A 14 de Fevereiro de 1968, os Beatles
partiram para a Índia, em parte arrastados por George Harrison que, já há algum
tempo, se interessava quer pela filosofia e religião hindu quer, mais
especificamente, pela complexa e sofisticada música clássica indiana. Aliás, já
em dois discos que antecederam essa viagem (Revolver,
de 1966, e Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, 1967) se deixam ouvir os
sons de tablas e cítaras.
Contas feitas, os Beatles permaneceram
no país apenas dois meses, mas as canções que compuseram por lá (quase todo o
duplo White Album, 1968) e a onda de
influência que essa experiência teve ainda hoje vibram pelo universo...
Eu que o diga, que acabei por ir lá
parar na peugada disto tudo. Em Fevereiro de 1968 tinha catorze anos e não
podia fazer mais do que babar-me de deslumbramento com os caminhos que os meus
músicos preferidos exploravam, com os ecos, amplificados e distorcidos pelo
mito, que nos chegavam à pasmacenta cidade do Porto. Mas oito anos volvidos, em
1976, já conseguia deixar crescer um bigode, já decidia por mim, mesmo que isso
pudesse significar uma ruptura familiar.
Desde que me lembro, e por determinantes
que não consigo precisar, o Oriente exerceu um tremendo fascínio sobre mim, a
Índia em particular e, na infância, a minha imaginação reagia com fervor a cenários
com encantadores de serpentes, cordas mágicas, faquires que acomodavam a sesta
em camas de pregos, cadáveres boiando Ganges abaixo. Depois, vieram os anos 60
e explodiu um novo ressurgimento da Índia de que os Beatles, mas não só, foram
uns dos principais culpados. É cíclica esta atracção do frenético Ocidente pelo
imperturbável Oriente. No final do século XIX, início do século XX, houve febre
semelhante e a pintura impressionista, por exemplo, é moldada na influência da
pintura japonesa, assim como são impressionadas pelo oriente a literatura, a poesia europeia e, apenas citando
exemplos caseiros, podemos encontrar vestígios do velho fascínio em Pessoa, em
Mário de Sá Carneiro... Eça de Q., esse, fez e desfez malas na poeira do Levante...
Assim, quando naquele escritório, me
zanguei com o meu pai, não foi só por me sentir traído na promessa que ele
fizera de me financiar uma viagem de fim de curso “onde quiseres”. Sentia-me
também atrasado, sufocado, preso num cantinho onde os dias se repetiam quando tudo estava a acontecer lá fora! Porra,
será que era assim tão difícil entender? E agora, que me preparava mentalmente
para partir com a consciência de ir já agarrado à cauda do cometa, ainda tinha de
me debater com detalhes destes?! Dinheiro?!
Da esquerda para a direita: Marie Jo, eu, e Rui. |
Para além dos sete contos (35 euros) do meu pai,
o meu tio Mário oferecera-me, pelos meu recente sucesso académico, uma bela nota de
100 dólares, mas nada disso chegava. Para, digamos, três ou quatro meses de
viagem, nada menos do que uns 50 contos (uns 250 euros). Bati à porta da
família, mas como toda a gente estava a par do conflito e das minhas ideias
loucas, levei delicadamente com os pés, as recusas irritantemente temperadas
com um futurista “um dia ainda me hás-de agradecer”.
Acabei por conseguir o financiamento
junto de alguns amigos que admiravam o projecto e o primeiro dinheiro que
ganhei como médico foi para pagar essas prestações.
Em Setembro, um emocionado e restrito grupo
de amigos e namoradas foi despedir-se dos dois viajantes ao
aeroporto de Lisboa. Como tínhamos pressa, decidíramos fazer o trajecto entre
Portugal e Atenas de avião, assim não perderíamos tempo a atravessar a
corriqueira Europa. Daí para a frente, sim, o caminho seria feito overland, a pé, usando os meios de
transporte indígenas que surgissem: comboio, camionetas, boleia; camelo, se assim estivesse escrito! E lá fomos nós, crivados de vacinas e advertências, de mochila às costas, sem um mapa,
uma máquina fotográfica, um plano concreto de viagem – destinação Índia, o resto
logo se veria. O Rui, o meu determinado companheiro de viagem, ia à procura do
Deus que não encontrava por cá, quanto a mim, as minhas finalidades eram mais
confusas e Deus não me interessava por aí além... Acho que, em todo este
empreendimento, fui apenas um turista exótico.
De Istambul, num café com vista para
Santa Sofia, remexendo um chá demasiado açucarado, escrevi ao meu pai um postal
a informar que já passara além da Grécia. Fiz o mesmo de outros
locais cuja simples menção arrepiava quem ficara: do Irão, que dava então pelo
bonito nome de Pérsia; de Kandahar, no Afeganistão, onde o Bin Laden ainda não se atrevera por
não ter idade para isso; da instável e perigosa Lahore, no Paquistão.
A Índia, vista de perto, não nos
cativou como estávamos à espera, de modo que, ao fim de uma semana a ver os
abutres rodarem em círculo no céu de Nova Deli sobre a nossa camarata ao ar
livre no terraço da Skyway Guest House,
apanhámos um comboio a carvão para norte, uma viagem rondando os mil km por
entre planícies infinitas, charcos de água onde boiavam búfalos e mergulhavam pássaros; vistas de
mulheres, de vestes coloridas, serpenteando por estreitas veredas traçadas em
campos de cereais sem fim à vista. Cobertos de fuligem, sentados sobre os sacos
de serapilheira que atulhavam um camião de caixa aberta, subimos o vale de
Kathmandou por entre rododendros em flor, a flor nacional do Nepal como percebi
pela efígie nos maços de tabaco. Sim, a cidade dos mil templos, considerada
muito perigosa, era outra coisa e estar ali era como estar com os pés assentes
na terra e a cabeça já em pleno céu, um céu onde os cumes nevados eram mais altos do que as nuvens.
"Pareces um velho pastor de ovelhas grego", comentou a Marie Jo ao ver a foto. |
Porém, o mais perigoso em todo o Oriente,
foi, para nós, sempre o invisível, aquilo que nunca vimos, desde os percevejos que nos chupavam o sangue mal apagávamos a luz, às bactérias que, exuberantes de toxinas, nos dançavam nos intestinos. Do tempo total de
viagem, uma fatia não despicienda foi passada, dobrados ou de cócoras, nas soturnas e imundas retretes asiáticas, revolvendo-nos em vómitos, desfazendo-nos
em merda. E era ver-nos, nas breves paragens de ininterruptas viagens
de autocarro que duravam dois ou três, a deixar apressadamente os veículos de
cada vez que estes paravam nas horas que Meca recomenda aos crentes: os nossos
companheiros estendiam os tapetes de reza e prostravam-se a Alá, os dois
incréus de pele clara, acocorados a distância respeitosa, gemiam a deuses mais
rasteiros...
Leves de espírito e muito mais de
corpo, regressámos ao lar sem aviso, já o mês do Natal ameaçava e, recordo-o
como se fosse ontem, entrei em casa dos meus pais à hora do meio-dia. A porta
de trás estava entreaberta e, de costas, a minha mãe passava louça por água na
banca da cozinha.
“Será que há almoço para mim?”,
perguntei, e, na surpresa e brusquidão do movimento de se voltar, a minha mãe
estilhaçou uma porcelana clara no mosaico preto e branco do chão da cozinha.
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Beatles na Índia, 1968, fotógrafo ignorado; (2) Hospital de Kathmandou, 7 Novembro 1976, foto de Luc Laurent; (3) Mosteiro de Kopan (Nepal), Novembro 1976, não me recordo do nome do fotógrafo, mas era sueco e fazia trabalhos para a Vogue.
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