25 setembro 2013

PREVENÇÃO RODOVIÁRIA


Dado que os sonhos de uns são os pesadelos de outros, a Índia fará os horrores de qualquer zeloso vigilante de Prevenção Rodoviária e as delícias de qualquer um fabricante de motorizadas.
Por aqui, a motorizada preenche o lugar que o automóvel ocupa no ocidente. Claro que também há automóveis, e muitos, mas não se comparam com o número de motorizadas que, suponho, terão alcançado aqui a supremacia por serem bastante mais baratas e o país ainda pobre.
Sair para andar como peão pelas ruas de Udaipur (apesar de tudo cidade bastante sossegada e com apenas meio milhão de habitantes), é ter de adoptar de imediato a clássica regra da fila indiana. É impossível andar aos pares ou lado a lado pelas ruas, sendo forçoso caminhar em permanência colado à berma para evitar o risco de se ser atropelado por uma mota ou um rickshaw motorizado! Em abono da verdade, deve ser afirmado que os condutores desses velocípedes conduzem em permanente estado de alerta e apitam, a cada dez metros percorridos, para avisar da sua presença, o que tem como efeito secundário tornar as ruas num emaranhado ruidoso.
No princípio isto pode ser algo perturbador para o turista, mas, depois, a gente habitua-se à realidade local e a seguir as suas regras. Se até as vacas, sagradas e tudo, o fazem e se acostumaram a tocar a sua pachorrência ao longo das bermas!
Imaginemos então o nosso vigilante rodoviário, em férias mas sem conseguir abstrair-se da queda para a normatização do mundo, resgatado após ter escapado a ser atropelado na Lal Gate (uma das ruas mais movimentadas de Udaipur), sentado numa tranquila esplanada. Agora que pode observar o trânsito em sossego, não tarda a reparar, horrorizado, não haver um único condutor de velocípede de duas rodas que use o devido, o obrigatório, capacete protector! Um único, nem sequer a criancinha que segue sentada no depósito de combustível da motorizada, alegremente agarrada ao guiador e observando o trânsito de uma posição privilegiada! Mas!... eis que o nosso vigilante vizinho de mesa se dá conta que naquela motorizada, aquela outra que acabou de passar, seguiam três pessoas: mais uma das tais criancinhas escarrapachadas à frente do condutor e, na parte de trás, sentada à amazona, com o sari perigosamente esvoaçante – e em risco de se enrodilhar – sobre os raios da roda posterior, a putativa mãe da dita criancinha, com as mãos em repouso no colo, sem sequer se tentar agarrar às costas do provável marido!

Nervoso, surdo às invectivas da esposa que lhe relembra não estar ele em Bruxelas e, portanto, fora de jurisdição sobre o que se passa no Rajastão, o nosso comissário gesticula ao empregado e pede um chá de gengibre, mais do que por sentir sede para manter as mãos, de que entretanto começou a roer as extremidades, ocupadas. Uns minutos mais tarde, quando, sentindo-se melhor, levanta os olhos da chávena, vê passar uma desenfreada moto não com três, mas com quatro pessoas!: a) Nenhuma delas usando capacete, b) duas delas sem idade legal para andar em tal tipo de veículo e, c) nenhuma delas sentadas na parte de trás do...
Ainda o sol não se pôs sobre as águas e já o honorável funcionário antecipou o regresso ao seu hotel não sem antes poder ter evitado ver desfilar perante os olhos um velocípede de duas rodas transportando cinco pessoas, aparentemente um inconsciente núcleo familiar a caminho de qualquer exótica celebração.  
© Fotografias de Pedro Serrano, Udaipur (Índia), Setembro 2013.

24 setembro 2013

23 setembro 2013

ACORDAR PARA UM SONHO


O quarto tem quatro janelas, todas dão para o lago. Aliás, se me resolvesse a saltar por qualquer uma delas cairia directamente na água, sem necessidade de impulso adicional no salto. Cenário mais veneziano é impossível imaginar.
Por isso, à noite, as cortinas que as cobrem (não há portadas ou estores) permanecem puxadas para trás e, deitado na cama, posso ver ao rés dos olhos a superfície cintilante ao luar. É reconfortante fazê-lo antes de adormecer e fascinante despertar a meio da noite e dar conta disso.
Hoje, pelas seis da manhã, acordei com a suave claridade de uma madrugada ainda tímida e, sabendo que duas horas depois a luz será brutal, levantei-me para fechar as cortinas. Eis o que, flutuando no meio das águas, estava diante dos meus olhos.
Agora é um hotel (caríssimo) da prestigiada rede indiana Taj, mas em 1741 foi construído para residência de verão do marajá local, aproveitando uma ilha do lago. É que Udaipur, no Rajastão, em pleno centro da Índia, rodeado de montanhas e com um deserto nas proximidades, pode ser um inferno de calor e nada como sofrer a canícula no meio da água.

© Fotografia de Pedro Serrano, Udaipur, Setembro 2013.

22 setembro 2013

BLUE JASMINE


Blue Jasmine (2013), a última realização de Woody Allen é um filme frouxo, como tem sucedido com todos aqueles que realizou após o excelente Vicky Cristina Barcelona (2008), filme onde Penélope Cruz dá uma lição de representação a Scarlett Johansson e a faz mirrar no ecrã desde o momento em que nele a espanhola aparece pela primeira vez.
Vi Blue Jasmine (por falar nisso: Jasmine é o nome da protagonista e blue refere o seu estado de espírito, mais do que uma cor) na véspera de apanhar o avião para Nova Deli, de modo que não consegui deixar de associar a imagem da fotografia ao filme, passo a descrever os detalhes.
Estávamos sentados na esplanada do Little Prince, um modesto café sobre o Pichola muito recomendado nos guias turísticos, que se encontra separado de outro café com características semelhantes (o Jasmine) somente por um tranquilo templo hindu, guardado e cuidado por umas mulheres que parecem viver lá dentro e às vezes lavam roupa em frente ao portão do templo.

Então, de súbito, levantei a cabeça e reparei na pose melancólica daquela loura sob o letreiro azul que anuncia o outro café e tudo se fundiu na minha mente. Peguei na máquina e disparei à quase queima-roupa, pois momentos daqueles não se repetem num mesmo lugar.

© Fotografias de Pedro Serrano, Udaipur, Setembro 2013.

20 setembro 2013

A VOZ INAUDÍVEL


A minha mãe não estava em casa quando cheguei. Ao perguntar, a minha avó disse que acabara de sair, tinha ido lavar roupa. Informei-a de que iria ao seu encontro.
“Vai e volta com ela”, respondeu a avó.
Encontrei-a no seu sítio preferido, os quais não eram os degraus que nasciam em frente à porta do templo abandonado e desapareciam na água (e onde tantas vizinhas preferiam enxaguar a roupa), mas sim na pequena plataforma por baixo da figueira sagrada. Havia ali uma brecha no muro, um único degrau e depois o rectângulo de pedra ao rés da água. A figueira era já velha o suficiente para criar um manto de sombra sobre a água e, como por súplica atendida, o tronco crescera um tanto inclinado sobre a superfície do lago, o que adoçava a inclemência do sol do meio-dia.
Ainda antes de a ver – nessa altura o muro caiado de amarelo que bordejava a água crescia-me até tapar o nível do olhar – ouvi o barulho ritmado da espátula a bater a roupa ensaboada. Quando me descobriu a espreitá-la pela brecha do muro, a minha mãe fingiu não me ver por uns momentos e continuou a assestar a espátula na roupa amarfanhada. Mas eu conseguia perceber no seu olhar, escondido sob as felpudas pestanas descidas, o lampejo travesso de quem se preparava para saudar a minha chegada.
Nesse fim de manhã, ela vestia as calças com a cor da água de beterraba e uma camisa açafrão que lhe descia até aos joelhos, sobre a qual flutuava um véu azul-fumo, quase transparente, que se lhe ia repuxando da cabeça pois uma das pontas boiava na água e ganhava contrapeso.
Sem deixar de bater a roupa com a espátula de madeira, rápida como um esquilo quando se assusta, a minha mãe meteu os dedos no balde de latão e salpicou-os na minha direcção, pregando-me uma surpresa molhada.
“Julgavas que não te via? Anda, que te lavo a roupa e te dou banho para que não sujes o lago...”
Despi-me rápido como o trovão e, antes que chegasse a minha hora, chapinhei na água verde enquanto a minha mãe estorcegava os meus calções como se estivesse zangada com eles. Será que me ia esfregar a cabeça com o mesmo furor? Tremi de antecipação.

“Agora já podes abrir os olhos...”, disse a minha mãe após me despejar vários cantarilhos de água sobre o cabelo empastado no sabão azul e branco que purificara os meus calções.
Durante a lavagem, para evitar o ardor do sabão, mantivera a cabeça esticada para trás e quando descruzei as pálpebras vi tremeluzir sobre mim, como fantasmas que deixava no meu regresso ao mundo, as manchas de luz que, aprisionadas na folhagem da figueira, faiscavam do céu branco.
Olhei para a minha mãe que, ainda acocorada sobre a pedra ao rés da água, me estendia uma mão enevoada onde se pendurava uma camisa encharcada.
“Veste-te, que vamos voltar...”, disse, começando a empilhar a roupa lavada no alguidar.
Agora passaram sessenta anos, vivi quase toda a minha vida de adulto no outro lado do mundo, levo dois dias de avião mal dormidos para chegar aqui. Na borda do lago fizeram um hotel com os restos da moradia de um nobre do local.
Do terraço, à distância de vinte passos, está a figueira sagrada, a brecha no muro e o degrau que a minha mãe descia para lavar a roupa. O templo abandonado mantém-se serenamente abandoado; mulheres continuam a lavar a roupa,  usam agora sabonete líquido em embalagens individuais e os alguidares são de plástico, as mesmas espátulas de madeira ecoam no ar. A cor do muro ao longo do caminho desbotou, mas ainda se percebe uns restos de amarelo nas extensas cicatrizes acinzentadas do estuque. Quanto à figueira, não consigo ter a certeza se cresceu ou não nestes anos todos... É óbvio que as garças brancas que se empoleiram nas ramagens da copa serão outras, que uma garça não dura seis décadas. Mas a árvore... Parece-me exactamente a mesma de há sessenta anos, mas talvez isso esteja somente preso à circunstância de, nesses dias, os meus sentidos a fazerem maior por ainda não ter crescido até à dimensão em que, apesar dos olhos bem cerrados, vejo agora tudo pela voz inaudível da memória.   

© Fotografias de Pedro Serrano, Udaipur (Índia), Setembro 2013.  
  

18 setembro 2013

POVO QUE LAVAS NO RIO


Estranha, esta obsessão em assentar degraus que vão apenas dar à água. No entanto, a leve perturbação, o tom quase mágico que assume deparar com um pavimento que se torna fluido sem transição vem talvez da ligação imediata que se estabelece entre os dois elementos: terra e água – deixar um para desaparecer no outro.
Não que na Europa isto não se veja, mas aqui, na Índia, a presença de escadarias submersas surge com a regularidade, a necessidade de paragens de autocarro...
Em Udaipur, cidade debruçada sobre um lago, os ghats (nome dado a estas escadas que se perdem na água) são muitos e basta cismar por uma hora ao pé de um deles para se lhes perceber a importância na vida quotidiana dos indianos. Estes tipos têm uma relação especial com a água que, como em qualquer outro lado, possui uma qualidade purificadora, toda a gente está a par desta psicologia básica. Acontece que o conceito ganha aqui uma intensidade e uma prática que não se vê noutros cantos do mundo.
Todos os dias, do nascer ao pôr do sol, os ghats, ou as suas redondezas, são visitados por um corrupio de pessoas: gente que, com o alívio que suponho similar ao de uma confissão bem esgalhada, se purifica esbanjando água sobre si ou sobre a própria água do lago de onde acabou de a retirar; gente que se banha simplesmente para se lavar; gente que lava a roupa; gente que concentra tudo isto em actividade integrada.
Habitualmente, se delas falarmos, as mulheres acocoram-se nos últimos degraus, pondo manchas de cor viva sobre o mármore esbatido pelo uso, e começam por esvaziar os baldes que traziam à cabeça e onde empilharam a roupa suja da família. Ensaboam-na conscienciosamente, estralejando-a em seguida com vigor e ritmo contra as pedras molhadas, tal antigamente se via fazer às lavadeiras em Portugal sobre o granito dos lavadouros ou a pedraria da margem dos rios. Depois enxaguam-na, estrangulam-na sem remorso e estendem-na  a secar um pouco nos balaústres em redor. Partirão antes que fique seca.
Em igual número são os homens, mas esses o que lavam é apenas a roupa que envergam, permanecendo em cuecas enquanto o fazem e lavando-se depois a si, usando como gel de banho e shampoo o mesmíssimo sabão azul e branco que usaram na roupa e, antes de deixar o local, vestindo, ainda molhada, a roupa que estiveram a lavar, opção que, para além de única, não se pode dizer seja de todo atoleimada ou desagradável sob um calor abrasador: ao fim de uma hora tudo estará seco e limpo.
As mulheres, essas, são mais discretas no processo de se banharem e não despem uma única peça de roupa, a não ser para a substituírem por outra. Imergem-se na água ou vão regando o corpo com um pucarinho de plástico, lavando-se a prestações e controlando com o olhar a curiosidade em volta. Só as miúdas pequenas, teoricamente ainda a salvo do desejo, esbracejam, espolinham e mergulham, felizes e quase desnudas, como se o mundo ainda não se tivesse dividido em dois.
© Fotografias, de cima para baixo: (1), (2), (3) Pedro Serrano; (4) Ana Rodrigues. Udaipur, Índia, Setembro 2013.