14 fevereiro 2012

VOU-TE CONTAR: 46. De cócoras, ao sul de Atenas


A 14 de Fevereiro de 1968, os Beatles partiram para a Índia, em parte arrastados por George Harrison que, já há algum tempo, se interessava quer pela filosofia e religião hindu quer, mais especificamente, pela complexa e sofisticada música clássica indiana. Aliás, já em dois discos que antecederam essa viagem (Revolver, de 1966, e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, 1967) se deixam ouvir os sons de tablas e cítaras.
Contas feitas, os Beatles permaneceram no país apenas dois meses, mas as canções que compuseram por lá (quase todo o duplo White Album, 1968) e a onda de influência que essa experiência teve  ainda hoje vibram pelo universo...
Eu que o diga, que acabei por ir lá parar na peugada disto tudo. Em Fevereiro de 1968 tinha catorze anos e não podia fazer mais do que babar-me de deslumbramento com os caminhos que os meus músicos preferidos exploravam, com os ecos, amplificados e distorcidos pelo mito, que nos chegavam à pasmacenta cidade do Porto. Mas oito anos volvidos, em 1976, já conseguia deixar crescer um bigode, já decidia por mim, mesmo que isso pudesse significar uma ruptura familiar.
Desde que me lembro, e por determinantes que não consigo precisar, o Oriente exerceu um tremendo fascínio sobre mim, a Índia em particular e, na infância, a minha imaginação reagia com fervor a cenários com encantadores de serpentes, cordas mágicas, faquires que acomodavam a sesta em camas de pregos, cadáveres boiando Ganges abaixo. Depois, vieram os anos 60 e explodiu um novo ressurgimento da Índia de que os Beatles, mas não só, foram uns dos principais culpados. É cíclica esta atracção do frenético Ocidente pelo imperturbável Oriente. No final do século XIX, início do século XX, houve febre semelhante e a pintura impressionista, por exemplo, é moldada na influência da pintura japonesa, assim como são impressionadas pelo oriente a literatura, a poesia europeia e, apenas citando exemplos caseiros, podemos encontrar vestígios do velho fascínio em Pessoa, em Mário de Sá Carneiro... Eça de Q., esse, fez e desfez malas na poeira do Levante...
Assim, quando naquele escritório, me zanguei com o meu pai, não foi só por me sentir traído na promessa que ele fizera de me financiar uma viagem de fim de curso “onde quiseres”. Sentia-me também atrasado, sufocado, preso num cantinho onde os dias se repetiam quando tudo estava a acontecer lá fora! Porra, será que era assim tão difícil entender? E agora, que me preparava mentalmente para partir com a consciência de ir já agarrado à cauda do cometa, ainda tinha de me debater com detalhes destes?! Dinheiro?!
Da esquerda para a direita: Marie Jo, eu, e Rui.
Para além dos sete contos (35 euros) do meu pai, o meu tio Mário oferecera-me, pelos meu recente sucesso académico, uma bela nota de 100 dólares, mas nada disso chegava. Para, digamos, três ou quatro meses de viagem, nada menos do que uns 50 contos (uns 250 euros). Bati à porta da família, mas como toda a gente estava a par do conflito e das minhas ideias loucas, levei delicadamente com os pés, as recusas irritantemente temperadas com um futurista “um dia ainda me hás-de agradecer”.
Acabei por conseguir o financiamento junto de alguns amigos que admiravam o projecto e o primeiro dinheiro que ganhei como médico foi para pagar essas prestações.
Em Setembro, um emocionado e restrito grupo de amigos e namoradas foi despedir-se dos dois viajantes ao aeroporto de Lisboa. Como tínhamos pressa, decidíramos fazer o trajecto entre Portugal e Atenas de avião, assim não perderíamos tempo a atravessar a corriqueira Europa. Daí para a frente, sim, o caminho seria feito overland, a pé, usando os meios de transporte indígenas que surgissem: comboio, camionetas, boleia; camelo, se assim estivesse escrito! E lá fomos nós, crivados de vacinas e advertências, de mochila às costas, sem um mapa, uma máquina fotográfica, um plano concreto de viagem – destinação Índia, o resto logo se veria. O Rui, o meu determinado companheiro de viagem, ia à procura do Deus que não encontrava por cá, quanto a mim, as minhas finalidades eram mais confusas e Deus não me interessava por aí além... Acho que, em todo este empreendimento, fui apenas um turista exótico.
De Istambul, num café com vista para Santa Sofia, remexendo um chá demasiado açucarado, escrevi ao meu pai um postal a informar que já passara além da Grécia. Fiz o mesmo de outros locais cuja simples menção arrepiava quem ficara: do Irão, que dava então pelo bonito nome de Pérsia; de Kandahar, no Afeganistão, onde o Bin Laden ainda não se atrevera por não ter idade para isso; da instável e perigosa Lahore, no Paquistão.
A Índia, vista de perto, não nos cativou como estávamos à espera, de modo que, ao fim de uma semana a ver os abutres rodarem em círculo no céu de Nova Deli sobre a nossa camarata ao ar livre no terraço da Skyway Guest House, apanhámos um comboio a carvão para norte, uma viagem rondando os mil km por entre planícies infinitas, charcos de água onde boiavam búfalos e mergulhavam pássaros; vistas de mulheres, de vestes coloridas, serpenteando por estreitas veredas traçadas em campos de cereais sem fim à vista. Cobertos de fuligem, sentados sobre os sacos de serapilheira que atulhavam um camião de caixa aberta, subimos o vale de Kathmandou por entre rododendros em flor, a flor nacional do Nepal como percebi pela efígie nos maços de tabaco. Sim, a cidade dos mil templos, considerada muito perigosa, era outra coisa e estar ali era como estar com os pés assentes na terra e a cabeça já em pleno céu, um céu onde os cumes nevados eram mais altos do que as nuvens.  
"Pareces um velho pastor de ovelhas grego",
comentou a Marie Jo ao ver a foto.
Porém, o mais perigoso em todo o Oriente, foi, para nós, sempre o invisível, aquilo que nunca vimos, desde os percevejos que nos chupavam o sangue mal apagávamos a luz, às bactérias que, exuberantes de toxinas, nos dançavam nos intestinos. Do tempo total de viagem, uma fatia não despicienda foi passada, dobrados ou de cócoras, nas soturnas e imundas retretes asiáticas, revolvendo-nos em vómitos, desfazendo-nos em merda. E era ver-nos, nas breves paragens de ininterruptas viagens de autocarro que duravam dois ou três, a deixar apressadamente os veículos de cada vez que estes paravam nas horas que Meca recomenda aos crentes: os nossos companheiros estendiam os tapetes de reza e prostravam-se a Alá, os dois incréus de pele clara, acocorados a distância respeitosa, gemiam a deuses mais rasteiros...
Leves de espírito e muito mais de corpo, regressámos ao lar sem aviso, já o mês do Natal ameaçava e, recordo-o como se fosse ontem, entrei em casa dos meus pais à hora do meio-dia. A porta de trás estava entreaberta e, de costas, a minha mãe passava louça por água na banca da cozinha.
“Será que há almoço para mim?”, perguntei, e, na surpresa e brusquidão do movimento de se voltar, a minha mãe estilhaçou uma porcelana clara no mosaico preto e branco do chão da cozinha.


© Fotografias, de cima para baixo: (1) Beatles na Índia, 1968, fotógrafo ignorado; (2) Hospital de Kathmandou, 7 Novembro 1976, foto de Luc Laurent; (3) Mosteiro de Kopan (Nepal), Novembro 1976, não me recordo do nome do fotógrafo, mas era sueco e fazia trabalhos para a Vogue.
   

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