28 fevereiro 2012

26 fevereiro 2012

MAGDA DE ÁGUEDA

Sob uma bátega
D'água
Foi a Águeda
Ver a Magda
Olha a mágoa
Fôra a Mortágua!


Em Mortágua
Um gajo gago,
Com pigarro,
Cravou-lhe
Um cigarro.
Perguntou:
"Viste a Magda?"
O outro gargarejou:
"F-f-foi pra Águeda..."
© Fotografia de Pedro Serrano, Março 2012.

23 fevereiro 2012

A COMBINAÇÃO COMBINADA



Fascínio tenho eu por falsas loiras (ai a negra lingerie)
As sardas, sobrancelha feita a lápis e perfume da Coty
                     “Miss Suéter” (João Bosco/Aldir Blanc)


Uma das entradas do El Corte Inglés de Lisboa abre directamente para a secção de lingerie e é, por razões logísticas, a entrada que mais utilizo.
Mal se franqueia a porta automática entram-nos pelos olhos dentro as formas de milhares de soutiens, cuecas, combinações e outra roupa interior feminina, ordeiramente arrumada em filas, penduradas das suas cruzetas e cruzetinhas numa variegada profusão de cores onde, mesmo assim, reina o preto e o branco. A intervalos regulares, fotografias maiores do que nós exibem jovens mulheres que demonstram aos olhos boquiabertos dos passantes o efeito arrasador que pode advir de usar roupa daquela natureza.
99,99 % das vezes que por ali passo faço-o por razões de comodidade e, confesso, a essa comodidade vem, como um bónus, agarrada uma emoção de bem-aventurança que me acompanha até ser engolido pela escada rolante que leva à secção de informática do piso inferior.
Mas acontece que ontem enfrentei essa secção com o fito de tentar substituir uma combinação preta, evaporada como fumo em local não traçável pela memória dos actos falhados. Nos escaparates da Calvin Klein encontrei facilmente o modelo perdido e os meus dedos desataram a fazer deslizar as cruzetas em busca do tamanho pretendido, que parecia não constar por ali. No momento, e enquanto por ali estive, era o único homem num espaço onde apenas mulheres rondavam, pensativas ou febris, as delicadas peças expostas.
“Posso ajudá-lo...?”, ouvi de uma voz aproximando-se.
“Pode...”, respondi, rodando um pouco sobre mim para encarar a empregada, “não tem iguais a esta em tamanho S? É que só vejo por aqui o M e o L...”
Ela achava que não, que não tinha, mas foi confirmar no armazém. Quando voltou trazia no braço uma combinação que desdobrou perante os meus olhos, dizendo:
“Não, do modelo que o senhor pretende já não temos o S; mas que acha desta? É um S, e há em preto e em beije...”
A combinação em causa era um bicho preto, de toque também macio como pele de pêssego, mas com a zona do peito demasiado vincada, conferindo-lhe um tanto o ar dois-em-um de soutien-saiote.
“Não gosto muito...”, comentei, “preferia uma coisa mais parecida com o modelo de que andava à procura...”
Ela remexeu uns cabides, estendeu-me outro exemplar, uma peça com uma linda renda negra a debruar um decote discreto e o mesmo toque sedoso de arminho geneticamente modificado que caracterizava a combinação perdida:
“E esta? É um pouco mais cara mas muito bonita...”
“Hmm..., respondi, deixando correr a renda entre o polegar e o indicador. “Sim, levo esta...”
“É para presente?”, perguntou ela antes de se afastar para ir procurar uma caixa condigna.
Passado pouco tempo regressou com a caixa e, antes de me pedir para a acompanhar até ao balcão onde iria acomodar a prenda no seu leito de celofane e cartolina, perguntou de chofre:
“Não deseja também uma cuequinha a combinar...?”
“Não, muito obrigado, por agora é tudo...”
Fiquei, ao balcão, a vê-la embrulhar a combinação com todo o desvelo, como se preparasse um presente para si própria, detendo-se, a ponta da língua concentrada entre os lábios, a revirar contra uma haste de tesoura as pontas do laço que rematava o embrulho.
Paguei e no momento em que me devolveu o cartão de crédito e o talão para uma eventual troca, ela dardejou sobre mim um intenso e instantâneo olhar, muito possivelmente a tentar decidir em que categoria de caçador de lingerie me espetaria.

© Fotografia de Pedro Serrano, Panjim (Índia), 2012.



22 fevereiro 2012

ELOGIO DO CHÁ VERDE


1. Et in Arcadia ego
Eis o jovem, o intrépido viajante chegando ao fim da primeira etapa da sua viagem pelo Oriente. Ei-lo, na bicha de chegada ao aeroporto de Atenas, mochila às costas, calças de ganga, botas altas de cabedal preto e, pendurando-se de uma das mãos, um avantajado pacote quadrangular, ostentando no exterior publicidade a uma batedeira eléctrica...
As botas pelo joelho tem uma explicação lógica, na sua mente mais profunda o intrépido viajante sabe que vai ao encontro de terras onde abundam seres rastejantes, muitos deles venenosos e, bem vistas as coisas, sempre será melhor enfrentar uma cobra-capelo de botas do que descalço; embora, feito o balanço final, o maior perigo com que elas tiveram de arrostar foram dolorosas bolhas nos pés. Mas uma batedeira eléctrica!?
Nessa noite de Setembro de 1976, o voo da British Empire Airways entre Londres e Atenas foi voo atribulado, percorrido numa estratosfera carregada onde raios cintilavam no negrume da noite, vários passageiros vomitaram os seus paper-bags e a maioria seguiu cor de cera e muda. Menos eu e o meu companheiro do lado de lá da coxia, um tipo que estudava em Londres e com quem estabeleci animada conversa. Ganha a confiança, Dimitrios perguntou se, por acaso, eu me importaria de, no passar da alfândega, lhe transportar um pacote... Era uma batedeira eléctrica, daquelas com base e vaso misturador, um velho sonho da mãe e produto quase impossível de encontrar na Grécia pós Socrática e pré-Troika. Acontecia que o controlo da polícia da alfândega ateniense, tal como a portuguesa da época, era terrivelmente apertado para gregos e troianos, mas nada para com os turistas...
Deste modo, eu e o Rui não entrámos no país como uns outros quaisquer, tínhamos à nossa espera, acenando freneticamente do lado de lá da paliçada, uma família completa de pai, mãe e vários filhos que, mal tomaram conhecimento do meu acto heroico nos levaram em triunfo para sua casa, uns sete ou oito marmanjos amicalmente amontoados num automóvel.
Amanhecia sobre Atenas, uma aurora dourada tingia-se de vermelho em cada fiapo de nuvem que aflorava, os cedros e os ciprestes ainda recortados no negro em que se tinham envolvido para passar a noite. À chegada, em casa de Dimitrios, enquanto era preparado o pequeno almoço e se arranjavam as nossas camas, foram-nos servidos rosados cubos de melancia gelada. Nesse porto de abrigo nos mantivemos dois dias antes de enfrentar a verdadeira, a árida estrada.
Nunca esqueci esses momentos raros, nem outros semelhantes em que, em país distante, um desconhecido nos estende um gesto generoso... Que balsâmicos esses mimos, esses gomos frescos de melancia que nos tornam de estranhos em pertença, nos fazem sentir em casa no meio do nada.
2. Entretanto em Lisboa
Carolina à porta do Assuka.
Em Lisboa frequento tão amiudadas vezes o Assuka que por lá me chamam “Sr. Pedro”, alguns dos empregados reconhecem até a minha voz quando telefono a marcar mesa. O Assuka é um restaurante japonês na rua de S. Sebastião da Pedreira, uma ruela estreita que nasce ao largo da igreja do mesmo nome e se enfronha por ali abaixo, o mais paralela que consegue à avenida António Augusto de Aguiar. Come-se bem no Assuka e janto lá muitas vezes, sendo a minha companhia mais frequente e mais deliciada a minha sobrinha Carolina que, para além de ser certeira a escolher as mais requintadas iguarias, mora ali ao lado e nunca se faz rogada para desembestar comigo rua abaixo.
Mas também paro por lá sozinho e assim aconteceu uma noite gelada de princípios de Dezembro de 2011, não muito depois de ter chegado de ir visitar, pela primeira vez, o Zé João a Leipzig. Nessa noite o restaurante estava pacato, a clientela escassa e, acabara de aviar uma sopa miso e começava a pinçar umas vieiras grelhadas, quando chegaram três pessoas à mesa ao lado da minha. Estando sozinho, dei comigo a por em prática aquela técnica que consiste em observar atentamente o que sucede à nossa volta sem deixar de olhar em frente, sem quase tirar os olhos do frasco do molho de soja que arrefece no nosso solitário tampo de mesa.
As recém sentadas eram três raparigas estrangeiras, duas alemãs e uma italiana, e desenvolviam um comovente esforço para falar entre elas apenas em português.
“Erasmus...”, diagnostiquei de imediato.
As moças estiveram séculos a consultar o menu e fui percebendo que mais do que dificuldade em entender a ementa, elas tentavam conjugar pratos que fossem do agrado de todas e baratos...
“Tesas...”, sarrabisquei mentalmente.
Entretanto chegou uma quarta conviva, desta vez uma brasileira pequenina, óculos de míope e chapéu de coco na cabeça, um pormenor que conferia, mais do que o piercing no nariz, um toque singular ao seu perfil banal. De imediato, a quarta conviva mergulhou no menu e estabeleceu, sempre num português que de ora em ora era clarificado com um termo inglês, complicadas negociações gastronómicas com as outras três.
“O seu descafeinado...”, anunciou o empregado pousando uma chávena à minha frente, “mais alguma coisa?”.
Desenhei no ar o arabesco que uso para pedir a conta.
Ao meu lado esquerdo, as quatro amigas tinham iniciado a refeição e estavam já mais animadas e menos anémicas do que à chegada. Interpelavam a brasileira como se ela fosse portuguesa, fosse em termos de esclarecimentos linguísticos:
“un grrande ... building?”, tateava uma
“Edifício...”, esclarecia a do chapéu de coco.
fosse em termos de locais que ainda não conheciam, mas estavam a considerar visitar:
“Coimbrrà?”
A brasileira torceu o piercing com ar de enfado, informou que não havia nada para ver por lá, nada para fazer. Já o mesmo não comentou sobre Braga, cidade que reputou como muito interessante e animada, e onde conhecia alguém a quem podia recomendar as outras.
A minha conta chegou. Levantei-me, fui pagá-la ao balcão. Depois perguntei à empregada, uma velha conhecida minha:
“Posso saber em quanto vai a despesa daquelas quatro meninas ali?”
Ela consultou o computador: o total, com os pratos principais e as bebidas já todas encomendadas, ia em 42 euros e uns pós de cêntimo.
“Vou deixar aqui 45 euros para pagar a despesa delas, tá bem?”
A senhora olhou para mim com discrição contida, mas percebi no seu fácies uma certa curiosidade, mais do que espanto pelo meu gesto. E não fosse também a possibilidade de as quatro raparigas, ao saberem da oferta, juntar ao  espanto algum medo de que as esperasse lá fora, na esquina seguinte, quiçá com a gabardina, que não usava, de abas abertas, acrescentei:
“Por favor diga-lhes que foi um tipo que tem um filho a fazer Erasmus na Alemanha, e que sabe bem o que é estar longe de casa e alguém ser simpático connosco...”
3. Elogio do chá verde
Passada uma semana, é possível que duas, voltei ao Assuka. Acabara de pegar na ementa quando a empregada com quem tive o anterior diálogo se aproximou:
“Sr. Pedro, hoje já vai ter que beber ao jantar! As meninas do outro dia deixaram, já pago, um chá verde para si.”
“Verde...?”, quis perceber a especificidade do presente.
“Verde...”, confirmou ela.
Bebi-o devagar, olhando-lhe a cor, apreciando o paladar, fazendo com que durasse o jantar inteiro. Era bom, aquele chá. Pelo menos tomei-o como tal.

© Fotografias de Pedro Serrano. De cima para baixo: (1) Praia da Areia Branca, Dezembro 2011; (2) Lisboa, Novembro 2010; (3) Leipzig (Alemanha), Novembro 2011; (4) Lisboa, Assuka, Janeiro 2012.

18 fevereiro 2012

NA ETERNIDADE, DA PARTE DE TARDE

Na eternidade, pela tardinha,
Sopra leve a brisa, 
Traje de passeio, mangas de camisa
(à memória de Z.L. Varanda)



© Imagens: Pedro Serrano, Goa (Índia), Janeiro 2012. Filmado com câmara Leica V-Lux 20. Música: João Sebastião Bach, concerto para piano e orquestra n.º 5, em Fá menor, Largo. Glenn Gould (piano) com a Columbia Symphony Orchestra, maestro Vladimir Golschmann.

16 fevereiro 2012

CHINESE FISHING NETS (Redes de Pesca Chinesas)

Diz-se que as redes de pesca chinesas foram trazidas para a região de Kerala por gente do imperador mongol Kublai Khan, que reinou entre 1266 e 1299. O que quer dizer que quando Vasco da Gama aqui chegou, elas já por cá andavam há uns trezentos anos... A elegante e volátil estrutura, feita à base de paus e pedras, é mais complexa do que pode parecer à primeira vista e cada uma destas engrenagens é, no mínimo, operada por quatro homens que procedem ao seu manuseio usando a força física e o auxílio de pesos. A rede é mergulhada na água e, poucos minutos depois, é erguida para se apanharem os peixes que porventura ficaram aprisionados nessa imersão. A quantidade pescada é diminuta e o peixe pode ser comprado directamente aos pescadores, sempre sob o olhar atentíssimo das gralhas.   
© Imagem: Pedro Serrano, Fort Cochin (Kerala, Índia) Janeiro 2012, usando câmara Leica V-Lux 20. Música: "Raga Desi Todi", uma raga composta para a manhã, interpretada por Pandit Hari Prasad Charausia (flauta).

14 fevereiro 2012

VOU-TE CONTAR: 46. De cócoras, ao sul de Atenas


A 14 de Fevereiro de 1968, os Beatles partiram para a Índia, em parte arrastados por George Harrison que, já há algum tempo, se interessava quer pela filosofia e religião hindu quer, mais especificamente, pela complexa e sofisticada música clássica indiana. Aliás, já em dois discos que antecederam essa viagem (Revolver, de 1966, e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, 1967) se deixam ouvir os sons de tablas e cítaras.
Contas feitas, os Beatles permaneceram no país apenas dois meses, mas as canções que compuseram por lá (quase todo o duplo White Album, 1968) e a onda de influência que essa experiência teve  ainda hoje vibram pelo universo...
Eu que o diga, que acabei por ir lá parar na peugada disto tudo. Em Fevereiro de 1968 tinha catorze anos e não podia fazer mais do que babar-me de deslumbramento com os caminhos que os meus músicos preferidos exploravam, com os ecos, amplificados e distorcidos pelo mito, que nos chegavam à pasmacenta cidade do Porto. Mas oito anos volvidos, em 1976, já conseguia deixar crescer um bigode, já decidia por mim, mesmo que isso pudesse significar uma ruptura familiar.
Desde que me lembro, e por determinantes que não consigo precisar, o Oriente exerceu um tremendo fascínio sobre mim, a Índia em particular e, na infância, a minha imaginação reagia com fervor a cenários com encantadores de serpentes, cordas mágicas, faquires que acomodavam a sesta em camas de pregos, cadáveres boiando Ganges abaixo. Depois, vieram os anos 60 e explodiu um novo ressurgimento da Índia de que os Beatles, mas não só, foram uns dos principais culpados. É cíclica esta atracção do frenético Ocidente pelo imperturbável Oriente. No final do século XIX, início do século XX, houve febre semelhante e a pintura impressionista, por exemplo, é moldada na influência da pintura japonesa, assim como são impressionadas pelo oriente a literatura, a poesia europeia e, apenas citando exemplos caseiros, podemos encontrar vestígios do velho fascínio em Pessoa, em Mário de Sá Carneiro... Eça de Q., esse, fez e desfez malas na poeira do Levante...
Assim, quando naquele escritório, me zanguei com o meu pai, não foi só por me sentir traído na promessa que ele fizera de me financiar uma viagem de fim de curso “onde quiseres”. Sentia-me também atrasado, sufocado, preso num cantinho onde os dias se repetiam quando tudo estava a acontecer lá fora! Porra, será que era assim tão difícil entender? E agora, que me preparava mentalmente para partir com a consciência de ir já agarrado à cauda do cometa, ainda tinha de me debater com detalhes destes?! Dinheiro?!
Da esquerda para a direita: Marie Jo, eu, e Rui.
Para além dos sete contos (35 euros) do meu pai, o meu tio Mário oferecera-me, pelos meu recente sucesso académico, uma bela nota de 100 dólares, mas nada disso chegava. Para, digamos, três ou quatro meses de viagem, nada menos do que uns 50 contos (uns 250 euros). Bati à porta da família, mas como toda a gente estava a par do conflito e das minhas ideias loucas, levei delicadamente com os pés, as recusas irritantemente temperadas com um futurista “um dia ainda me hás-de agradecer”.
Acabei por conseguir o financiamento junto de alguns amigos que admiravam o projecto e o primeiro dinheiro que ganhei como médico foi para pagar essas prestações.
Em Setembro, um emocionado e restrito grupo de amigos e namoradas foi despedir-se dos dois viajantes ao aeroporto de Lisboa. Como tínhamos pressa, decidíramos fazer o trajecto entre Portugal e Atenas de avião, assim não perderíamos tempo a atravessar a corriqueira Europa. Daí para a frente, sim, o caminho seria feito overland, a pé, usando os meios de transporte indígenas que surgissem: comboio, camionetas, boleia; camelo, se assim estivesse escrito! E lá fomos nós, crivados de vacinas e advertências, de mochila às costas, sem um mapa, uma máquina fotográfica, um plano concreto de viagem – destinação Índia, o resto logo se veria. O Rui, o meu determinado companheiro de viagem, ia à procura do Deus que não encontrava por cá, quanto a mim, as minhas finalidades eram mais confusas e Deus não me interessava por aí além... Acho que, em todo este empreendimento, fui apenas um turista exótico.
De Istambul, num café com vista para Santa Sofia, remexendo um chá demasiado açucarado, escrevi ao meu pai um postal a informar que já passara além da Grécia. Fiz o mesmo de outros locais cuja simples menção arrepiava quem ficara: do Irão, que dava então pelo bonito nome de Pérsia; de Kandahar, no Afeganistão, onde o Bin Laden ainda não se atrevera por não ter idade para isso; da instável e perigosa Lahore, no Paquistão.
A Índia, vista de perto, não nos cativou como estávamos à espera, de modo que, ao fim de uma semana a ver os abutres rodarem em círculo no céu de Nova Deli sobre a nossa camarata ao ar livre no terraço da Skyway Guest House, apanhámos um comboio a carvão para norte, uma viagem rondando os mil km por entre planícies infinitas, charcos de água onde boiavam búfalos e mergulhavam pássaros; vistas de mulheres, de vestes coloridas, serpenteando por estreitas veredas traçadas em campos de cereais sem fim à vista. Cobertos de fuligem, sentados sobre os sacos de serapilheira que atulhavam um camião de caixa aberta, subimos o vale de Kathmandou por entre rododendros em flor, a flor nacional do Nepal como percebi pela efígie nos maços de tabaco. Sim, a cidade dos mil templos, considerada muito perigosa, era outra coisa e estar ali era como estar com os pés assentes na terra e a cabeça já em pleno céu, um céu onde os cumes nevados eram mais altos do que as nuvens.  
"Pareces um velho pastor de ovelhas grego",
comentou a Marie Jo ao ver a foto.
Porém, o mais perigoso em todo o Oriente, foi, para nós, sempre o invisível, aquilo que nunca vimos, desde os percevejos que nos chupavam o sangue mal apagávamos a luz, às bactérias que, exuberantes de toxinas, nos dançavam nos intestinos. Do tempo total de viagem, uma fatia não despicienda foi passada, dobrados ou de cócoras, nas soturnas e imundas retretes asiáticas, revolvendo-nos em vómitos, desfazendo-nos em merda. E era ver-nos, nas breves paragens de ininterruptas viagens de autocarro que duravam dois ou três, a deixar apressadamente os veículos de cada vez que estes paravam nas horas que Meca recomenda aos crentes: os nossos companheiros estendiam os tapetes de reza e prostravam-se a Alá, os dois incréus de pele clara, acocorados a distância respeitosa, gemiam a deuses mais rasteiros...
Leves de espírito e muito mais de corpo, regressámos ao lar sem aviso, já o mês do Natal ameaçava e, recordo-o como se fosse ontem, entrei em casa dos meus pais à hora do meio-dia. A porta de trás estava entreaberta e, de costas, a minha mãe passava louça por água na banca da cozinha.
“Será que há almoço para mim?”, perguntei, e, na surpresa e brusquidão do movimento de se voltar, a minha mãe estilhaçou uma porcelana clara no mosaico preto e branco do chão da cozinha.


© Fotografias, de cima para baixo: (1) Beatles na Índia, 1968, fotógrafo ignorado; (2) Hospital de Kathmandou, 7 Novembro 1976, foto de Luc Laurent; (3) Mosteiro de Kopan (Nepal), Novembro 1976, não me recordo do nome do fotógrafo, mas era sueco e fazia trabalhos para a Vogue.
   

12 fevereiro 2012

VOU-TE CONTAR: 45. Não venhas tarde


Da direita para a esquerda: eu, Rui, etc.
Era um dia do início do Verão de 1976, uma hora avançada da tarde, quando eu, ao volante de um Fiat 128 azul-escuro, e ele, ao meu lado, atravessámos a cerca do Hospital de S. João com a finalidade de ir ver a classificação obtida no último exame, da última cadeira, que nos separava de um diploma de médico.
Nenhum de nós experimentava alguma espécie de apreensão quanto ao resultado, nem pela cabeça nos passava chumbar naquela disciplina. Mas o saber isso foi muito diferente do silêncio com que estacionámos o carro e nos dirigimos para a entrada de um dos pavilhões pré-fabricados que, na esteira da democratização do ensino universitário, começavam a juncar os amplos e frondosos jardins do Hospital, onde, aulas terminadas e pares de namorados desaparecidos da relva, os pássaros se entretinham ruidosamente a comemorar o fim do dia, alheios a quem passava. Mudos, observámos as nossas quase gémeas e excelentes classificações e, sem abrir o bico, regressámos ao carro. Aquela lista de nomes, dactilografada e assinada por um professor, significava, com a evidência de punhos cerrados, um facto incontornável: a partir desse momento, para todo o sempre, seríamos médicos; os seis anos de estudo tinham chegado ao fim e essa consciência vibrava na minha cabeça com a surdez de uma pedra ao bater no fundo de um poço.
Sentado ao volante do automóvel estacionado, olhando em frente, senti uma grande angústia tomar conta de mim e, mesmo sem olhar, pelo silêncio carregado como chumbo que emanava do banco ao lado, senti que o mesmo se passava com o meu amigo Juca.
“Agora é que estamos fodidos...”, desabafei, como se, encostado a uma parede de tijolo, anunciasse a vista do pelotão de execução.
“Vamos mas é embora daqui...”, rouquejou ele, com o incómodo característico a quem dá conta que se deixou ficar num cemitério após o anoitecer.
Acendi um cigarro, encaixei uma madeixa de cabelo, que me caía sobre os óculos, por trás da orelha, e arranquei dali.
Imperturbável, a tarde de Verão esbarrondava-se num poente e, Circunvalação abaixo, víamos tons de vermelho acumulando-se para os lados do mar.
“E agora, que fazemos?”, perguntei.
“Sei lá…”, sugeriu ele.
“Podíamos passar pelo Piolho, ver se está por lá alguém e, depois, ir jantar a qualquer lado...; que dizes? Mas primeiro tenho de passar por casa, prometi aos meus velhos que lhes dava notícias quando ficasse médico.”
“Tá bem”, concordou o Juca que não se importava tanto como eu de passar lá por casa, pois mantinha um oculto e muito respeitoso fraquito pela minha irmã mais nova.
À noite, durante o jantar, informei o Rui, que não se dera ainda ao trabalho de passar pela Faculdade, que passara na última cadeira, também era tão médico, como nós. Em resposta, disse apenas:
“Como é, sempre vamos?”
“Vamos, claro!”, respondi, sentindo um frémito no estômago.
Começámos, em volta do bolo de bolacha, a combinar alguns pormenores e decidimos que partiríamos apenas em Setembro, pois, sabíamos muito vagamente que as monções terminavam por essa altura e que a viagem seria melhor com clima seco.
“Vamos ter de fazer uma porradaria de vacinas..., lembrou ele, e recomendou: ”Vê se começas a tratar do graveto com o teu velho...”
“Isso não vai ser problema”, retorqui, “ele prometeu que, se me formasse sem chumbar nenhum ano, me oferecia uma viagem de curso onde eu quisesse...”
Pois, mas o que o meu pai nunca imaginou foi que a viagem de curso onde eu quisesse era uma jornada à Índia, ainda por cima por terra; um overland to India como estava então na moda. À imagem dos meus colegas de curso, vários deles filhos de colegas de consultório dele, o meu pai contava que eu pedisse fundos para uma passeata de semanas pela Itália, pela Suiça, pela Escandinávia, em termos de atrevimento máximo pelo Canadá, Estados Unidos... Assim, quando lhe apareci com a decisão de ir à Índia, a pé, e gastar nisso os cinco ou seis meses que me separavam do início da vida clínica, ele passou-se:
“Á Índia?! Por terra?! Tu sabes o que estás a dizer?! Já viste no mapa os países que terias de atravessar? Tens uma noção de onde aquilo é, de como aquilo é por aquelas bandas? Na maior parte desses lugares nem existe uma embaixada portuguesa!”
Com a irritante serenidade inconsciente da juventude assegurei-lhe que sim, que sabia muito bem onde em estava a meter, que cerca de nove mil km nada eram para mim; que o facto de o Afeganistão ser um covil de bandidos e o Paquistão estar, mais ou menos, em guerra civil não era coisa que perturbasse os nossos planos...”
O meu pai era um tipo que adorava História, assinava o Courier da Unesco, tinha um globo terrestre na estante do escritório, sabia bem como o mundo se movia em torno do seu eixo naquela segunda metade da década de setenta. No seu desespero por me dissuadir daquilo que  julgava ser um capricho passageiro, cometeu um erro fatal: ao negar-me o apoio financeiro que teria o prazer de me dar se o meu destino fosse outro qualquer que não a Ásia foi como se proibisse o meu sonho. E quando eu lhe recordei a sua promessa, rematou:
“Dou-te exactamente o dinheiro com que se pode sair do país, nem mais nem menos!”
Estávamos nos anos em brasa da Revolução dos Cravos e, tentando estancar a hemorragia de capitais para o exterior, o Governo determinara como plafond máximo de exportação de divisas os 7 contos de réis (cerca de 35 euros), quantia que dava, à época, para ir passar uma semana rafada a Londres ou regressar de Paris com pouco mais do que um LP do Jacques Brel e uma torre Eifel dourada. Isto é, aquela generosidade oficial cortava-me totalmente as asas. Fiquei furioso e, antes de sair do escritório, atirei:
“Pois saiba que hei-de ir de qualquer maneira...”
“Oh, menino, não hás-de passar da Grécia”, ouvi-o ainda amaldiçoar-me.
No hall, dei com a minha mãe que, com cara de caso, rondava por ali como um abutre sobre a Torre do Silêncio de Bombaim.
“Que se passa?”
“Nada”, ladrei, “apenas gente que não cumpre o que prometeu...”. Azedo, informei ainda:
“Vou sair agora, não esperem por mim para jantar...”
“Não venhas muito tarde...”, suplicou, um ar de sexta-feira santa espraiando-se-lhe nas feições.
“Nunca se sabe...” respondi, misterioso, “talvez não volte mais...”.

(continua)

© Fotografias: (1) Arredores de Mirandela, fotógrafo desconhecido, 1976 [?]; (2) Pedro Serrano, Porto, 2010.






10 fevereiro 2012

VOU-TE CONTAR: 44. Retrato de senhoras com apontamento


Cochim, no sul da Índia, continua a ser a capital das especiarias que era no tempo em que descobrimos o caminho marítimo para lá, mas tornou-se também um destino turístico tão intenso como Goa e as suas ruas estão pejadas de lojas de souvenirs, o grosso delas parecendo uma filial do Gato Preto ou da Natura e vendendo a mesma fancaria mal alinhavada que se pode encontrar, a preço semelhante, na feira de Espinho.
Destoando deste panorama piolhoso, encontrei, na mesma rua onde fica a casa onde morou o Vasco da Gama, uma loja de velharias e de antiguidades com coisas verdadeiramente interessantes, onde fiz aquisições de que ainda gostarei daqui a vinte anos e em relação às quais não poderei afirmar, com aquele ar excitado do turista, que foram ao preço da chuva. Não, a vendedora do Tribal Art sabia o que tinha exposto nas prateleiras modestas da sua lojinha abafada e era uma rapariga tão requintadamente subtil que se limitava a responder às perguntas que lhe fazíamos sobre os produtos sem nunca pressionar a escolha, sem se fundir à nossa sombra e sem, perante uma hesitação do cliente, propor descontos. Uma pose verdadeiramente rara na Índia.
Um dos artigos que atraiu o meu olhar foi uma volumosa pilha de fotografias antigas, a preto e branco, a maior parte delas encaixilhadas em cartolina branca de bordo ondulado, algumas ostentando ainda o carimbo do fotógrafo, um produto idêntico ao que podiam ser fotografias antigas da Foto Beleza, despachadas para a Feira da Ladra por um arquivo a precisar de espaço para acolher material novo.
Embora no lote houvesse fotografias de uma equipa de ténis em 1939, dos funcionários da companhia de electricidade de Madras ou de uma turma de finalistas de um liceu em Bangalore, a parte de leão daquele monte consistia em retratos de família, fossem na sua versão solitária do bebé nu em cima de uma almofada, do jovem casal recém-casado, do velho casal de pose circunspecta, até à versão polifónica da família alargada, todos muito sérios e penteados, a criançada esgazeada sob o flash de magnésio do fotógrafo, como se fosse o fogo do demónio que se preparava para lhes roubar a alma.
Percorri lentamente todas aquelas fotografias, os dedos carregando-se da nostalgia que nos contagia ao folhear folhas mortas, instantes irrepetíveis, a cristalização de momentos únicos cujo significado se esboroou no esquecimento...
A primeira vez que entrei no Tribal Art, entre essas dezenas de fotos duas prenderam especialmente a minha atenção de comprador: uma delas representava um velho casal, a mulher em pé, o homem sentado numa severa cadeira de madeira, daquelas com braços e espaldar de trono. O marido, um homem escanzelado de olhos perfurantes, era uma figura impressionante e impressionante também era pensar o ter-se ele deixado fotografar, pois as suas orelhas, destacadas do crânio, tinham as pontas ratadas e nos dedos dos pés, descalços, bem como nos das mãos, era ausente a linha de recorte que torna um dedo completo – o homem devia ser um leproso, um leproso de classe média, em pose de patriarca, com acesso aos serviços de um fotógrafo, mas mesmo assim um tipo a deixar cair pedaços. Quanto à outra fotografia, consistia ela num retrato de grupo, cuidadosamente encenado, e mostrava um grupo de mulheres, todas sentadas, trajando saris de dia festivo e, das quinze do conjunto, apenas uma ousava um tímido sorriso. Nessa primeira visita à loja não comprei nenhuma delas, mas a sua presença ficou a reverberar-me na cabeça pelos dias seguintes, particularmente a do casal.
Deixámos Fort Kochi (é o nome actual de Cochim) de madrugada e na véspera passámos uma última vez na loja. A vendedora recebeu-nos com um aceno de reconhecimento, tendo perguntado, no seu modo muito doce e gentil, de que lonjura éramos provenientes e, como quem vê cumprir-se um destino, esboçou um sorriso discreto quando me viu aproximar da pilha de retratos e retomar o meu gesto pensativo de os desfolhar como quem consulta os arcanos de um tarot.
No final da consulta, lá estava eu a olhar para as duas fotografias da primeira visita (o casal do patriarca leproso; as senhoras de sari), tentando decidir qual das duas pediria para ser embrulhada, pois já decidira que levaria apenas uma. Acabei por pedir que me embrulhasse o retrato das mulheres, um pouco por exclusão de partes, por concluir que não me era confortável pensar em exibir, num país distante, as mazelas de um velho senhor desconhecido.
Regressado a Portugal, entretido naquela tarefa cativante que é desfazer malas e reencontrar o que trouxemos num cenário novo, no escolher do sítio onde doravante vão ficar, desembrulhei a minha fotografia do seu resguardo de papel de jornal e fita-cola. E, ao olhar para ela, descobri um detalhe de que não me apercebera, apesar de toda a atenção com que a estudara na Índia: a lápis, no canto inferior da moldura, estava registada, a lápis, uma data, muito plausivelmente, muito provavelmente, a data em que aquelas senhoras teriam sido fotografadas e que era o dia 20 de Julho do longínquo ano de 1976.
Por esses dias, nesse mesmo ano, eu fizera 23 anos, concluíra o curso de Medicina e decidira, como viagem de curso, viajar uns meses para a Índia.    

(continua)

© Fotografias: (1) Fotógrafo desconhecido, Índia, 1976; (2) e (3), Pedro Serrano sobre objectos comprados em Cochim (Índia), 2012.


Não olhes agora, mas acho que estão a olhar para nós...





© Fotografia de Pedro Serrano, Kerala (Índia), 2012.

07 fevereiro 2012

PROCUREM PELO 180


O texto que se segue tem por fim permitir ao leitor encontrar uma determinada pessoa em Bombaim, e foi escrito a pedido do interessado. A minha tarefa não é das mais breves, das mais fáceis, pois para além de Mumbai (antigamente conhecida por Bombaim) ter 25 milhões de habitantes, parto para esta aventura sem saber o nome dessa pessoa, ciente de que não tem endereço electrónico e desconhecedor da sua morada ou telefone... Uma missão que parece impossível, mas, à despedida, acabava eu de entrar no táxi preto e amarelo que mandou parar para nós, o tipo meteu a cabeça pela janela e, apertando-me mais uma vez a mão, pediu, sorridente:
“Não se esqueça de, lá em Portugal, me recomendar aos seus amigos: que venham visitar o Crawford Market e que procurem pelo 180...”
Actualmente rebaptizado como Mahatma Jyotiba Phule Mandai, o Crawford Market é um dos maiores mercados abastecedores de Bombaim e deve o seu nome a Athur Crawford, o primeiro comissário municipal inglês na Bombaim colonial dos anos de 1860. É aqui que todos os hotéis, restaurantes, vendedores de rua, se abastecem diariamente de frescos.
Resolvemos ir visitá-lo num fim de manhã abrasador e apenas saídos do táxi, que nos conduzira ao local por 40 rupias, dei comigo a olhar, de baixo para cima, para um descomunal edifício, cheio de telhadinhos, torres e claraboias, que recordava o cruzamento entre uma estação de caminho de ferro e uma abadia normanda! Entre nós, do lado de cá da rua, e a imensa mole, o trânsito louco e ininterrupto das várias avenidas e ruas que se cruzam no local. Olhávamos, impotentes, aquela torrente de carros, camionetas, motas, bicicletas, esperando que algum semáforo passasse a vermelho e propiciasse uma acalmia naquela massa ambulante de apitos quando surgiu do nada – é o que ainda hoje me parece – um homem que, na pose assumida de quem adivinhara todos os nossos problemas, gritou por sobre o caos rodoviário:
“Querem ir ao Crawford Market, não é? Venham, venham, eu levo-vos lá...”
E, dando-me a mão, avançou, resoluto, sobre o trânsito, arrastando-nos e erguendo, como um sinaleiro amador, a mão livre em sinal de paragem aos veículos que se iam abatendo e travando sobre nós por centímetros de proximidade. Tive apenas tempo de estender a minha mão solta à Ana e lá seguimos os três de mãos dadas, como náufragos atravessando pedrinhas sobre o rio tormentoso.
“Quem será?”, gritou a Ana por sobre o estrondear do trânsito que continuava a farejar-nos sem parar. Encolhi os ombros: eu sabia lá!
Atravessada a rua, o nosso benfeitor tornou-se mais nítido, quer aos nossos olhos quer nas suas intenções. Eu já me tinha apercebido que era um homem de pequena estatura, esse contraste realçava da coragem com que enfrentara o monstro rodoviário da travessia, mas reparava agora na sua camisa impecavelmente branca e engomada, no desenho vermelho pintado na testa, no cabelo grisalho cortado à escovinha, no sorriso bonacheirão, no inglês não impecável, mas desenrascadamente fluente:
“Agora vou-vos mostrar o mercado, trabalho aqui há 41 anos...”
Na Índia é assim, surge sempre alguém que quer ser nosso guia, que nos promete mostrar tudo e mais alguma coisa, mesmo quando o que queremos é estar em paz.
“Não, obrigado”, agradeci, “não precisamos...”
Mas ele não desistiu e, percebendo a nossa relutância em o adoptarmos, querendo aplacar possíveis receios, meteu a mão no bolso de trás das calças de tecido azul escuro, e escarrapachou perante os nossos olhos uma carteira na qual, num dos separadores de plástico transparente, se inseria um cartão com a sua sorridente fotografia debaixo de um dístico que rezava: Crawford Market Association.
“Estão a ver”, descrevia, apontando um número no cartão, “sou o número 180, posso mostrar-vos tudo o que quiserem; trabalho aqui há 41 anos. O que querem ver? Fruta? Posso mostrar-vos a fruta, os vegetais. Cães, gatos, tartarugas, pássaros, outros animais de estimação? Posso mostrar-vos onde estão... Especiarias? Sei onde são as lojas das melhores...”
Olhei a Ana, à procura de inspiração, e, antes de nos resignarmos totalmente, perguntei ainda, para acautelar surpresas que poderiam surgir à despedida:
“E quanto nos custa a visita guiada...?”
“Apenas 200 rupias”, respondeu ele, modesta e prontamente. E acrescentou: “não leva mais de uma hora...”
Começámos pelas frutas e pelos legumes: laranjas, limas, bananas, papaias, maçãs, mangas do Dubai, kiwis da Holanda, ananases, cenouras, figos, tudo quanto se possa imaginar, artisticamente empilhado em pequenas bancas por cima ou por trás das quais se empoleirava o vendedor e a sua balança de pratos de latão, a máquina de calcular electrónica. Ah! e aquelas maravilhosas romãs de cor única, não anémica como as nossas mas de um vermelho a roçar o apoplético... Eu tinha-me passeado entre pomares de romãzeiras daquelas em...
“Pomegranates from...”
“Afganisthan”, antecipei-me.
“...Kabul”, terminou ele a frase, olhando-me, espantado com a minha precisão geográfica. É que, apesar dos anos já escorridos, a memória de caminhar, em Kandahar, pelo meio de pomares de romãs, é inesquecível - aquela cor de couro rubro, contra o branco árido do terreno, quase queimava as retinas.
O 180 continuava a caminhar à nossa frente, orgulhoso, perante os vendedores de olho aceso, do seu casal de turistas, mostrando-nos um fruto estranho ou tentando que nos maravilhássemos de surpresa com o aroma de uma erva:
“Smell this...”, ordenou, esgaçando entre os dedos um delicado capim verde que aproximou das nossas narinas.
“Lemon grass”, respondi, mais rápido do que a Ana que ainda procurava na memória a palavra para a nossa conhecida Erva Príncipe ou Chá de Caxinde, como lhe preferem chamar os angolanos.
O homem, coitado, não cabia em si de deslumbramento perante brancos tão conhecedores de tudo quanto era fruto exótico, legume arrevesado, e lá lhe fomos explicando que nós, os portugueses, andávamos naquilo das especiarias e dos trópicos há umas centenas de anos...
Nessa comunhão pelo vegetal, o tipo começou a falar de si e do seu regime vegetariano, do seu yoga e do seu estilo de vida regrado:
“No meat, no drink, no smoke...”
“No nothing...?”, perguntei, mordaz, mas o homem não sintonizou a brejeirice.
“Duas destas, pela manhã”, disse, apontando uma cesta pejada de cenouras, “e o sangue fica completamente limpo...”
E, sem dúvida querendo partilhar essa sanguínea limpeza conosco, escolheu-nos duas belas cenouras que, por eu não ter moeda miúda à mão de semear, ele se encarregou de comprar fiado junto do vendedor.
Para além dos vegetais e das frutas (conhecia com tal profundidade as virtudes antioxidantes do açafrão que nos fez comprar duas caixas num vendedor certificado), outra coisa que o encantou foi a Ana e particularmente os seus olhos azuis, que gabava cada cem metros, e cuja figura lhe fazia lembrar uma das filhas. Para o provar, parou no meio da alameda dedicada aos animais de estimação e extraiu de novo a carteira do bolso de trás das calças, exibindo um novo separador de plástico onde a sua fotografia, à esquerda e à direita, era ladeada pela foto de uma sorridente moça. A que ele achava igualzinha à Ana era a moça da direita, professora, uma bonita rapariga classicamente indiana: cabelo negro, olhos negros, pele mate. Talvez que noutra reencarnação a professora tivesse olhos azuis ou a Ana cabelo liso...
Havíamos chegado a uma das extremidades do mercado e por essa latitude já ele nos perguntara o que fazíamos na vida, a nossa religião e quantos filhos tínhamos, parecendo bastante desapontado com o facto de só existir uma peça de fruta na nossa descendência.
“Indian, two billion!”, esclareceu-nos com os olhos a brilhar, “chinese, two billion point four”, o apontar veemente de indicador como que a sugerir que, mais dia menos dia, os amarelos não perderiam pela demora. Senti-me aliviado por não ter perguntado, nessa indagação de pormenores que os indianos adoram, quantos éramos nós em Portugal, uma vez que dez milhões deviam ser, mais ou menos, os tipos que andavam por ali, nos corredores do Crawford Market, a escolher rábanos.
De repente, cheirou mal, muito mal, um daqueles odores entre o podre e o adocicado e ele estacou, avisando:
“Ali não entro...”
Ali, era o canto do mercado onde se retalhava, pendurava e vendia a carne de vaca, uma dupla ofensa para um hindu e um vegetariano.
“Muçulmanos”, ajuntou, como se a crença dos talhantes fosse algo igualmente desprezível, “se quiserem ir ver, eu espero aqui...”
Não quisemos, o cheiro era insuportável e, como lhe expliquei, também jaziam vacas penduradas no nosso país.
Tínhamos, outra vez, chegado a uma das saídas principais do mercado, locais celebrados por fontes guarnecidas com estátuas de pedra multicolores, obra de Lockwood Kipling, pai do escritor Rudyard Kipling, autor de obras como Kim e O Livro da Selva.
Tentámos despedir-nos do nosso guia, cheguei mesmo a meter a mão no bolso, mas ele travou-me o gesto; queria ainda levar-nos a uma loja, numa das ruas adjacentes ao mercado, onde poderíamos encontrar, a preços imbatíveis, verdadeira pashmina, o termo que por ali se usa para designar aquilo que chamámos de caxemira. Como dizer que não a um tipo tão simpático, tão afável, tão razoável, que queria apenas ver-nos felizes e bem servidos, que nos garantia que o estabelecimento era já ao dobrar da esquina?
A loja era num primeiro andar de escada íngreme, uma coisa pequenina mas compactamente atulhada de colchas, echarpes, almofadas de seda, saris; mas a principal mercadoria eram os produtos de Kashemir, todos em lã puríssima, cuidadosamente tosquiada ao pescoço e dorso das cabras monteses do norte da Índia. Eis-nos, naquele ritual que os orientais tanto apreciam, sentados confortavelmente, a tomar chá de masala com um farrapinho de leite, enquanto um vendedor solícito fazia desfilar diante dos nossos olhos, com gestos largos de prestidigitador, peças de macieza crescente. O nosso guia, sentado ao nosso lado, de chávena na mão, é mais entusiástico a empurrar o negócio e a catalisar o nosso encanto do que o próprio dono da loja, de forma tão evidente que acabo por brincar com isso:
“Vocês deviam convidá-lo para sócio...”
À saída, ao fundo das escadas, enquanto nos passava para as mãos os sacos com as cenouras, o açafrão, as peças de pashmina e as fronhas das almofadas, o 180 confessou-nos, amistoso, que quanto mais nós comprássemos melhor seria também para ele, pois havia reconhecimento pelo seu trabalho de angariação por parte dos comerciantes locais.
Em sinal de agradecimento por essa sinceridade e um pouco mais pelo modo sorridente como aquele tipo, da minha exacta idade, lutava pela vida no meio daquela metrópole tão dura, fiz-lhe escorregar para as mãos uma nota de quinhentas rupias (cerca de oito euros).
Desfazendo-se em sorrisos, queria ainda levar-nos a mais uns locais. A madame não quereria ver uns perfumes, incenso, tapetes? Que não, era forçoso voltar já ao hotel, ir fazer as malas, pois partiríamos essa noite de volta à Europa. Então, sem pressionar mais, pois que sabia sempre perceber quando os momentos chegavam ao limite, o 180 fez parar um táxi, trocou umas palavras com o condutor e anunciou-nos, como uma vantagem, que acordara a tarifa de 100 rupias para o mesmíssimo trajecto que, com o taxímetro a funcionar, nos custara 40 à vinda. Entrámos no táxi, ele bateu a porta com gentileza, meteu a cabeça pela janela e, apertando-me mais uma vez a mão, pediu, sorridente:
“Não se esqueça de, lá em Portugal, me recomendar aos seus amigos: que venham visitar o Crawford Market e que procurem pelo 180...”

© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, Mumbai, Fevereiro 2012; (2) Wikipedia; (3) (4) (5) Pedro Serrano, Goa, Janeiro 2012.