escadas até desaparecer no patamar. Logo depois, peguei no saco, subi a rua até à Casa Tamegão e, mais atestado que o preto da Casa Africana, bati em direcção à Praça e apanhei um 7 para o Amial.   
  
[Excerto do romance No Verão Fico Sempre Mais Nova, de Pedro Serrano. Mais informações sobre o assunto na homepage de semcompromisso.com]