25 junho 2020

ÀS VEZES, À NOITE: 5. A Norte, tudo de novo

Oslo Concert Hall. 
No aeroporto estava a esperá-lo um tipo dos seus quarenta e muitos que lhe fez lembrar James Stewart, o actor americano. Tinha a mesma poupinha de cabelo sobre a fronte, os mesmos olhos azuis (embora não tão cândidos), o mesmo ar de gentleman. Nas mãos, uma garrafa de vinho português como estandarte de boas-vindas. 
Sentiu-se impressionado, bem impressionado: onde é que em Portugal um gabiru com a importância deste iria receber um estagiário ao aeroporto, ficar à espera do avião que fazia a ligação entre Londres e Oslo (e chegara atrasado), queimar uma tarde de Sábado?!
Mas Anker não parecia incomodado e conduzira-o ao hotel no seu Volvo de faróis sempre acesos – apesar de ser um dia de Verão -, guiando-o como um chauffeur, esmagando cigarros no cinzeiro; explicando-lhe que teria o fim de semana por sua conta e que na segunda-feira regressaria ao aeroporto para viajar até Stavanger: daí apanharia um barco para Sand onde se desenrolaria a primeira metade do tirocínio. 
“Em Setembro voltaremos a ver-nos e, dessa vez, com maior frequência”, informara-o interpondo um francês fluente ao inglês impecável à medida que se apercebia quão esbracejante era o recém-chegado longe das consoantes da língua materna.
No hotel entrara com ele para ajudar nas formalidades, deixara-lhe uma capa com os documentos de viagem de que iria necessitar no futuro próximo, um cartão com os seus contactos; insistira em que deixasse cair o "doctor" e o tratasse somente por Herman e, já de saída, como quem relembra algo quase esquecido:
“Não sei se é apreciador de música, mas, em sendo, tem, amanhã, uma matiné interessante no Oslo Concert Hall: a integral dos Concertos Brandeburgueses. Se estiver interessado, eles explicam-lhe aqui como ir lá dar, nem sequer é longe.”
Agradeceu muito, assim de repente não teve vocabulário para confessar que a música que, presentemente, lhe dizia mais era, sobretudo, o jazz e a brasileira. Mas no dia seguinte a luz era tão bonita, havia tantas ilhas de verde na cidade que o coração se lhe tornou como que leve e deu consigo no Oslo Concert Hall, um edifício moderno onde ainda conseguiu arranjar bilhete, mas não localizar Anker no público que, ordeiramente, ia enchendo o auditório. À noite, apetecendo-lhe falar, telefonou às miúdas, que pouco se interessaram pelo local onde estava o pai e Rosarinho somente quis saber se havia pinguins e se vira algum. 
Sand ficava a pouco mais de trinta quilómetros de Stavanger, mas a viagem de barco demorou, abençoadamente, bem mais do que o equivalente por estrada. Então era aquilo o rasto que deixava um glaciar no seu caminho para o mar! Que dádiva majestosa e que minúsculos pareciam os seres humanos que logo se apressavam a tirar proveito da cicatriz.
Tinha quarto reservado no Suldall Hotell – o único da cidade – um edifício em forma de barracão que contrastava com as esguias habitações em madeira e cujos telhados, de águas muito inclinadas, lembravam desenhos de criança. Na recepção explicaram-lhe que a estadia incluía dormida, pequeno-almoço e jantar, mas que podia usar o buffet do pequeno-almoço para fazer as sanduíches do almoço! Achou o conselho intrigante, logo o esqueceu ao rodar a chave do quarto que iria ser o seu poiso durante quatro semanas - vista para o fiorde, muita madeira clara, e um pombo patrulhava o peitoril exterior da ampla janela de vidros duplos. 
No dia seguinte comprou um despertador no único armazém que encontrou na vila: desorientara-se levemente no percurso e chegara ao Centro de Saúde local às oito e cinco, para ser recebido, em português, com um simpático bom-dia e a advertência “Já pensávamos que não vinha...”. Sim, ali tudo parecia ser levado muito a sério, e o  estágio fora bem amadurecido em detalhes por Oslo: o director do Centro de Saúde, apesar do apelido, era português, um Andresen que se apaixonara por uma antiga hospedeira norueguesa da SAS (1) e por ali encalhara há uma dúzia de anos. O português dele era impecável, mas já se adivinhava o exílio no sotaque e no modo como articulava as palavras, encaixando-as no discurso como se fossem as fatias de um cubo Rubik.
Se alguma vez lhe dissessem... Habituou-se a comer carapau e arenque em cebolada às sete da manhã, a preparar as próprias sandes a partir de um queijo cor de laranja cujas fatias acamava num leito de alface ou pepino e que eram o seu sustento pelo meio-dia, quando os trabalhos se interrompiam e o pessoal se reunia para mastigar, beber café e conversar na biblioteca do Centro. Voltou ao armazém e comprou uma pequena caixa de plástico, para que os guardanapos rotos em que embrulhava as sandes e o ovo cozido não mais o envergonhassem à hora do almoço, equipamento a que juntou uma garrafa-termo e um caderno de capa dura. Resolvera fazer uma espécie de diário técnico, onde registaria o que acontecia em cada dia e os procedimentos que ia aprendendo e lhe podiam ser úteis no futuro. À tarde, ao chegar ao hotel, sentava-se a escrever no peitoril da janela, olhando o fiorde e espiando o pombo que, tornado familiar, cabeceava migalhas de pão escuro do lado de dentro da janela. Amiúde, sentia-se solitário, tinha demasiado tempo para si, e ligava às catraias, mas ultimamente a chamada deixara de ser atendida: Agosto ia a meio e elas deveriam estar com a mãe no apartamento que alugavam em Armação de Pêra e onde não havia telefone.
Centro de Saúde de Sand.
De Sand pouco levou além da garrafa-termo e de uma pedra apanhada na margem do rio, uma tarde em que fora vistoriar o local onde era captada a água que abastecia a vila. Era ali próximo que os salmões saltavam a corrente e, enquanto esperava avistar algum, o olhar fora-lhe puxado por um seixo que jazia, entre milhares semelhantes, no leito do rio. Não ocupava um quarto da palma da mão e era de um verde profundo, sarapintado por pontos negros, lembrando, na textura e no padrão, na macieza escorregadia e fria, a pele lisa de um peixe sem escamas.
Em Oslo, pelo contrário, comprou o suficiente para evaporar as coroas da bolsa de estudo e, no regresso, ter de pagar uma pesada multa por excesso de bagagem. Mas ia montar casa nova dali a um mês, num local onde os invernos eram frios, e deixara-se seduzir por aquele modo de dormir norueguês sem lençóis ou cobertores, apenas enrolado num saco repleto de penugem de ganso: o edredão era leve, não foi por aí que veio a enormidade da taxa no aeroporto, mas o espaço que ocupava na mala! Se alguém, ao chegar a Lisboa, lhe pedisse para a abrir, aquilo ia saltar como um boneco numa caixa de mola! E os discos, que nunca encontraria em Portugal, como pesavam quando juntos; os livros médicos em inglês; comprara até um faqueiro de seis peças, encantado pelo serrilhado discreto das facas, pelo material branco do cabo a fazer lembrar osso.
Com tudo exposto, o quarto em Oslo, nas instalações da Røde Kors Klinikken, ganhou um certo ar de lar, muito diferente do perfil espartano do quarto em Sand, e o retoque final viera a ser dado pelo cartaz, em cores quentes, comprado no museu Munch e pendurado na parede. Ao invés do que acontecera no Suldall Hotell, ali não pagava diária, pelo que o dinheiro da bolsa ficava todo para seu proveito se resistisse a ir jantar fora. Descobriu que, embora a vida fosse insuportavelmente cara, podia reduzir despesas se comprasse a comida num supermercado e a confeccionasse na cozinha comum do edifício, onde também as instalações sanitárias e a lavandaria eram partilhadas. Uma noite, ao fritar um suculento bife vermelho, que fora inesperadamente barato, cheirou-lhe a peixe e descobriu que cozinhava baleia! 
As velhas dependências da Clínica da Cruz Vermelha ocupavam vários edifícios de um enorme terreno arborizado, o que o fazia morar no centro da cidade parecendo usufruir dos luxos dum parque inglês. O quarto ficava sob o sótão, ao cimo das escadas do terceiro andar de um prédio do século XIX onde era praticamente o único habitante – seguramente era-o no terceiro andar: Setembro ia no começo e não havia ainda alunos a ocupar as dependências que pertenciam agora à Universidade. Sentia-se bem por ali e nem sequer excessivamente abandonado, pois montara-se uma rede – supunha ele que com a cumplicidade activa de Anker – que se materializava em convites para jantar em casa de colegas ou para ir visitar, em claros fins de manhã de Sábado, alguém ligado ao trabalho que morava nos arredores de Oslo e lhe servia uma mistura de pequeno-almoço e almoço pelas duas da tarde. Era estranho esse abrir de portas, o dar consigo noutro mundo, em casa de gente com quem se cruzara fortuitamente durante a semana e, praticamente, nem as feições retivera. 
Anker, com curta antecedência, aplicou-lhe o mesmo procedimento numa sexta-feira em que se preparava para ir ver tocar o saxofonista Dexter Gordon, temporariamente a residir na Noruega. Recebeu-o para jantar no seio da família: mulher, filhos, futuros genros e noras; um piano de meia-cauda na sala de estar – uma pauta de Mozart desdobrada na estante – e uma pequena imagem de madeira antiga que apontou com orgulho e confidenciou ter sido oferecida por um médico português do Projecto. 
Quando, indicando a pauta, lhe perguntou se era ele quem tocava, o anfitrião sorriu, confessou ser apenas um amador e preferiu nomear o S. Pedro, informando: 
“Está ali a velar pela casa, tem a chave e tudo...”.
Røde Kors Klinikken, Oslo.
Raul ficou-se, calado, a rodar o cálice de Madeira entre os dedos, e o sentimento de lhe estar a ser oferecido mais do que merecia a tolher-lhe o vocabulário. Ele só ali estava para fugir ao Porto.

***

Durante a última semana em Oslo, a sensação de irrealidade intensificara-se. Subitamente, o trabalho concreto, rotineiro, as visitas a hospitais e centros de saúde da capital, em que nada mais lhe era exigido do que ser um observador atento e passivo, foram sendo intercaladas com reuniões na sede da NORAD, sob pretexto de uma avaliação de como decorrera o estágio. Os tipos pareciam genuinamente interessados em saber o que pensava do que vira e, polidamente, queriam a opinião dele sobre se algo daquilo teria sentido ou se poderia aplicar em Portugal. Quanto ao sentido, Raul Barbosa achava que tinha todo o do mundo - nunca vira serviços a funcionar tão bem e airosamente, quanto ao resto era forçado a confessar que não conhecia a realidade de Penaformosa nem quem lá iria trabalhar e, atrás desta resposta, escondia a tremenda ignorância, só agora revelada a si próprio, sobre o panorama do que se passava em Portugal no campo da saúde e da doença - não conhecia nada para além das quatro paredes do Joaquim Urbano e, pior, até ali achara que isso lhe bastava para ser um clínico mediano.  
Mas durante os encontros, pacientemente, Anker, sempre presente enquanto os outros iam alternando nas cadeiras, deixando tombar a cinza, que esquecia ser uma entidade física sujeita à lei da gravidade, de sucessivos cigarros sobre papeis em português e gráficos legendados em inglês, ia expondo algumas das linhas que, pensavam eles, seriam as mais adequadas à missão do Centro de Saúde de Penaformosa, local que, para sua vergonha, o norueguês parecia conhecer bem melhor do que ele.
"Logo que possível, você devia tentar pôr à disposição das pessoas consultas de saúde infantil, de saúde materna e planeamento familiar e, claro, vacinas... E manter o Centro acessível 24 horas por dia - aquela gente não tem a quem recorrer, nenhum dos actuais médicos lá reside, em caso de necessidade urgente os cuidados médicos mais próximos ficam a cinquenta quilómetros."
Ele assentia, perguntava-se como, na prática, isso se faria, e a premência do assunto nem sequer lhe dizia grande coisa pois a sua vida sempre consistira em a ver os doentes que lhe chegavam, pedir análises e garatujar receitas, sobrevoar a enfermaria ao final da manhã. Anker que, por vezes, parecia adivinhar através do fumo profético dos cigarros, agora que estava defronte a outro fumador e estavam a sós na sala, experimentava abordagens.
"Calculo que, no seu hospital, lhe apareçam sarampos complicados, suponho que terá visto ventres agudos provocados por novelos de lombrigas... Mas que lhe adianta tratar isso se a causa não é resolvida a montante? Vão voltar a aparecer, entupidos, os mesmos ou outros, mais cedo ou mais tarde..." 
E falava do saneamento básico, da higiene pessoal, das grávidas e, como um disco riscado, lá voltava à importância de uma boa cobertura vacinal.
"Aliás", dizia esticando um indicador amarelecido por sobre um quadro cheio de colunas numéricas, "vocês têm um bom programa nacional, a crer pelas taxas de cobertura da população... Não creio é que seja uniforme em todo o território, pelo menos olhando para o número de doenças evitáveis pela vacinação em Vila Real e em Bragança... Que é que você acha?"
Herman Anker (1991).
Ele não achava nada ou melhor começava a desconfiar alguma coisa e as prédicas de Anker e Borchgrevink, os que mais se detinham nestas miudezas, davam como que coalescências às ideias dispersas que resultavam da sua prática automática no hospital. Apareciam montes de encefalites pós-sarampo, complicações de difterias mal medicadas, estragos provocados por febres da carraça e por bruceloses não diagnosticadas, e tudo aquilo vinha, geralmente, de Vila Real ou de Bragança - já se sabia - ou de um ou outro dos concelhos mais interiores do Minho.
Uma ocasião, após se ficar a olhá-lo como se procurasse inspiração ou um ponto de apoio, Anker perguntara-lhe:
"Alguma vez cuidou de um caso de tétano no seu hospital do Porto?"
"Vários...", respondera, orgulhoso como se isso fosse uma riqueza.
"E então?", Anker passando, ao de leve, a ponta de três dedos da mão esquerda pela ondulação de cabelo que lhe espreitava na testa, fitava-o arredondando os olhos numa interrogação.
"Então?! Então não é uma coisa bonita de se ver. Nunca vi nada tão parecido com uma tábua como um doente com tétano -pode pegar-se-lhe pelos pés, que o resto do corpo se mantém teso no ar! E o pior é que, apesar da total paralisia muscular, os doentes mantêm-se conscientes, presos dentro do corpo, percebe-se-lhe isso no olhar aflito... 
Durante esta descrição, Anker acendera um Gauloise e fixava-o com o espanto de quem nunca tivesse visto um tétano ao vivo ou fosse escandaloso vê-lo, e de tal modo isso pareceu evidente a Raul que, a coberto da certeza que o outro, como médico vivido e mais velho, já deveria ter, também, visto algum, lhe perguntou por isso.
"Em Oslo, nunca vi, mas vi suficientes durante a guerra da Coreia - estive lá como voluntário - é exactamente como descreveu e é coisa que não esquece... E, consigo, como acabaram os casos que recebeu?"
"Geralmente mal", respondeu o outro, "mesmo ligados ao ventilador durante a paralisia respiratória, às vezes semanas, a maior parte morria-nos... Só me lembro de um, talvez dois, terem escapado... Pareciam mortos-vivos quando deixaram finalmente o hospital!"
"Pois... E o mais absurdo é que tudo isso — a morte, o sofrimento, as camas ocupadas, o desperdício de vida activa, o dinheiro que a sociedade gasta -, tudo isso se pode evitar com uma picadela; sabe que a vacina é 100 % eficaz e, na prática, sem contraindicações ou efeitos adversos."
"Quando me chegam já não há vacina que lhes valha."
Anker ergueu ambos os antebraços dos papéis, olhou o interlocutor, entusiasmado.
"É isso, acabou de dizer tudo — as coisas têm de ser feitas antes, enquanto ainda vale totalmente a pena!"
Raul, agora a sentir-se mais à vontade no inglês, começava a tirar partido e conforto destas conversas, sobretudo quando estava a sós com Anker, pois se tinha vários tipos a disparar frases atrapalhava-se, engrolava-se, enunciava mal os tempos verbais e entupia de vergonha. De qualquer modo, safava-se muito melhor do que no começo, quando só conseguia comunicar por monossílabos. Com a pequena excepção de alguns momentos, em Sand, em que falara com o João Andresen em português, passara os últimos dois meses a ter de exprimir-se constantemente em inglês, a ler livros e papelada em inglês e isso produzira efeito, dava consigo a pensar em inglês, a preparar mentalmente diálogos em inglês, uma noite até sonhara em inglês!
O último encontro, na antevéspera do regresso a Portugal, fora marcado para a tarde e reuniu todo o núcleo-duro do Projecto: estava Anker, claro, mas também Randi Tasserud - a economista - Steinar, Daag e Christian Borchgrevink, o decano, que se pronunciava pouco mas parecia inspirar todos com o seu olhar claro de entendimento e aceitação. Como era costume, Raul sentiu-se embaraçado, não sabia o porquê mas tomava todo aquele investimento como se fora dirigido apenas a si e às suas insuficiências. O escudo de desconfiança, couraçado pelas insinuações portuguesas que, antes da partida, lhe tinham enxameado os ouvidos, em torno de qual seria o interesse oculto dos noruegueses em investir em Trás-os-Montes, o "eles devem ter alguma na manga", o "não há almoços grátis", tombara com estrondo - ao fim de dois meses poderia jurá-lo por um olhar tão claro como o de Borchgrevink. Eles não queriam nada, não havia nada que Portugal pudesses dar em troca, que podia Portugal dar-lhes em troca agora que já nem o ouro das colónias mandava cantar um cego? Galos de Barcelos? Rolhas de cortiça? Descontos nas esplanadas do Algarve? Não, eles não queriam nada em troca, nem sequer esperavam ardentemente que o projecto corresse bem, que fosse uma vitória, ficavam-se apenas pela possibilidade de tal poder suceder. Percebia agora melhor o espanto de Coutinho da Costa e a admiração que espreitava da sua prédica sobre o empenho profissional e a "classe" dos noruegueses, a ironia comparativa, partilhada à socapa com Raul, sobre um outro projecto de ajuda na área da saúde simultaneamente em curso em Portugal.
"É lá para o Alentejo e a iniciativa é dos Estados Unidos, graças a Deus que não tenho nada a ver com aquilo, nem ninguém me pergunta nada... O gestor, pela parte deles, o equivalente ao Anker é um coronel do exército americano... Mas, tanto quanto sei, limitam-se a construir os edifícios, a conferir as contas, e vão-se embora." 
Raul sabia o que o outro queria contrapor. O projecto norueguês era uma ideia com cabeça tronco e membros, uma iniciativa integrada: não só iam ser construídos centros de saúde e extensões destes onde eram mais necessários, como os dois serviços do hospital da capital do distrito responsáveis pela assistência às fatias mais vulneráveis da população (a pediatria e a obstetrícia) iriam ser reconstruídos, reapetrechados. Simultaneamente, ia ser edificada de raiz uma escola de enfermagem em Vila Real - quase não havia enfermeiros na zona - e enquanto isso não acontecia seriam concedidas bolsas para alunos de enfermagem que se comprometessem a estudar no Porto e, terminado o curso, irem trabalhar nos centros do Projecto. Também estava previsto algo para os médicos, e os nórdicos, com longa experiência no assunto, iam fomentar a criação dum Instituto de Clínica Geral que, esperavam, funcionasse como embrião de uma futura especialidade em Portugal, onde esta não existia como tal e a actividade de medicina geral era exercida por qualquer um que o quisesse mandar gravar na placa do consultório, embora exercesse como cirurgião ou neurologista credenciado da parte da manhã. Anker desenhara-lhe toda a ideia num papel, traçara quadrados e círculos que ia interligando com setas e formavam uma espécie de planta arquitetónica do que tinham concebido. Depois, cada um dos outros, contava o caminho percorrido pela Noruega nesse âmbito, exemplificavam, resumiam resultados, sucessos, dificuldades e coisas que tinham corrido mal. 
E, o que mais o afligia e lhe vergava os ombros, era pensar que contavam consigo para ajudar a dar conta daquele recado! Ele, que, de momento, só queria fugir do Porto e que o deixassem em paz, a apodrecer num canto, longe dos holofotes. 
Pensar no regresso e em toda a luta perdida que provavelmente o esperava, deprimia-o e, de súbito, defrontou a sua cara angustiada, espelhada nos vidros das janelas. Ali a noite caía cedo - pouco passava das cinco da tarde e o Verão finara-se somente há três dias! À porta do edifício da NORAD, após as despedidas e os "vemo-nos em Portugal", sentiu-se tremendamente só, veio-lhe o desejo de chorar. Lá se ia embora outra vez, começar tudo outra vez. No caminho para a Røde Kors Klinikken passou por um cinema, consultou o relógio: a próxima sessão era às seis, parecia de propósito, e o filme era o último do Kubrik: Shining. Meses atrás tinha lido num jornal sobre a rodagem e agora ali estava ele, já em estreia; sabia-se lá quando chegaria a Portugal, onde tudo chegava atrasado e requentado. Entrou e saiu esmagado duas horas depois. Não sabia que era um filme de terror - Kubrik não fazia filmes de terror - mas não se podia chamar outra coisa àquilo; um filme de horror com crianças e hotéis desertos! Não sentiu coragem para, no imediato, fazer ouvir os passos na madeira gasta das dezenas de degraus das escadas do prédio vazio da Cruz Vermelha. Parou num restaurante e pagou uma fortuna por uma batata recheada com
carne picada e uma meia-garrafa de Rioja. As paredes do restaurante eram forradas a alcatifa negra, os guardanapos, de pano, eram roxos e, suspensos sobre cada mesa, os candeeiros eram tercetos desnivelados de bolas de néon destilando uma cor fria. Concentrou-se na imensa batata que lhe chegou a fumegar, protegida por uma pele de papel de prata, abstraiu-se no vermelho escuro do Rioja. Apeteceu-lhe, por um momento, fugir para a Noruega e abrir uma loja que vendesse vinhos portugueses, a fortuna que, com aqueles preços nórdicos, poderia fazer a demonstrar como era excelente um Pasmados, um Caves da Montanha, ou testemunhar o sucesso das caixas de madeira com as garrafas de Porto produzidas em Alvarelhos por Lourenço, o ex-sogro; imaginou como o homem ficaria contente quando, num futuro esfumado mas próximo, o informasse das vendas astronómicas, do ícone em que se tinham transformado os caixotinhos com tampa de correr e o CHAVES – Vinho do Porto – Regoa tatuado a fogo na madeira... Quando chegasse, haveria de telefonar-lhe, encomendaria uma caixa para Anker, outra para Christian, os tipos pelavam-se por vinho português, sobretudo o do Douro que, nem sonhando que tal lugar existisse, acabavam de conhecer pelas voltas do destino. 

(continua)

[1] SAS - Scandinavian Airlines System, companhia aérea comum à Dinamarca, Noruega e Suécia.

© Fotografias, de cima para baixo: fotografia 2, pedro serrano, Noruega 1980; e 5, pedro serrano, 2020.

22 junho 2020

ÀS VEZES, À NOITE: 4. Aparece Clara

“Não fazia ideia! Julgava que já cá estavas há que tempos - desde sempre; que fazias parte da mobília.”
Clara rira, espetara-lhe uma mão espalmada testa acima, gostava de enfiar os dedos pelas entradas do cabelo dele como se fosse o supremo gesto da familiaridade, e continuou o que estava a dizer:
“Você veio em Outubro, eu tinha vindo em Agosto - lembro bem - pensando que, pelo menos, ia lucrar em termos de frescura, mas, afinal, aqui era tão quente como lá em baixo! Nem queria acreditar: calor e emigrantes; nem sabe o que foi o meu primeiro mês, julguei não aguentar o calor no contentor, tanto pedido de bière! Em Mértola, mesmo no pino do Verão, não costumava servir nem metade da gente no café Guadiana. Só em acabando Setembro é que percebi que não era sempre assim.…”
Porém, a ele, custava-lhe aderir ao facto e preferia imaginá-la como algo que esperava por si no desconhecido, não como um outro fugitivo.
Apesar de, no contrato, estar escarrapachado que teria direito a um andar nos novos prédios do Fundo de Fomento da Habitação, de lhe terem permitido ir, previamente, escolher o apartamento "que quisesse"; apesar de o 2.º direito, que preferiu, estar já horrendamente atafulhado de mobília em contraplacado laminado, o certo é que ao aparecer – uma semana antes da inauguração, a 4L carregada como um ovo – a casa não estava pronta a ser habitada.
“Falta ligar a água e a luz, Dr. Barbosa”, justificou-se, inquieto, o tipo que, pelo visto, iria ser o electricista do Centro de Saúde e que, por arranjo que lhe escapava, fora encarregado pelo Presidente da Câmara dos assuntos referentes às casas destinadas ao pessoal técnico que iria trabalhar no Centro.
“Mas o Ramiro não pode tratar disso? Não é você que vai ser o nosso electricista lá em cima?”
O outro rira um cacarejo nervosinho, como se aquele tipo corpulento, e o modo directo como perguntava, o assustassem e fosse mais avisado manejá-lo com pinças.
“Não é bem isso... Se dependesse de mim, era para hoje, juro. Mas falta ligar a luz, a água, em todo o prédio. O Sr. Presidente tem apertado com a EDP, mas eles...”
“Mas a parte da água não é com a Câmara?”
“É, mas está a ver; água sem luz...”
Sem água e sem luz, o futuro director do Centro de Saúde achou melhor abandonar a ideia de pendurar, no guarda-fatos de laminado negro e arestas agudas, as roupas entrouxadas.
“E, por aqui, onde é que um gajo pode assentar arraiais? Há algum hotel, estalagem ou assim?”
O outro voltara a casquinar aquele risinho tão irritante como um comentário, ensaboara as mãos uma na outra como se o assunto lhe começasse a agradar.
“Não há propriamente uma estalagem ou pensão na vila, mas o Maximino, o dono do Papagaio, aluga os quartos por cima do café... Posso ir lá com o Sr. Dr., apresentá-lo.”
“Não merece a pena; vou pensar melhor e logo vejo o que fazer.”
E fora como hóspede do Papagaio que primeiro conhecera Clara. Não de imediato, pois procurara Maximino a meio da tarde e o restaurante estava fechado, no café vegetavam três ou quatro inúteis sob as moscas que volteavam, sem lotação, em torno da fita adesiva pendurada do tecto. Maximino, embora animado pela perspectiva de negócio, despachara a mostra dos quartos para a mulher, como se não fosse seu respeito o que se passava no andar de cima.
Havia dois quartos, escolheu o menos deprimente que, por coincidência, era o que ficava mais próximo do quarto-de-banho. 
“E por quanto tempo pensa o Sr. Dr. ficar aqui connosco?”, perguntou a mulher, uma morena de trança negra, olhos rápidos e ar aciganado.
“Olhe, pergunta bem, mas o melhor é perguntar ao presidente da Câmara...”
E, por motivo misterioso, ela riu muito da resposta.
Nessa primeira noite em Penaformosa fora deitar-se cedo, sentia-se arrasado sem motivo. Dera uma volta a pé pela vila, mas descobrira que não havia mais do que duas ruas, atravessadas por outras duas. Todas passavam pela Câmara, pelo coreto, e o Centro de Saúde, junto com a Igreja Matriz os edifícios mais encorpados da vila, avistava-se de todo o sítio... E deu-se conta do silêncio, apercebeu-se de que, olhando na vertical, o céu era negro e deixava tremeluzir umas luzinhas longínquas que pareciam correr o risco de se apagar se soprasse vento. Ao contrário das ruas, o quarto era barulhento: as vigas de betão e ferro, que subiam do andar de baixo, e o chão de placas de cerâmica propagavam todo o ruído do café até ao piso de cima, o próprio arrastar de cadeiras se ouvia distintamente! Tentou ler um pouco na cama, mas a luz, de um laranja doentio, morria nas duas lâmpadas do lustre do tecto, a única fonte de iluminação do aposento. Apagou a luz, acendeu um cigarro, ficou a fumar no escuro; depois enrolou a ponta da colcha adamascada sobre o ombro e tentou puxar o sono. Aos rosnidos do café vieram misturar-se pensamentos sombrios sobre o estado geral a que chegara: sozinho, sem casa, num fim de mundo por escolha própria; toda a sua vida parecia escorregar para trás. Afinal, quem o forçara a tanto? Ninguém, ele mesmo escolhera demonstrar que conseguia aguentar o caminho mais pedregoso; começar de novo... Onde se viera meter! Agora estava ali, amarrado por dois anos! Dois anos, com toda a gente a ver como se desembrulhava, a torcer pelo seu fracasso! Apeteceu-lhe chorar, mas decidiu que não o iria fazer. Auscultou o corpo e sentiu uma vontade vaga de mijar. Sentou-se na cama para descobrir que o chão estava gelado e tomar consciência de que, para ir à retrete, precisava de vestir, ao menos, umas calças e uma camisa, enfiar uns sapatos – não fosse aparecer alguém. Desistiu e resolveu castigar o corpo: a bexiga bem podia aguentar-se, como ele próprio iria fazer. Peidou-se com cuidado, para não forçar o esfíncter da bexiga - sentia-se atulhado de comida, as doses que aqueles gajos serviam! Ainda por cima, o cartucho com as ameixas pretas, que costumava usar para estimulante da tripa, estava enfiado dentro de uma das malas, sabia lá qual e em que camada.
O pequeno-almoço estava incluído e, para lho servirem, tinham levantado uma das mesas da sala do restaurante, nas traseiras do café e já postas para almoço. A sala estava deserta e os estores descidos, pelo que ficou sentado na penumbra, ainda tomado pelo abatimento da noite. Sonhara que, apesar de já viver sozinho, entrava em casa e dava com pertences da ex-mulher espalhados pelas divisões, abria a porta do quarto e encontrava-a deitada na cama - olhava-o por cima dos óculos como se ele lhe tivesse vindo interromper a leitura.
Ouviu um rangido e levantou os olhos: uma porta de vaivém, daquelas a meia-altura como nos saloons dos filmes de cowboys, fora empurrada e uma empregada avançava com uma bandeja.
“Então, vai-se deixando estar aqui às escuras? Ninguém lhe acendeu, ao menos, uma lâmpada?”, saudou ela pousando a bandeja e dirigindo-se a uma das janelas para subir o estore. Vestia um avental de oleado, com peitilho, mas o que mais lhe chamara a atenção fora a energia que parecia transbordar dela e como que tornava maior a sua figura pequena. 
Ele sorriu, justificou-se:
“Bem, vim andando para aqui. Ontem disseram-me que era no restaurante que serviam o pequeno-almoço, podia ter ido para o café...”
Ela sossegou-o.
“Está aqui muito bem, só não precisa ficar às escuras...”
Fez-se silêncio, enquanto a empregada, num tilintar prometedor, ia dispondo sobre a mesa uma cafeteira, uma chávena; pratos com pão, manteiga, fiambre, rodelas de salpicão.
“Aqui”, esclareceu pousando um dedo na tampa do bule de alumínio, "tem leite aquecido; quer que traga café?”
“Agradecia. Pode ser mesmo em chávena, que depois misturo...” E sentiu necessidade de acrescentar: “Sou o Dr. Raul Barbosa - venho trabalhar ali para o novo Centro de Saúde...”
“Nesta terra nunca sucede nada, e já sei tudo sobre si: que vem do Porto, que vai ficar dois anos, que vai morar nos prédios novos e que a sua casa ainda não está pronta, razão porque veio para aqui. Como vê...”
Ele ficou a olhá-la, pensativamente, enquanto metia a faca na carcaça de pão fresco observava-lhe o cabelo, farto e encrespado por caracóis pequeninos, arrepanhado da testa por uma bandolete de plástico verde. Perguntou:
“Você também não é daqui, pois não?”
Ela riu, apoiou as palmas das mãos no bolso à canguru do avental.
“Porquê, nota-se assim tanto?”
 “Não sei, pareceu-me: a pronúncia é diferente.” Mas não era só isso... “Não sei exactamente...”
“Não, não sou. Baixo-Alentejo – Mértola. Sabe onde é?”
“Por acaso até sei. Para lá de Beja, pode passar-se por lá a caminho do Algarve...”
 “Só passa mesmo quem quer. Vou buscar o seu café”, disse desaparecendo pela porta de vaivém, que empurrou com um meneio lateral da anca como se cortasse uma onda na rebentação.   
Nessa primeira vez, e igualmente o poderia dizer das quase cinco semanas em que morara no Papagaio, para além da simpatia desenvolta não achara nada especial em Clara, nem sequer a encaixilhara de imediato numa figura de mulher, e se o questionassem sobre ela pouco mais fixara do que essa sensação de que a vivacidade que transmitia a fazia parecer mais alta. Todo o resto fora surgindo a pouco e pouco, como uma revelação feita à sua total custa, pois ela, a diligente empregada do Papagaio, ali estava do mesmo modo, sempre as mesmas calças de ganga e as mesmas botinas de carneira, o avental com peitilho. 
Uma manhã, bem cedo, mais de um ano decorrido sobre a sua chegada a Penaformosa, estava à janela de casa, debruçado a fumar um cigarro para cumprir a intenção de não intoxicar o quarto de dormir, quando viu despontar, ao longe, uma figura que subia a estrada em direcção à vila. O contorno feminino prendeu-lhe a atenção, encheu-o de expectativa, e ficou a aguardar a aproximação com um frémito de ansiedade, o cigarro acabara mas acendera outro e mantinha o torso encravado na janela, a patrulhar o caminho. Era uma mulher, nova, de calças de ganga e camisola amarelo-torrado e, apesar de se mover em passo rápido, o balanceado destacava sobre o asfalto, o cabelo, farto e encaracolado, rebrilhava à luz recente do sol. Quando percebeu quem era, um espasmo seco aprisionou-lhe a garganta, teve de engolir e pigarrear para responder ao bom-dia cantado que ela, ao vê-lo, atirou ao passar frente à janela; ficou-se, já na pele do voyeur, a vê-la afastar-se, a escrutinar a metade que sobrava e que sempre conhecera espartilhada por um avental de oleado sem graça; pronto a um recuo para dentro do quarto se ela olhasse para trás e lhe surpreendesse a cobiça. 
Nessa mesma manhã, ao bater a porta da 4L em frente ao Papagaio, sentira como que uma espécie de timidez ansiosa ao atravessar a rua, ao pisar o passeio e entrar no café, e quando ela surgira, de bandolete e avental, já não se deixara enganar pelo disfarce, pois fora-lhe concedido o dom da revelação. 
“Que idade tens, Clara?”, perguntara um desses dias, prudente, entre o café e o pedido da conta.
“Vinte e oito, feitos... Quem quer saber?”
“Oh, nada, lembrei-me. Olho para ti e não sabia...”
Ela apanhava as moedas da mesa, agradecia, desejara boa-noite.
“Que idade me dava você?”
“Ah, não sei, por isso perguntei. Sei lá, qualquer coisa entre os 25 e os 32...”
“É lá, isso é um barranco!”
“Estás a ver? Foi por isso: não sou bom a avaliar idades.”
Ela desferiu um olhar rápido, que o incluía a ele e à mesa, e afastou-se, deixando-o a voltear entre os dedos o cálice de brandy e a sensação de que nenhum dos dois acreditava no que dizia.
Mais tarde, noutra ocasião, quando a lembrança dela lhe piscava ao espírito sem ser chamada, perguntara-lhe se tinha irmãos.
“Sim, tenho uma irmã, mais velha. Porque pergunta?”
Ele parecia ter a resposta preparada.
“É que, em Vila Real, vi, numa loja, um rapaz que me fez lembrar de ti: tinha traços comuns, um ar de família, um cabelo assim encaracolado como o teu...”
“Coitado dele”, respondera ela, e logo juntou: “por isso não o vi por aqui à hora do almoço - estava prá capital do reino...”
Sentiu-se distinguido por ela se ter dado conta da ausência.

(continua)

© Fotografias, de cima para baixo: Fotos 1 e 3: Pedro Serrano, Penaformosa 2016.