O tempo
tornou-se uma montanha russa, ora parece passar muito rapidamente e ainda agora
era noite e já amanheceu ou, pelo contrário, os quilómetros não rendem. Não
consigo dormir sentado, mas não tive outro remédio senão habituar-me, pois dois
dias e duas noites fechado numa camionete é uma eternidade. Assim, o sono
vem-me nos momentos mais inesperados e dou conta que dormi por me apanhar a
cabecear contra o assento da frente. Há quem se tenha estendido na coxia, mas
não me calha esse tipo de abandono.
A camionete
só faz paragens se é preciso meter combustível e o motorista raramente cede aos
pedidos de encostar por algum dos passageiros se encontrar pressionado por
alguma necessidade fisiológica. Há quem tenha apanhado diarreias, há quem pense
que vomitar o aliviará do grande enjoo das curvas incessantes da estrada.
Quando isso acontece todos corremos lá fora a desentorpecer as pernas e a
aspirar o ar fresco.
Fui perdendo
a vontade de falar e depois a de escrever. Os pensamentos passam por mim como a
paisagem, altos como as montanhas que perseguem as janelas com insistência, às
vezes pairam lá no cimo, como as águias sempre a rodar no céu distante.
Recordações de infância, após tantos anos enterradas no esquecimento, irrompem
à tona, sem nenhuma espécie de associação que lhes possa ter assobiado. De
repente parece que a minha vida ganhou longitude, que o que se passou vem ter
comigo aqui no meio do nada. Ei, o que é aquela montanha imensa ali à direita
com o cume nevado? Pelas exclamações circundantes de quem viaja com mapa, de
quem saca da máquina fotográfica, percebo que é o monte Ararat onde, há uns
milénios, terá encalhado a arca do Noé quando Deus puxou a tampa ao lavatório,
as águas começaram a descer e o jardim zoológico estabilizou. É possível, pois temos
passado
por abundantes oliveiras no percurso e assim a pomba teve onde ir bicar
o seu raminho de “terra à vista”. Em termos mais prosaicos, significa também
que estamos a chegar à fronteira do Irão. Ontem vimos um pôr-do-sol que o Rui
catalogou de “a preto e branco” e, depois, as noites são lindas, claras,
mantendo uma qualquer qualidade de primeira manhã, com as estrelas muito
nítidas e enredadas na Via Láctea como lantejoulas ao fumeiro. Hoje, por outro
lado, o nascer do sol foi em Kodachrome
e dou por mim a cantarolar para dentro:
When I think back
On all the crap I learned in high school
It's a wonder
I can think at all...[1]
As francesas
continuam sentadas ao nosso lado, temos trocado alguma comida entre nós e
parece-nos haver muita curiosidade da parte delas, manifestada pelo modo como
se inclinam para a frente e torcem a cabeça de ladecos de cada vez que um de
nós lhes dirige uma patacoada, o que não é muito frequente. Léa é do género
loura generosa e Brigitte uma loura mignonne, de
ossada vaporosa.
O casalzinho de belgas, aqui à nossa frente, segue muito calado; não oferecem
comida, não se viram para trás, parecem bastar-se a si próprios. Ele é
arruivado, uns tufos de caracóis cor de cenoura escapam-se-lhe do boné à
capitão de embarcação que mantém sempre enfiado na cabeça. Ela é uma loura
baixinha, lustrosa como uma foca e com intensos olhos azuis. Não dão confiança
a ninguém.
São agora
nove da noite e as luzes que se aproximam no meio da noite são as da fronteira.
Depois de a atravessarmos ainda nos vão restar cerca de dezasseis horas de
viagem até à capital da Pérsia/Irão.
–
Preparem-se – berrou um dos malaios, a
sorridente cabeça inclinada para o corredor da camioneta – quem tiver erva ou
hash atire-a pela janela fora enquanto é tempo!
[1] “Kodachrome”, canção de Paul Simon no álbum There Goes Rhymin’Simon, 1973; Warner
Brothers.
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