Cochim, no sul da Índia, continua a
ser a capital das especiarias que era no tempo em que descobrimos o caminho
marítimo para lá, mas tornou-se também um destino turístico tão intenso como
Goa e as suas ruas estão pejadas de lojas de souvenirs, o grosso delas
parecendo uma filial do Gato Preto ou
da Natura e vendendo a mesma fancaria
mal alinhavada que se pode encontrar, a preço semelhante, na feira de Espinho.
Destoando deste panorama piolhoso,
encontrei, na mesma rua onde fica a casa onde morou o Vasco da Gama, uma loja
de velharias e de antiguidades com coisas verdadeiramente interessantes, onde
fiz aquisições de que ainda gostarei daqui a vinte anos e em relação às quais
não poderei afirmar, com aquele ar excitado do turista, que foram ao preço da
chuva. Não, a vendedora do Tribal Art
sabia o que tinha exposto nas prateleiras modestas da sua lojinha abafada e era
uma rapariga tão requintadamente subtil que se limitava a responder às
perguntas que lhe fazíamos sobre os produtos sem nunca pressionar a escolha,
sem se fundir à nossa sombra e sem, perante uma hesitação do cliente, propor
descontos. Uma pose verdadeiramente rara na Índia.
Um dos artigos que atraiu o meu olhar
foi uma volumosa pilha de fotografias antigas, a preto e branco, a maior parte
delas encaixilhadas em cartolina branca de bordo ondulado, algumas ostentando ainda
o carimbo do fotógrafo, um produto idêntico ao que podiam ser fotografias
antigas da Foto Beleza, despachadas
para a Feira da Ladra por um arquivo a precisar de espaço para acolher material
novo.
Embora no lote houvesse fotografias de
uma equipa de ténis em 1939, dos funcionários da companhia de electricidade de
Madras ou de uma turma de finalistas de um liceu em Bangalore, a parte de leão
daquele monte consistia em retratos de família, fossem na sua versão solitária
do bebé nu em cima de uma almofada, do jovem casal recém-casado, do velho casal
de pose circunspecta, até à versão polifónica da família alargada, todos muito
sérios e penteados, a criançada esgazeada sob o flash de magnésio do fotógrafo,
como se fosse o fogo do demónio que se preparava para lhes roubar a alma.
Percorri lentamente todas aquelas
fotografias, os dedos carregando-se da nostalgia que nos contagia ao folhear folhas
mortas, instantes irrepetíveis, a cristalização de momentos únicos cujo
significado se esboroou no esquecimento...
A primeira vez que entrei no Tribal Art, entre essas dezenas de fotos
duas prenderam especialmente a minha atenção de comprador: uma delas
representava um velho casal, a mulher em pé, o homem sentado numa severa
cadeira de madeira, daquelas com braços e espaldar de trono. O marido, um homem
escanzelado de olhos perfurantes, era uma figura impressionante e
impressionante também era pensar o ter-se ele deixado fotografar, pois as suas orelhas,
destacadas do crânio, tinham as pontas ratadas e nos dedos dos pés, descalços,
bem como nos das mãos, era ausente a linha de recorte que torna um dedo completo
– o homem devia ser um leproso, um leproso de classe média, em pose de
patriarca, com acesso aos serviços de um fotógrafo, mas mesmo assim um tipo a
deixar cair pedaços. Quanto à outra fotografia, consistia ela num retrato de
grupo, cuidadosamente encenado, e mostrava um grupo de mulheres, todas
sentadas, trajando saris de dia festivo e, das quinze do conjunto, apenas uma
ousava um tímido sorriso. Nessa primeira visita à loja não comprei nenhuma delas,
mas a sua presença ficou a reverberar-me na cabeça pelos dias seguintes,
particularmente a do casal.
Deixámos Fort Kochi (é o nome actual
de Cochim) de madrugada e na véspera passámos uma última vez na loja. A
vendedora recebeu-nos com um aceno de reconhecimento, tendo perguntado, no seu
modo muito doce e gentil, de que lonjura éramos provenientes e, como quem vê
cumprir-se um destino, esboçou um sorriso discreto quando me viu aproximar da
pilha de retratos e retomar o meu gesto pensativo de os desfolhar como quem
consulta os arcanos de um tarot.
No final da consulta, lá estava eu a
olhar para as duas fotografias da primeira visita (o casal do patriarca leproso;
as senhoras de sari), tentando decidir qual das duas pediria para ser
embrulhada, pois já decidira que levaria apenas uma. Acabei por pedir que me
embrulhasse o retrato das mulheres, um pouco por exclusão de partes, por concluir
que não me era confortável pensar em exibir, num país distante, as mazelas de
um velho senhor desconhecido.
Regressado a Portugal, entretido naquela
tarefa cativante que é desfazer malas e reencontrar o que trouxemos num cenário
novo, no escolher do sítio onde doravante vão ficar, desembrulhei a minha
fotografia do seu resguardo de papel de jornal e fita-cola. E, ao olhar para
ela, descobri um detalhe de que não me apercebera, apesar de toda a atenção com
que a estudara na Índia: a lápis, no canto inferior da moldura, estava
registada, a lápis, uma data, muito plausivelmente, muito provavelmente, a data
em que aquelas senhoras teriam sido fotografadas e que era o dia 20 de Julho do
longínquo ano de 1976.
Por esses dias, nesse mesmo ano, eu
fizera 23 anos, concluíra o curso de Medicina e decidira, como viagem de curso,
viajar uns meses para a Índia.
(continua)
© Fotografias: (1) Fotógrafo desconhecido, Índia, 1976; (2) e (3), Pedro Serrano sobre objectos comprados em Cochim (Índia), 2012.
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