Já não recordo, alguém me disse ou teremos lido no Overland to India que os guardas que
fazem a triagem dos passageiros nas fronteiras terrestres do Irão são treinados
pela CIA na detecção de droga. E, de facto, é impressionante o profissionalismo
hábil com que lidam o assunto e, no meio de perguntas banais, feitas em ar distraído
e impessoal, perguntam, de repente:
– Transportas droga na bagagem?
Com um chofre destes é, para quem tem a consciência
pesada, quase impossível não corar ou deixar escapar um frémito perceptível.
Mas nós já estávamos preparados para aquilo e o Rui respondeu, com gravidade
quase solene:
–
Não, a nossa religião não permite o uso de drogas.
Ora naquela parte do globo, onde a religião é
levada com esmagadora seriedade e o álcool um grande pecado, uma resposta deste
tipo tem peso. Mas, para além de estarmos preparados para a pergunta, não
levávamos uma molécula de nada nas mochilas, nos bolsos ou nos pulmões. É que o
Overland to India é bem explícito na
enumeração dos países nos quais é demasiado perigoso entrar ou ser apanhado com
qualquer espécie de droga ilícita: Turquia, Irão, Índia. Havia um denominador
comum a esta política extremamente dura e repressiva para com os
prevaricadores: todos estes países são acusados pela ONU, e outros organismos
amantes da Humanidade, de abrigar abundante produção (sobretudo das papoilas de
onde se extrai o ópio, a partir do qual se fabrica depois a heroína) e facilitar o tráfico,
razão pela qual todos eles querem ficar bem na fotografia e afixar alguns
culpados na placa de cortiça da Justiça.
A fronteira entre a Turquia e o Irão é um exemplo
sinistro disto tudo: para além do ambiente de ditadura militar que se faz
sentir mal pomos o pé em solo persa, para além do método científico-criminal de
abordagem dos guardas alfandegários, o turista recém-chegado é ainda brindado,
enquanto espera a vez de ser revistado e carimbado, com a exposição, em
catalogadas vitrinas, de troféus da vigilância antidroga: um pneu sobresselente
seccionado e recheado com sacos de heroína; um depósito de gasolina em corte,
onde se pendura por um fio um embrulho plastificado envolvendo barras da
hashish; e, fruto do engenho humano de quem esconde e de quem encontra, outras
peças de veículos onde foi encontrada droga. Mas a cereja no topo consiste numa
sequência fotográfica, exposta com o rigor fúnebre do preto e branco, das
consequências das apreensões, que, monotonamente, consistem nos retratos de
tipos pendurados pelo pescoço numa corda. Isto, particularmente à hora de
jantar, tira a vontade de fumar a qualquer um.
Mas tudo acabou em bem e ninguém foi preso; depois
da revista alguns guardas, embora seja proibido, deixaram-se até fotografar com
alguns dos viajantes antes de seguirmos viagem. Amanheci com montanhas, algumas
com neve lá no cima, corvos, águias, instalações militares, desolação e uma paisagem
bonita, tornada às vezes monótona pela erosão. E camelos, muitos camelos, dando
finalmente o necessário tom exótico ao percurso.
Voltei a acordar com a camionete a parar para
pequeno-almoço, numa espécie de caravanserai
dos tempos modernos. O café tem umas instalações miseráveis e as moscas
pousam em tudo onde luza uma molécula lambível. Mas, apesar disso, lá está a
fotografia, a cores, de Mohammad Reza Pahlevi, o Xá da Pérsia, e da sua
fotogénica imperatriz, quase tão omnipresentes nesta desolação como os anúncios
da Coca-Cola.
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