Da direita para a esquerda: eu, Rui, etc. |
Nenhum de nós experimentava alguma
espécie de apreensão quanto ao resultado, nem pela cabeça nos passava chumbar
naquela disciplina. Mas o saber isso foi muito diferente do silêncio com que
estacionámos o carro e nos dirigimos para a entrada de um dos pavilhões
pré-fabricados que, na esteira da democratização do ensino universitário,
começavam a juncar os amplos e frondosos jardins do Hospital, onde, aulas terminadas
e pares de namorados desaparecidos da relva, os pássaros se entretinham
ruidosamente a comemorar o fim do dia, alheios a quem passava. Mudos,
observámos as nossas quase gémeas e excelentes classificações e, sem abrir o
bico, regressámos ao carro. Aquela lista de nomes, dactilografada e assinada
por um professor, significava, com a evidência de punhos cerrados, um facto
incontornável: a partir desse momento, para todo o sempre, seríamos médicos; os
seis anos de estudo tinham chegado ao fim e essa consciência vibrava na minha
cabeça com a surdez de uma pedra ao bater no fundo de um poço.
Sentado ao volante do automóvel
estacionado, olhando em frente, senti uma grande angústia tomar conta de mim e,
mesmo sem olhar, pelo silêncio carregado como chumbo que emanava do banco ao
lado, senti que o mesmo se passava com o meu amigo Juca.
“Agora é que estamos fodidos...”,
desabafei, como se, encostado a uma parede de tijolo, anunciasse a vista do
pelotão de execução.
“Vamos mas é embora daqui...”,
rouquejou ele, com o incómodo característico a quem dá conta que se deixou
ficar num cemitério após o anoitecer.
Acendi um cigarro, encaixei uma
madeixa de cabelo, que me caía sobre os óculos, por trás da orelha, e arranquei
dali.
Imperturbável, a tarde de Verão
esbarrondava-se num poente e, Circunvalação abaixo, víamos tons de vermelho
acumulando-se para os lados do mar.
“E agora, que fazemos?”, perguntei.
“Sei lá…”, sugeriu ele.
“Podíamos passar pelo Piolho, ver se
está por lá alguém e, depois, ir jantar a qualquer lado...; que dizes? Mas
primeiro tenho de passar por casa, prometi aos meus velhos que lhes dava
notícias quando ficasse médico.”
“Tá bem”, concordou o Juca que não se
importava tanto como eu de passar lá por casa, pois mantinha um oculto e muito
respeitoso fraquito pela minha irmã mais nova.
À noite, durante o jantar, informei o
Rui, que não se dera ainda ao trabalho de passar pela Faculdade, que passara na
última cadeira, também era tão médico, como nós. Em resposta, disse apenas:
“Como é, sempre vamos?”
“Vamos, claro!”, respondi, sentindo um
frémito no estômago.
Começámos, em volta do bolo de
bolacha, a combinar alguns pormenores e decidimos que partiríamos apenas em
Setembro, pois, sabíamos muito vagamente que as monções terminavam por essa
altura e que a viagem seria melhor com clima seco.
“Vamos ter de fazer uma porradaria de
vacinas..., lembrou ele, e recomendou: ”Vê se começas a tratar do graveto com o
teu velho...”
“Isso não vai ser problema”, retorqui,
“ele prometeu que, se me formasse sem chumbar nenhum ano, me oferecia uma
viagem de curso onde eu quisesse...”
Pois, mas o que o meu pai nunca
imaginou foi que a viagem de curso onde eu quisesse era uma jornada à Índia,
ainda por cima por terra; um overland to
India como estava então na moda. À imagem dos meus colegas de curso, vários
deles filhos de colegas de consultório dele, o meu pai contava que eu pedisse fundos
para uma passeata de semanas pela Itália, pela Suiça, pela Escandinávia, em
termos de atrevimento máximo pelo Canadá, Estados Unidos... Assim, quando lhe
apareci com a decisão de ir à Índia, a pé, e gastar nisso os cinco ou seis
meses que me separavam do início da vida clínica, ele passou-se:
“Á Índia?! Por terra?! Tu sabes o que
estás a dizer?! Já viste no mapa os países que terias de atravessar? Tens uma
noção de onde aquilo é, de como aquilo é por aquelas bandas? Na maior parte
desses lugares nem existe uma embaixada portuguesa!”
Com a irritante serenidade
inconsciente da juventude assegurei-lhe que sim, que sabia muito bem onde em
estava a meter, que cerca de nove mil km nada eram para mim; que o facto de o
Afeganistão ser um covil de bandidos e o Paquistão estar, mais ou menos, em
guerra civil não era coisa que perturbasse os nossos planos...”
O meu pai era um tipo que adorava História, assinava o Courier da Unesco,
tinha um globo terrestre na estante do escritório, sabia bem como o mundo se
movia em torno do seu eixo naquela segunda metade da década de setenta. No seu
desespero por me dissuadir daquilo que
julgava ser um capricho passageiro, cometeu um erro fatal: ao negar-me o
apoio financeiro que teria o prazer de me dar se o meu destino fosse outro
qualquer que não a Ásia foi como se proibisse o meu sonho. E quando eu lhe
recordei a sua promessa, rematou:
“Dou-te exactamente o dinheiro com que
se pode sair do país, nem mais nem menos!”
Estávamos nos anos em brasa da Revolução dos Cravos e, tentando
estancar a hemorragia de capitais para o exterior, o Governo determinara como
plafond máximo de exportação de divisas os 7 contos de réis (cerca de 35
euros), quantia que dava, à época, para ir passar uma semana rafada a Londres
ou regressar de Paris com pouco mais do que um LP do Jacques Brel e uma torre
Eifel dourada. Isto é, aquela generosidade oficial cortava-me totalmente as
asas. Fiquei furioso e, antes de sair do escritório, atirei:
“Pois saiba que hei-de ir de qualquer
maneira...”
“Oh, menino, não hás-de passar da
Grécia”, ouvi-o ainda amaldiçoar-me.
No hall, dei com a minha mãe que, com
cara de caso, rondava por ali como um abutre sobre a Torre do Silêncio de Bombaim.
“Que se passa?”
“Nada”, ladrei, “apenas gente que não
cumpre o que prometeu...”. Azedo, informei ainda:
“Vou sair agora, não esperem por mim
para jantar...”
“Não venhas muito tarde...”, suplicou,
um ar de sexta-feira santa espraiando-se-lhe nas feições.
“Nunca se sabe...” respondi,
misterioso, “talvez não volte mais...”.
(continua)
© Fotografias: (1) Arredores de Mirandela, fotógrafo desconhecido, 1976 [?]; (2) Pedro Serrano, Porto, 2010.
Sempre em grande estilo. Beijinhos de Cabo Verde
ResponderEliminar@Luz Lima, Olá, muito obrigado pelo seu comentário. Beijos para aí.
ResponderEliminarahahahahahahahahahh juro-te... ainda me mijo... o pintas dos oculos?? ahahahahah perolas... perolas! So nao vejo destas do meu pai... havia de ser lindo esse tambem
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