No Hotel Coimbra, instalado numa
antiga casa colonial e respectivos acrescentos, temos acesso a tudo quanto se
queira para além de cama, mesa e roupa lavada. Há uma biblioteca e uma
videoteca na recepção, outra pequena exposição de livros na sala de jantar e,
no espaço do bar, aguarda a nossa curiosidade uma estante com uma sólida
colecção de dicionários e enciclopédias em língua portuguesa. Depois, descendo
as escadas e saindo para o inclemente calor exterior, encontra-se no andar
térreo do edifício, mas pertencendo também ao hotel, um modesto supermercado à
esquerda e uma livraria à direita. Que se pode pedir mais? Mas ainda há mais e
pelos corredores, nos quartos, há quadros e desenhos nas paredes, produção de
artistas locais, delicadamente escolhidos.
Já na secção de objectos animados, no
pátio onde pontificam os enormes geradores que dão luz a isto tudo, há, ao
fundo, um pequeno tanque com uma grelha de metal como cobertura. Lá dentro
estão três crocodilos, tão apertados no exíguo espaço – ainda por cima, são
forçados a partilhá-lo com algumas tartarugas – que a sua envergadura não passa
do metro e raspas quando, aqui na Guiné, atingem facilmente os quatro ou cinco
metros. Coitados, como não lhes foi dada a capacidade de enroscamento, como às
cobras, só lhes resta viverem num atrofio.
“Para que é que vocês os têm aqui?”,
pergunto ao empregado da recepção que mos foi mostrar, “é para comer, ou dar
sorte?”
“Não”, responde ele com simplicidade e
algum horror por eu propor que se pudessem comer, “aparecem por aí na rua a
vender, a gente foi comprando e foi pondo aí...”
E quando lamentei o aperto de sardinha
em lata em que estão os bichos, informou-me que nas novas instalações do Hotel
já está programado um espaço, como deve ser, para os sáurios, com piscina e tudo.
Boa espreguiçadela, pessoal!
Mas não é tudo quanto a animais: no
terraço mais frondoso do hotel, fornecido de sombra pelas esteiras estendidas
por cima das nossas cabeças existem duas gaiolas, do tamanho de um homem, e
numa delas estão dois pequenos papagaios, verdes como pistáquios verdes, a que
por aqui chamam periquitos. Da outra olha-nos um bicho solitário, tão velho que
está completamente depenado e se nota a pele como a uma galinha a quem já se
preparou o corpo para a panela. “Que pássaro é este?”, pergunto a Sacovaz, o
director do hotel, que se ofereceu para me vir explicar as aves quando
demonstrei curiosidade por elas.
“Também é um periquito, mas diferente;
não o podemos pôr com os outros senão mata...”
“Quem mata quem?”, quis saber, mirando
com dó o velho pássaro despelado e imaginando já o par de jovens papagaios a
esfarelar o solitário idoso.
“A cinzenta, mata os outros logo...”
Fiquei a matutar naquilo e a olhar com
redobrado respeito o bico, recurvo e poderoso, do periquito cinzento; os olhos
amarelos onde não morava ponta de piedade, mas apenas luzia uma desconfiança
predadora. Entretanto, Sacovaz produzindo pequenos ruídos assobiantes com os
lábios, introduzia um dedo por entre as grades e tinha-se posto a coçar a
cabeça do periquito cinzento, a única parte do corpo onde a pelagem se mantinha.
Feliz, o pássaro revirava a cabeça cento e oitenta graus, de modo a melhor
oferecer ao dedo do amigo o cocuruto do crânio e, embora os olhos não conseguissem
adoçar a sua expressão de perigo iminente, toda a sua linguagem corporal era de
balsâmica plenitude.
“Acha que lhe posso também fazer uma
festita ou ele só é assim manso consigo?”
“Acho que pode...”, respondeu num
laconismo não muito tranquilizante.
Fiz a minha esfregadela de ponta de
dedo e o bicho tolerou a carícia, mas com visível indiferença.
“Parece-me que ele nota a diferença”,
comentei para Sacovaz.
“Yá, acho que sim...”, admitiu ele,
“venho aqui muitas vezes fazer isto, ele já me conhece bem”.
Regressei ao quarto cheio de sede, pois estar
aqui ao ar livre mais de cinco minutos faz-nos suar como lagostas na panela.
Abri o frigorífico e a sensação de sombras a deslizar no interior assaltou-me,
mas já sem a surpresa de alucinação do primeiro dia. No meu quarto, como nos
outros, há algumas baratas e preferem morar dentro do frigorífico, único local
onde as encontro: penso que esta preferência é, para elas, uma opção prática de
associar hipótese de comida com frescura. No fundo, à dimensão humana, não será
muito diferente de um bar de piscina num resort.
© Fotografias de Pedro Serrano, Bissau (Guiné), Setembro 2015.
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