17 setembro 2015

NÃO VENHAS TARDE: 23. A MINHA RELIGIÃO NÃO PERMITE

Já não recordo, alguém me disse ou teremos lido no Overland to India que os guardas que fazem a triagem dos passageiros nas fronteiras terrestres do Irão são treinados pela CIA na detecção de droga. E, de facto, é impressionante o profissionalismo hábil com que lidam o assunto e, no meio de perguntas banais, feitas em ar distraído e impessoal, perguntam, de repente:
– Transportas droga na bagagem?
Com um chofre destes é, para quem tem a consciência pesada, quase impossível não corar ou deixar escapar um frémito perceptível. Mas nós já estávamos preparados para aquilo e o Rui respondeu, com gravidade quase solene:
Não, a nossa religião não permite o uso de drogas.
Ora naquela parte do globo, onde a religião é levada com esmagadora seriedade e o álcool um grande pecado, uma resposta deste tipo tem peso. Mas, para além de estarmos preparados para a pergunta, não levávamos uma molécula de nada nas mochilas, nos bolsos ou nos pulmões. É que o Overland to India é bem explícito na enumeração dos países nos quais é demasiado perigoso entrar ou ser apanhado com qualquer espécie de droga ilícita: Turquia, Irão, Índia. Havia um denominador comum a esta política extremamente dura e repressiva para com os prevaricadores: todos estes países são acusados pela ONU, e outros organismos amantes da Humanidade, de abrigar abundante produção (sobretudo das papoilas de onde se extrai o ópio, a partir do qual se fabrica  depois a heroína) e facilitar o tráfico, razão pela qual todos eles querem ficar bem na fotografia e afixar alguns culpados na placa de cortiça da Justiça.
A fronteira entre a Turquia e o Irão é um exemplo sinistro disto tudo: para além do ambiente de ditadura militar que se faz sentir mal pomos o pé em solo persa, para além do método científico-criminal de abordagem dos guardas alfandegários, o turista recém-chegado é ainda brindado, enquanto espera a vez de ser revistado e carimbado, com a exposição, em catalogadas vitrinas, de troféus da vigilância antidroga: um pneu sobresselente seccionado e recheado com sacos de heroína; um depósito de gasolina em corte, onde se pendura por um fio um embrulho plastificado envolvendo barras da hashish; e, fruto do engenho humano de quem esconde e de quem encontra, outras peças de veículos onde foi encontrada droga. Mas a cereja no topo consiste numa sequência fotográfica, exposta com o rigor fúnebre do preto e branco, das consequências das apreensões, que, monotonamente, consistem nos retratos de tipos pendurados pelo pescoço numa corda. Isto, particularmente à hora de jantar, tira a vontade de fumar a qualquer um.

Mas tudo acabou em bem e ninguém foi preso; depois da revista alguns guardas, embora seja proibido, deixaram-se até fotografar com alguns dos viajantes antes de seguirmos viagem. Amanheci com montanhas, algumas com neve lá no cima, corvos, águias, instalações militares, desolação e uma paisagem bonita, tornada às vezes monótona pela erosão. E camelos, muitos camelos, dando finalmente o necessário tom exótico ao percurso.
Voltei a acordar com a camionete a parar para pequeno-almoço, numa espécie de caravanserai dos tempos modernos. O café tem umas instalações miseráveis e as moscas pousam em tudo onde luza uma molécula lambível. Mas, apesar disso, lá está a fotografia, a cores, de Mohammad Reza Pahlevi, o Xá da Pérsia, e da sua fotogénica imperatriz, quase tão omnipresentes nesta desolação como os anúncios da Coca-Cola.



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