1. Et in Arcadia ego
Eis o jovem, o intrépido viajante
chegando ao fim da primeira etapa da sua viagem pelo Oriente. Ei-lo, na bicha
de chegada ao aeroporto de Atenas, mochila às costas, calças de ganga, botas altas
de cabedal preto e, pendurando-se de uma das mãos, um avantajado pacote
quadrangular, ostentando no exterior publicidade a uma batedeira eléctrica...
As botas pelo joelho tem uma
explicação lógica, na sua mente mais profunda o intrépido viajante sabe que vai
ao encontro de terras onde abundam seres rastejantes, muitos deles venenosos e,
bem vistas as coisas, sempre será melhor enfrentar uma cobra-capelo de botas do
que descalço; embora, feito o balanço final, o maior perigo com que elas
tiveram de arrostar foram dolorosas bolhas nos pés. Mas uma batedeira
eléctrica!?
Nessa noite de Setembro de 1976, o voo
da British Empire Airways entre
Londres e Atenas foi voo atribulado, percorrido numa estratosfera carregada
onde raios cintilavam no negrume da noite, vários passageiros vomitaram os seus
paper-bags e a maioria seguiu cor de
cera e muda. Menos eu e o meu companheiro do lado de lá da coxia, um tipo que
estudava em Londres e com quem estabeleci animada conversa. Ganha a confiança, Dimitrios
perguntou se, por acaso, eu me importaria de, no passar da alfândega, lhe
transportar um pacote... Era uma batedeira eléctrica, daquelas com base e vaso
misturador, um velho sonho da mãe e produto quase impossível de encontrar na
Grécia pós Socrática e pré-Troika. Acontecia que o controlo da polícia da
alfândega ateniense, tal como a portuguesa da época, era terrivelmente apertado
para gregos e troianos, mas nada para com os turistas...
Deste modo, eu e o Rui não entrámos no
país como uns outros quaisquer, tínhamos à nossa espera, acenando freneticamente
do lado de lá da paliçada, uma família completa de pai, mãe e vários filhos
que, mal tomaram conhecimento do meu acto heroico nos levaram em triunfo para
sua casa, uns sete ou oito marmanjos amicalmente amontoados num automóvel.
Amanhecia sobre Atenas, uma aurora
dourada tingia-se de vermelho em cada fiapo de nuvem que aflorava, os cedros e
os ciprestes ainda recortados no negro em que se tinham envolvido para passar a
noite. À chegada, em casa de Dimitrios, enquanto era preparado o pequeno almoço
e se arranjavam as nossas camas, foram-nos servidos rosados cubos de melancia
gelada. Nesse porto de abrigo nos mantivemos dois dias antes de enfrentar a
verdadeira, a árida estrada.
Nunca esqueci esses momentos raros,
nem outros semelhantes em que, em país distante, um desconhecido nos estende um
gesto generoso... Que balsâmicos esses mimos, esses gomos frescos de melancia
que nos tornam de estranhos em pertença, nos fazem sentir em casa no meio do
nada.
2. Entretanto em Lisboa
Carolina à porta do Assuka. |
Em Lisboa frequento tão amiudadas
vezes o Assuka que por lá me chamam “Sr. Pedro”, alguns dos empregados reconhecem até a minha voz quando telefono a
marcar mesa. O Assuka é um
restaurante japonês na rua de S. Sebastião da Pedreira, uma ruela estreita que
nasce ao largo da igreja do mesmo nome e se enfronha por ali abaixo, o mais paralela
que consegue à avenida António Augusto de Aguiar. Come-se bem no Assuka e janto lá muitas vezes, sendo a
minha companhia mais frequente e mais deliciada a minha sobrinha Carolina que,
para além de ser certeira a escolher as mais requintadas iguarias, mora ali ao
lado e nunca se faz rogada para desembestar comigo rua abaixo.
Mas também paro por lá sozinho e assim
aconteceu uma noite gelada de princípios de Dezembro de 2011, não muito depois
de ter chegado de ir visitar, pela primeira vez, o Zé João a Leipzig. Nessa
noite o restaurante estava pacato, a clientela escassa e, acabara de aviar uma
sopa miso e começava a pinçar umas
vieiras grelhadas, quando chegaram três pessoas à mesa ao lado da minha.
Estando sozinho, dei comigo a por em prática aquela técnica que consiste em
observar atentamente o que sucede à nossa volta sem deixar de olhar em frente,
sem quase tirar os olhos do frasco do molho de soja que arrefece no nosso
solitário tampo de mesa.
As recém sentadas eram três raparigas
estrangeiras, duas alemãs e uma italiana, e desenvolviam um comovente esforço
para falar entre elas apenas em português.
“Erasmus...”, diagnostiquei de
imediato.
As moças estiveram séculos a consultar
o menu e fui percebendo que mais do que dificuldade em entender a ementa, elas
tentavam conjugar pratos que fossem do agrado de todas e baratos...
“Tesas...”, sarrabisquei mentalmente.
Entretanto chegou uma quarta conviva,
desta vez uma brasileira pequenina, óculos de míope e chapéu de coco na cabeça,
um pormenor que conferia, mais do que o piercing
no nariz, um toque singular ao seu perfil banal. De imediato, a quarta conviva
mergulhou no menu e estabeleceu, sempre num português que de ora em ora era
clarificado com um termo inglês, complicadas negociações gastronómicas com as
outras três.
“O seu descafeinado...”, anunciou o
empregado pousando uma chávena à minha frente, “mais alguma coisa?”.
Desenhei no ar o arabesco que uso para
pedir a conta.
Ao meu lado esquerdo, as quatro amigas
tinham iniciado a refeição e estavam já mais animadas e menos anémicas do que à
chegada. Interpelavam a brasileira como se ela fosse portuguesa, fosse em
termos de esclarecimentos linguísticos:
“un grrande ... building?”, tateava uma
“Edifício...”, esclarecia a do chapéu
de coco.
fosse em termos de locais que ainda
não conheciam, mas estavam a considerar visitar:
“Coimbrrà?”
A brasileira torceu o piercing com ar de enfado, informou que
não havia nada para ver por lá, nada para fazer. Já o mesmo não comentou sobre
Braga, cidade que reputou como muito interessante e animada, e onde conhecia
alguém a quem podia recomendar as outras.
A minha conta chegou. Levantei-me, fui
pagá-la ao balcão. Depois perguntei à empregada, uma velha conhecida minha:
“Posso saber em quanto vai a despesa
daquelas quatro meninas ali?”
Ela consultou o computador: o total,
com os pratos principais e as bebidas já todas encomendadas, ia em 42 euros e
uns pós de cêntimo.
“Vou deixar aqui 45 euros para pagar a
despesa delas, tá bem?”
A senhora olhou para mim com discrição
contida, mas percebi no seu fácies uma certa curiosidade, mais do que espanto
pelo meu gesto. E não fosse também a possibilidade de as quatro raparigas, ao
saberem da oferta, juntar ao espanto
algum medo de que as esperasse lá fora, na esquina seguinte, quiçá com a
gabardina, que não usava, de abas abertas, acrescentei:
“Por favor diga-lhes que foi um tipo
que tem um filho a fazer Erasmus na Alemanha, e que sabe bem o que é estar longe
de casa e alguém ser simpático connosco...”
3. Elogio do chá verde
Passada uma semana, é possível que
duas, voltei ao Assuka. Acabara de
pegar na ementa quando a empregada com quem tive o anterior diálogo se
aproximou:
“Sr. Pedro, hoje já vai ter que beber
ao jantar! As meninas do outro dia deixaram, já pago, um chá verde para si.”
“Verde...?”, quis perceber a
especificidade do presente.
“Verde...”, confirmou ela.
Bebi-o devagar, olhando-lhe a cor,
apreciando o paladar, fazendo com que durasse o jantar inteiro. Era bom, aquele
chá. Pelo menos tomei-o como tal.
© Fotografias de Pedro Serrano. De cima para baixo: (1) Praia da Areia Branca, Dezembro 2011; (2) Lisboa, Novembro 2010; (3) Leipzig (Alemanha), Novembro 2011; (4) Lisboa, Assuka, Janeiro 2012.
Compreendi na perfeição o motivo pelo qual o fizeste. Acho que não preciso de dizer mais do que isto..
ResponderEliminarEspero que esteja tudo bem cntg.
Abraço
@ Gil, Sei que tens conhecimento de causa para o compreender! Obrigado pelo comentário e um abraço
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