A rua Sá da Bandeira, na cidade do Porto, como um rio que para nascer
busca o recolhimento de uma gruta, brota do vão de um prédio suspenso em arcos
de betão e, com os caprichos de um curso de água, lança o piso de paralelo por
ali abaixo, descrevendo no seu trajecto, até aí rectilíneo, um meandro ao
passar entre os cais do Teatro e da Brasileira. No troço final, comprimida nas
margens, hesita se segue a direito pelo estrangulamento de Sampaio Bruno, mas
acaba, numa nova contorção e tentada pelo Douro que a atrai como a um afluente,
por encaminhar-se para S. Bento, a espreitar a parte ribeirinha do burgo.
Apesar do comércio e
outros ramos de labor da cidade só encerrarem as portas para almoço à uma da
tarde, há um momento, por volta do meio-dia, em que um apaziguamento de
armistício se abate sobre Sá da Bandeira, entorpecendo tudo quanto se move,
desde o trânsito, que se escoa preguiçoso, até ao ritmo com que os seres
evoluem ao longo do quadriculado dos passeios.
Era, precisamente,
essa hora especial e na varanda do último piso das Representações Portuenses,
fumando uma cigarrada debruçados sobre a balaustrada de ferro, desfrutávamos
quem passava na nesga da rua e da Praça D. João I que daqui se avista. E embora
o que de largueza daqui se vê não seja muito, esse pouco abrange os colhões de
um dos dois possantes cavalos de bronze que, de cada lado do lago, vigiam a
praça do alto dos seus pedestais e anseiam, de pata semilevantada, que alguma
das damas antigas acotoveladas na platibanda do Rivoli desça do seu friso de
pedra e consinta cavalgá-los.
Eu e o Aires, que
partilha comigo a linha de montagem (como pomposamente se refere
o Hernâni à tosca bancada de madeira onde fazemos placas de pastilha de
cerâmica italiana), apreciamos observar as gajas que, subindo a rua de olhos
baixos, ao roçar o bicho não resistem a erguer o queixo para coscuvilhar os
guizos bronzeados do animal. Como disse, é por volta do meio-dia, quando tudo
se acalma e elas cruzam a nossa nesga como em câmara lenta, que esse
espectáculo é mais encantador. Mas não há bela sem senão.
“Ó Romeu...”, ouvi
berrar de baixo.
Corremos para dentro
e, num repente, sentamo-nos à bancada, pois já se ouviam os passos do Hernâni
escada acima.
“Romeu”, troou numa
voz de encarregado na ausência do patrão, “preciso que me faças uma entrega
urgente no Amial”.
“Diga, Sr. Hernâni”,
respondi sem levantar os olhos da mesa.
“É fundamental
entregar, antes das duas da tarde, uns catálogos em casa do Sr. Sá Lemos. Ele
vai hoje à tarde à Trofa e quer levá-los. Quero que trates disso.”
“Certo, Sr.
Hernâni”, disse, levantando-me. “Vou buscá-los lá em baixo?”
“Espera, ainda não
acabei! Já que vais para aqueles lados, passavas depois na obra da Freitex, na
Ponte da Pedra, a insistir na factura da última remessa de ladrilhos – já estão
atrasados três meses. Pede os papéis à Anabela e as amostras ao Pereirinha.”
Mal o gajo saiu,
pisquei o olho ao Aires.
“Hoje não ponho cá
mais o cu...”
“Cabrão...”, rosnou
ele, invejoso.
Mas eu já estava no
andar de baixo, no escritório, à procura do Pereirinha, um santo que, embora
tenha idade para ser pai dele, é um pau para toda a colher do Hernâni.
“O Sr. Pereirinha
está no armazém”, informou-me a Anabela com o ar enjoado que usa comigo, “aqui
estão as facturas para a Freitex”, disse, estendendo-me um envelope, “e o
dinheiro para o eléctrico”, concluiu, apontando um par de moedas pousadas na
escrivaninha do Hernâni.
Desci ao
rés-do-chão, onde dei com o Pereirinha empoleirado num escadote, rodeado por
prateleiras atafulhadas de caixotes de madeira e caixas de papelão.
“Ó Pereirinha, tem
por aí uns catálogos para mim?”
“És tu que vais ao
Amial? Olha que não vais leve... São três catálogos de pastilha e dois de
marmorite.”
“Foda-se, carago!
Bem, sempre arejo. Meta-me isso num saco resistente...”
“Já meti”, informou,
indicando um saco de ráfia com asas.
Tinha levantado o
saco, dado um arquejo simbólico e dirigia-me à porta quando ouvimos um gritinho
vindo do andar de cima:
“R-o-o-m-e-u”,
agudizou a voz da Anabela, logo seguida de um troteado de saltos altos pelas
escadas abaixo.
“Romeu...”, soprou,
alterada, “telefonaram agora mesmo da residência do Sr. Sá Lemos: é preciso que
passes antes na Casa Tamegão, a levantar uma encomenda para a D. Teresa”.
“Tá bem, Belinha”,
assenti em voz meiga, “Tamegão eu fosse...”
A Anabela é
escriturária nas Representações há pouco mais de um ano. Não se pode afirmar
que seja uma flor de competência em dactilografia ou no despacho do expediente,
mas foi o próprio Sr. Sá Lemos a recomendar a admissão e é, como diria o Júlio,
“boa nas horas”, alegrando as nossas jornadas com os seus decotes em v e as
saias-rachadas. Não acha graça às minhas tiradas nem, diz ela, ao olhar
“nojento” com que alguns a miram. Esses alguns incluem, para além de
mim, o Aires, o Zé (o nosso motorista) e, até, o pobre Pereirinha. Dos outros
níveis de comando não se queixa.
“O recado está
dado...”, cortou com secura virando-nos as costas.
Ficámos, em
silêncio, a vê-la evoluir pelas escadas até desaparecer no patamar. Logo
depois, peguei no saco, subi a rua até à Casa Tamegão e, mais atestado que o
preto da Casa Africana, bati em direcção à Praça e apanhei um 7 para o
Amial.
[Excerto do romance No Verão Fico Sempre Mais Nova, de Pedro
Serrano. Mais informações sobre o assunto na homepage de semcompromisso.com]
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