Generoso, quase em excesso. Pelo menos
foi isso que pensei, quando, sem me
conhecer de lado nenhum, se ofereceu para me emprestar dinheiro.
Eu explico: um amigo avisou-me de uma
colunas de som que estavam à venda, umas JBL4311, um par de objectos místicos,
profissionais, com uma qualidade de som ainda hoje imbatível. Fiquei arrebatado
com a hipótese de poderem vir a ser minhas, mas onde tinha 90 contos para pagar
aquilo? Isto passou-se em 1978 e nesses anos tal quantia correspondia a cerca
de 20 vezes o meu ordenado, qualquer coisa como uns 90.000 euros de hoje.
“O Fernando diz que empresta a grana
pra você”, telefonou-me, uns dias mais tarde, o Flávio, o amigo comum, a
comunicar.
“O quê?! Mas o gajo nem me conhece,
não tem garantia nenhuma que lhe venha a
pagar...”
“Você não conhece o Silva”, avisou
ele, “falei-lhe do seu gosto em ter aquilo e ofereceu-se logo.”
Foi assim que o conheci, por causa do
dinheiro que me emprestou para comprar as colunas por onde ainda hoje ouço
música, por onde a ouvi nestes mais de 35 anos. Conheci-o e com isso recebi a
pronto duas lições: uma sobre generosidade, esse bem tão frágil, e outra sobre
confiança no mundo. Com essas duas vinha agarrada uma terceira, essa em
prestações vindouras: amizade.
Quanto a ele, morreu num instante,
como um tordo alvejado por um tiro certeiro; morte invejável, a de morrer como
um passarinho. Meti-me no carro, fui por aí acima, foi no habitáculo solitário,
sem testemunhas, que chorei as primeiras lágrimas. Já no átrio da igreja,
chorei outras ao conseguir espreitar, por uma nesga da porta aberta, a filha,
que chegara a correr de Inglaterra, encostada ao topo do caixão, passando uma
mão carinhosa pelos cabelos do pai, a conversar com ele palavras inaudíveis.
O átrio por trás da igreja estava repleto,
toda a gente da terra passava por ali para o visitar, era um tipo querido de
todos, já o suspeitava. Estavam por ali todos os ex-empregados da oficina de
automóveis onde tinha sido mecânico e depois patrão: o Leão, o Chaparral, o
Neca, o Aguiar, outros colaboradores. Quando resolveu desfazer-se da oficina,
fez os empregados sócios, deixou-lhes aquilo quase de mão beijada... E médicos,
assim ao correr da pena, andavam por ali uma dezena. Que raio fazia com que
tivesses tantos amigo médicos, Fernando? Não usaste nenhum deles em benefício
próprio, nenhum te serviu profissionalmente; um deles era antes a tua companhia
fiel dos passeios diários à beira-mar.
O barzinho do Centro Paroquial estava
aberto – para servir quem ali andava a visitar o defunto, a entregar respeitos
à família – fomos lá meia-dúzia de nós comer um caldo-verde e picar uma carne
de porco à Alentejana. Teríamos ido contigo se o defunto fosse outro, Silva;
terias esfregado as mãos ao sentar-te à mesa, que a noite pôs-se friota, bonita
– um crescente de lua no céu nítido e a luz dos aviões a confundir-se com
estrelas – mas friota. O senhor do Centro Paroquial falou-nos de ti enquanto
nos servia, de como eras generoso às escondidas:
“Mas olhe que não queria que se
soubesse: era a primeira coisa que pedia. Ajudava toda a gente, ainda outro dia
andava por aí uma senhora muito doente, a viver sozinha, sem posses, uma
situação... Fomos ter com ele: Fernando é preciso dar uma ajuda... E ele sacava
do livro de cheques. Mas nunca queria que se soubesse. Vá perguntar ao
jardineiro da Igreja de São Miguel-O-Anjo
quem é que tem pago os arranjos do jardim...”
Voltei a chorar quando cheguei ao
hotel, ao fim da noite, e li em sossego a brochura que a agência funerária
preparou. Abre com uma frase, uma espécie de poema branco, inteligentemente
redigido, onde parece que ele se dirige em discurso directo a cada um de nós. E
a fotografia foi bem escolhida: reproduz o ar prazenteiro que lhe era
característico, que ostentava quando nos aproximávamos e fazia com que nos
sentíssemos sempre bem-vindos... E há um brilho líquido no olhar, como se
estivesse comovido com a comoção que nos provocou a notícia da sua morte.
Olha, Fernando, sabes que não posso
ficar para o funeral: tenho um avião para apanhar e 300 km para chegar até ele.
Morrias um dia mais tarde e eu não teria podido ir dizer-te adeus, ia ficar com
isso atravessado quando o soubesse lá longe. Não vou poder ver o teu fumo
branco subir direito no céu anil do norte da cidade. É que se pôs um lindo dia,
azul, sem vento, quase sem nuvens... Vou andando, querido amigo, ainda vou
tentar escrever umas palavras sobre tudo isto antes que arrefeça.
Nota:
Em memória de Fernando Silva, 15/3/1948-20/9/2015.
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