26 setembro 2015

NEM SÓ DE PÃO

No Hotel Coimbra, instalado numa antiga casa colonial e respectivos acrescentos, temos acesso a tudo quanto se queira para além de cama, mesa e roupa lavada. Há uma biblioteca e uma videoteca na recepção, outra pequena exposição de livros na sala de jantar e, no espaço do bar, aguarda a nossa curiosidade uma estante com uma sólida colecção de dicionários e enciclopédias em língua portuguesa. Depois, descendo as escadas e saindo para o inclemente calor exterior, encontra-se no andar térreo do edifício, mas pertencendo também ao hotel, um modesto supermercado à esquerda e uma livraria à direita. Que se pode pedir mais? Mas ainda há mais e pelos corredores, nos quartos, há quadros e desenhos nas paredes, produção de artistas locais, delicadamente escolhidos.
Já na secção de objectos animados, no pátio onde pontificam os enormes geradores que dão luz a isto tudo, há, ao fundo, um pequeno tanque com uma grelha de metal como cobertura. Lá dentro estão três crocodilos, tão apertados no exíguo espaço – ainda por cima, são forçados a partilhá-lo com algumas tartarugas – que a sua envergadura não passa do metro e raspas quando, aqui na Guiné, atingem facilmente os quatro ou cinco metros. Coitados, como não lhes foi dada a capacidade de enroscamento, como às cobras, só lhes resta viverem num atrofio.
“Para que é que vocês os têm aqui?”, pergunto ao empregado da recepção que mos foi mostrar, “é para comer, ou dar sorte?”
“Não”, responde ele com simplicidade e algum horror por eu propor que se pudessem comer, “aparecem por aí na rua a vender, a gente foi comprando e foi pondo aí...”
E quando lamentei o aperto de sardinha em lata em que estão os bichos, informou-me que nas novas instalações do Hotel já está programado um espaço, como deve ser, para os sáurios, com piscina e tudo. Boa espreguiçadela, pessoal!
Mas não é tudo quanto a animais: no terraço mais frondoso do hotel, fornecido de sombra pelas esteiras estendidas por cima das nossas cabeças existem duas gaiolas, do tamanho de um homem, e numa delas estão dois pequenos papagaios, verdes como pistáquios verdes, a que por aqui chamam periquitos. Da outra olha-nos um bicho solitário, tão velho que está completamente depenado e se nota a pele como a uma galinha a quem já se preparou o corpo para a panela. “Que pássaro é este?”, pergunto a Sacovaz, o director do hotel, que se ofereceu para me vir explicar as aves quando demonstrei curiosidade por elas.
“Também é um periquito, mas diferente; não o podemos pôr com os outros senão mata...”
“Quem mata quem?”, quis saber, mirando com dó o velho pássaro despelado e imaginando já o par de jovens papagaios a esfarelar o solitário idoso.
“A cinzenta, mata os outros logo...”
Fiquei a matutar naquilo e a olhar com redobrado respeito o bico, recurvo e poderoso, do periquito cinzento; os olhos amarelos onde não morava ponta de piedade, mas apenas luzia uma desconfiança predadora. Entretanto, Sacovaz produzindo pequenos ruídos assobiantes com os lábios, introduzia um dedo por entre as grades e tinha-se posto a coçar a cabeça do periquito cinzento, a única parte do corpo onde a pelagem se mantinha. Feliz, o pássaro revirava a cabeça cento e oitenta graus, de modo a melhor oferecer ao dedo do amigo o cocuruto do crânio e, embora os olhos não conseguissem adoçar a sua expressão de perigo iminente, toda a sua linguagem corporal era de balsâmica plenitude.
“Acha que lhe posso também fazer uma festita ou ele só é assim manso consigo?”
“Acho que pode...”, respondeu num laconismo não muito tranquilizante.
Fiz a minha esfregadela de ponta de dedo e o bicho tolerou a carícia, mas com visível indiferença.
“Parece-me que ele nota a diferença”, comentei para Sacovaz.
“Yá, acho que sim...”, admitiu ele, “venho aqui muitas vezes fazer isto, ele já me conhece bem”.
Regressei ao quarto cheio de sede, pois estar aqui ao ar livre mais de cinco  minutos faz-nos suar como lagostas na panela. Abri o frigorífico e a sensação de sombras a deslizar no interior assaltou-me, mas já sem a surpresa de alucinação do primeiro dia. No meu quarto, como nos outros, há algumas baratas e preferem morar dentro do frigorífico, único local onde as encontro: penso que esta preferência é, para elas, uma opção prática de associar hipótese de comida com frescura. No fundo, à dimensão humana, não será muito diferente de um bar de piscina num resort.
© Fotografias de Pedro Serrano, Bissau (Guiné), Setembro 2015.

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