03 setembro 2015

NÃO VENHAS TARDE: 22. NA ARCA, COM NOÉ

O tempo tornou-se uma montanha russa, ora parece passar muito rapidamente e ainda agora era noite e já amanheceu ou, pelo contrário, os quilómetros não rendem. Não consigo dormir sentado, mas não tive outro remédio senão habituar-me, pois dois dias e duas noites fechado numa camionete é uma eternidade. Assim, o sono vem-me nos momentos mais inesperados e dou conta que dormi por me apanhar a cabecear contra o assento da frente. Há quem se tenha estendido na coxia, mas não me calha esse tipo de abandono.
A camionete só faz paragens se é preciso meter combustível e o motorista raramente cede aos pedidos de encostar por algum dos passageiros se encontrar pressionado por alguma necessidade fisiológica. Há quem tenha apanhado diarreias, há quem pense que vomitar o aliviará do grande enjoo das curvas incessantes da estrada. Quando isso acontece todos corremos lá fora a desentorpecer as pernas e a aspirar o ar fresco.
Fui perdendo a vontade de falar e depois a de escrever. Os pensamentos passam por mim como a paisagem, altos como as montanhas que perseguem as janelas com insistência, às vezes pairam lá no cimo, como as águias sempre a rodar no céu distante. Recordações de infância, após tantos anos enterradas no esquecimento, irrompem à tona, sem nenhuma espécie de associação que lhes possa ter assobiado. De repente parece que a minha vida ganhou longitude, que o que se passou vem ter comigo aqui no meio do nada. Ei, o que é aquela montanha imensa ali à direita com o cume nevado? Pelas exclamações circundantes de quem viaja com mapa, de quem saca da máquina fotográfica, percebo que é o monte Ararat onde, há uns milénios, terá encalhado a arca do Noé quando Deus puxou a tampa ao lavatório, as águas começaram a descer e o jardim zoológico estabilizou. É possível, pois temos passado
por abundantes oliveiras no percurso e assim a pomba teve onde ir bicar o seu raminho de “terra à vista”. Em termos mais prosaicos, significa também que estamos a chegar à fronteira do Irão. Ontem vimos um pôr-do-sol que o Rui catalogou de “a preto e branco” e, depois, as noites são lindas, claras, mantendo uma qualquer qualidade de primeira manhã, com as estrelas muito nítidas e enredadas na Via Láctea como lantejoulas ao fumeiro. Hoje, por outro lado, o nascer do sol foi em Kodachrome e dou por mim a cantarolar para dentro:
              When I think back
On all the crap I learned in high school
It's a wonder
I can think at all...[1]
As francesas continuam sentadas ao nosso lado, temos trocado alguma comida entre nós e parece-nos haver muita curiosidade da parte delas, manifestada pelo modo como se inclinam para a frente e torcem a cabeça de ladecos de cada vez que um de nós lhes dirige uma patacoada, o que não é muito frequente. Léa é do género loura generosa e Brigitte uma loura mignonne, de ossada vaporosa. O casalzinho de belgas, aqui à nossa frente, segue muito calado; não oferecem comida, não se viram para trás, parecem bastar-se a si próprios. Ele é arruivado, uns tufos de caracóis cor de cenoura escapam-se-lhe do boné à capitão de embarcação que mantém sempre enfiado na cabeça. Ela é uma loura baixinha, lustrosa como uma foca e com intensos olhos azuis. Não dão confiança a ninguém. 
São agora nove da noite e as luzes que se aproximam no meio da noite são as da fronteira. Depois de a atravessarmos ainda nos vão restar cerca de dezasseis horas de viagem até à capital da Pérsia/Irão.
Preparem-se berrou um dos malaios, a sorridente cabeça inclinada para o corredor da camioneta – quem tiver erva ou hash atire-a pela janela fora enquanto é tempo!


[1] “Kodachrome”, canção de Paul Simon no álbum There Goes Rhymin’Simon, 1973; Warner Brothers.

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