O texto que se segue tem por fim
permitir ao leitor encontrar uma determinada pessoa em Bombaim, e foi escrito a pedido do
interessado. A minha tarefa não é das mais breves, das mais fáceis, pois para
além de Mumbai (antigamente conhecida por Bombaim) ter 25 milhões de
habitantes, parto para esta aventura sem saber o nome dessa pessoa, ciente de
que não tem endereço electrónico e desconhecedor da sua morada ou telefone... Uma
missão que parece impossível, mas, à despedida, acabava eu de entrar no táxi
preto e amarelo que mandou parar para nós, o tipo meteu a cabeça pela janela e,
apertando-me mais uma vez a mão, pediu, sorridente:
“Não se esqueça de, lá em Portugal, me recomendar aos seus amigos: que
venham visitar o Crawford Market e
que procurem pelo 180...”
Actualmente rebaptizado como Mahatma
Jyotiba Phule Mandai, o Crawford
Market é um dos maiores mercados abastecedores de Bombaim e deve o seu nome
a Athur Crawford, o primeiro comissário municipal inglês na Bombaim colonial dos
anos de 1860. É aqui que todos os hotéis, restaurantes, vendedores de rua, se abastecem diariamente de frescos.
Resolvemos ir visitá-lo num fim de manhã abrasador e apenas saídos do táxi,
que nos conduzira ao local por 40 rupias, dei comigo a olhar, de baixo para
cima, para um descomunal edifício, cheio de telhadinhos, torres e claraboias,
que recordava o cruzamento entre uma estação de caminho de ferro e uma abadia
normanda! Entre nós, do lado de cá da rua, e a imensa mole, o trânsito louco e
ininterrupto das várias avenidas e ruas que se cruzam no local. Olhávamos,
impotentes, aquela torrente de carros, camionetas, motas, bicicletas, esperando
que algum semáforo passasse a vermelho e propiciasse uma acalmia naquela massa
ambulante de apitos quando surgiu do nada – é o que ainda hoje me parece – um
homem que, na pose assumida de quem adivinhara todos os nossos problemas,
gritou por sobre o caos rodoviário:
“Querem ir ao Crawford Market,
não é? Venham, venham, eu levo-vos lá...”
E, dando-me a mão, avançou, resoluto, sobre o trânsito, arrastando-nos e
erguendo, como um sinaleiro amador, a mão livre em sinal de paragem aos
veículos que se iam abatendo e travando sobre nós por centímetros de
proximidade. Tive apenas tempo de estender a minha mão solta à Ana e lá seguimos
os três de mãos dadas, como náufragos atravessando pedrinhas sobre o rio
tormentoso.
“Quem será?”, gritou a Ana por sobre o estrondear do trânsito que
continuava a farejar-nos sem parar. Encolhi os ombros: eu sabia lá!
Atravessada a rua, o nosso benfeitor tornou-se mais nítido, quer aos
nossos olhos quer nas suas intenções. Eu já me tinha apercebido que era um
homem de pequena estatura, esse contraste realçava da coragem com que
enfrentara o monstro rodoviário da travessia, mas reparava agora na sua camisa
impecavelmente branca e engomada, no desenho vermelho pintado na testa, no
cabelo grisalho cortado à escovinha, no sorriso bonacheirão, no inglês não
impecável, mas desenrascadamente fluente:
“Agora vou-vos mostrar o mercado, trabalho aqui há 41 anos...”
Na Índia é assim, surge sempre alguém que quer ser nosso guia, que nos
promete mostrar tudo e mais alguma coisa, mesmo quando o que queremos é estar
em paz.
“Não, obrigado”, agradeci, “não precisamos...”
Mas ele não desistiu e, percebendo a nossa relutância em o adoptarmos,
querendo aplacar possíveis receios, meteu a mão no bolso de trás das calças de
tecido azul escuro, e escarrapachou perante os nossos olhos uma carteira na
qual, num dos separadores de plástico transparente, se inseria um cartão com a
sua sorridente fotografia debaixo de um dístico que rezava: Crawford Market Association.
“Estão a ver”, descrevia, apontando um número no cartão, “sou o número
180, posso mostrar-vos tudo o que quiserem; trabalho aqui há 41 anos. O que
querem ver? Fruta? Posso mostrar-vos a fruta, os vegetais. Cães, gatos,
tartarugas, pássaros, outros animais de estimação? Posso mostrar-vos onde
estão... Especiarias? Sei onde são as lojas das melhores...”
Olhei a Ana, à procura de inspiração, e, antes de nos resignarmos totalmente,
perguntei ainda, para acautelar surpresas que poderiam surgir à despedida:
“E quanto nos custa a visita guiada...?”
“Apenas 200 rupias”, respondeu ele, modesta e prontamente. E
acrescentou: “não leva mais de uma hora...”
Começámos pelas frutas e pelos legumes: laranjas, limas, bananas,
papaias, maçãs, mangas do Dubai, kiwis da Holanda, ananases, cenouras, figos,
tudo quanto se possa imaginar, artisticamente empilhado em pequenas bancas por cima
ou por trás das quais se empoleirava o vendedor e a sua balança de pratos de
latão, a máquina de calcular electrónica. Ah! e aquelas maravilhosas romãs de
cor única, não anémica como as nossas mas de um vermelho a roçar o
apoplético... Eu tinha-me passeado entre pomares de romãzeiras daquelas em...
“Pomegranates from...”
“Afganisthan”, antecipei-me.
“...Kabul”, terminou ele a frase, olhando-me, espantado com a minha precisão geográfica. É que, apesar dos anos já escorridos, a memória de caminhar, em Kandahar, pelo meio de pomares de romãs, é inesquecível - aquela cor de couro rubro, contra o branco árido do terreno, quase queimava as retinas.
“...Kabul”, terminou ele a frase, olhando-me, espantado com a minha precisão geográfica. É que, apesar dos anos já escorridos, a memória de caminhar, em Kandahar, pelo meio de pomares de romãs, é inesquecível - aquela cor de couro rubro, contra o branco árido do terreno, quase queimava as retinas.
O 180 continuava a caminhar à nossa frente, orgulhoso, perante os
vendedores de olho aceso, do seu casal de turistas, mostrando-nos um fruto
estranho ou tentando que nos maravilhássemos de surpresa com o aroma de uma
erva:
“Smell this...”, ordenou, esgaçando entre os dedos um delicado capim
verde que aproximou das nossas narinas.
“Lemon grass”, respondi, mais rápido do que a Ana que ainda procurava na
memória a palavra para a nossa conhecida Erva
Príncipe ou Chá de Caxinde, como lhe preferem chamar os
angolanos.
O homem, coitado, não cabia em si de deslumbramento perante brancos tão
conhecedores de tudo quanto era fruto exótico, legume arrevesado, e lá lhe
fomos explicando que nós, os portugueses, andávamos naquilo das especiarias e
dos trópicos há umas centenas de anos...
Nessa comunhão pelo vegetal, o tipo começou a falar de si e do seu
regime vegetariano, do seu yoga e do seu estilo de vida regrado:
“No meat, no drink, no smoke...”
“No nothing...?”, perguntei, mordaz, mas o homem não sintonizou a
brejeirice.
“Duas destas, pela manhã”, disse, apontando uma cesta pejada de
cenouras, “e o sangue fica completamente limpo...”
E, sem dúvida querendo partilhar essa sanguínea limpeza conosco, escolheu-nos
duas belas cenouras que, por eu não ter moeda miúda à mão de semear, ele se
encarregou de comprar fiado junto do vendedor.
Para além dos vegetais e das frutas (conhecia com tal profundidade as virtudes
antioxidantes do açafrão que nos fez comprar duas caixas num vendedor
certificado), outra coisa que o encantou foi a Ana e particularmente os seus
olhos azuis, que gabava cada cem metros, e cuja figura lhe fazia lembrar uma
das filhas. Para o provar, parou no meio da alameda dedicada aos animais de
estimação e extraiu de novo a carteira do bolso de trás das calças, exibindo um
novo separador de plástico onde a sua fotografia, à esquerda e à direita, era
ladeada pela foto de uma sorridente moça. A que ele achava igualzinha à Ana era
a moça da direita, professora, uma bonita rapariga classicamente indiana:
cabelo negro, olhos negros, pele mate. Talvez que noutra reencarnação a
professora tivesse olhos azuis ou a Ana cabelo liso...
Havíamos chegado a uma das extremidades do mercado e por essa latitude
já ele nos perguntara o que fazíamos na vida, a nossa religião e quantos
filhos tínhamos, parecendo bastante desapontado com o facto de só existir
uma peça de fruta na nossa descendência.
“Indian, two billion!”, esclareceu-nos com os olhos a brilhar, “chinese,
two billion point four”, o apontar veemente de indicador como que a sugerir
que, mais dia menos dia, os amarelos não perderiam pela demora. Senti-me
aliviado por não ter perguntado, nessa indagação de pormenores que os indianos adoram,
quantos éramos nós em Portugal, uma vez que dez milhões deviam ser, mais ou
menos, os tipos que andavam por ali, nos corredores do Crawford Market, a escolher rábanos.
De repente, cheirou mal, muito mal, um daqueles odores entre o podre e o
adocicado e ele estacou, avisando:
“Ali não entro...”
Ali, era o canto do mercado onde se retalhava, pendurava e vendia a
carne de vaca, uma dupla ofensa para um hindu e um vegetariano.
“Muçulmanos”, ajuntou, como se a crença dos talhantes fosse algo
igualmente desprezível, “se quiserem ir ver, eu espero aqui...”
Não quisemos, o cheiro era insuportável e, como lhe expliquei, também jaziam vacas penduradas no nosso país.
Tínhamos, outra vez, chegado a uma das saídas principais do mercado, locais
celebrados por fontes guarnecidas com estátuas de pedra multicolores, obra de Lockwood
Kipling, pai do escritor Rudyard Kipling, autor de obras como Kim e O Livro da Selva.
Tentámos despedir-nos do nosso guia, cheguei mesmo a meter a mão no
bolso, mas ele travou-me o gesto; queria ainda levar-nos a uma loja, numa das
ruas adjacentes ao mercado, onde poderíamos encontrar, a preços imbatíveis,
verdadeira pashmina, o termo que por
ali se usa para designar aquilo que chamámos de caxemira. Como dizer que não a um tipo tão simpático, tão afável,
tão razoável, que queria apenas ver-nos felizes e bem servidos, que nos
garantia que o estabelecimento era já ao dobrar da esquina?
A loja era num primeiro andar de escada íngreme, uma coisa pequenina mas
compactamente atulhada de colchas, echarpes, almofadas de seda, saris; mas a
principal mercadoria eram os produtos de Kashemir, todos em lã puríssima,
cuidadosamente tosquiada ao pescoço e dorso das cabras monteses do norte da
Índia. Eis-nos, naquele ritual que os orientais tanto apreciam, sentados
confortavelmente, a tomar chá de masala com
um farrapinho de leite, enquanto um vendedor solícito fazia desfilar diante dos
nossos olhos, com gestos largos de prestidigitador, peças de macieza crescente.
O nosso guia, sentado ao nosso lado, de chávena na mão, é mais entusiástico a empurrar
o negócio e a catalisar o nosso encanto do que o próprio dono da loja, de forma tão evidente que acabo por brincar com isso:
“Vocês deviam convidá-lo para sócio...”
À saída, ao fundo das escadas, enquanto nos passava para as mãos os
sacos com as cenouras, o açafrão, as peças de pashmina e as fronhas das almofadas, o 180 confessou-nos, amistoso,
que quanto mais nós comprássemos melhor seria também para ele, pois havia reconhecimento pelo seu trabalho de
angariação por parte dos comerciantes locais.
Em sinal de agradecimento por essa sinceridade e um pouco mais pelo
modo sorridente como aquele tipo, da minha exacta idade, lutava pela vida no
meio daquela metrópole tão dura, fiz-lhe escorregar para as mãos uma nota de
quinhentas rupias (cerca de oito euros).
Desfazendo-se em sorrisos, queria ainda levar-nos a mais uns locais. A
madame não quereria ver uns perfumes, incenso, tapetes? Que não, era forçoso
voltar já ao hotel, ir fazer as malas, pois partiríamos essa noite de volta à
Europa. Então, sem pressionar mais, pois que sabia sempre perceber quando os
momentos chegavam ao limite, o 180 fez parar um táxi, trocou umas palavras com
o condutor e anunciou-nos, como uma vantagem, que acordara a tarifa de 100
rupias para o mesmíssimo trajecto que, com o taxímetro a funcionar, nos custara
40 à vinda. Entrámos no táxi, ele bateu a porta com gentileza, meteu a cabeça
pela janela e, apertando-me mais uma vez a mão, pediu, sorridente:
“Não se esqueça de, lá em Portugal, me recomendar aos seus amigos: que
venham visitar o Crawford Market e
que procurem pelo 180...”
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Pedro Serrano, Mumbai, Fevereiro 2012; (2) Wikipedia; (3) (4) (5) Pedro Serrano, Goa, Janeiro 2012.
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