31 março 2011

28 março 2011

Entretanto em Cabo Verde...

Entretanto na cidade da Praia, enquanto espero por um prego-em-pão, o meu olhar, bêbado do azul que o mar sempre reflecte quando em presença excessiva, topa em duas rodas sobrepostas, cinzeladas em pedra vulcânica, claramente uma mó de moinho. Quando a menina se chega com o prego e o Sumol de ananás, pergunto:
"Foi mesmo de um moinho ou é só uma imitação?"
"Foi mesmo de um moinho, ela já funcionou, mas agora está aqui como recordação", respondeu  numa língua espantosamente semelhante à minha, demorando um pouco os rr de recordação, que rolou na boca como um gorjeio de rola.
Depois, quando a pedi com o aceno do costume, trouxe-me um talão de conta em euros e em escudos caboverdianos. Paguei em euros - acabei de chegar ao país - e ela devolveu-me o troco em escudos.



© Fotografias de Pedro Serrano, Praia (Cabo Verde), Março 2011.

26 março 2011

À BOCA CHEIA

© Foto: Ana Rodrigues, Maputo (Moçambique), 2011.
Sob a placa azul-ultramarino da esquina da rua/
Como uma tal, outra qualquer, Florbela Espanca/
Afogada em milhares de beijos presos na garganta/
Debalde matei a minha sede por uma aparição tua/
Sob a placa combinada da esquina da rua...

20 março 2011

VOU-TE CONTAR: 33. Uma pálida sombra


 Era a última manhã desse mês de Agosto em Leça da Palmeira e seria também, embora nenhum de nós  o soubesse ainda, a última vez que alugávamos casa de praia em Leça. No Agosto seguinte, explicava a minha mãe à D. Gumercinda, que na barraca ao lado da nossa reflectia sobre o ponto de cruz:
“Talvez tentemos o Algarve, dizem que as praias são maravilhosas e a temperatura da água do mar imbatível...”
A D. Gumercinda, esposa do Dr. Rufino, já ouvira falar de todas essas amenidades, mas, com os relatos do Algarve, chegara-lhe também o rumor de que os modos eram mais livres nas praias do Sul, cheias de estrangeiros do Norte da Europa, o que lhe causava temor na influência que poderiam ter sobre a Gracinha, a filha adolescente.
O dia amanhecera condizente com um último dia, uma despedida. Intermitente, a ronca bramia como um cão abandonado e uma camada de névoa, da cor de água de cal, recuava a custo em direcção ao mar, revelando o vulcânico soturno das rochas que ladeiam a minúscula baía da Praia dos Beijinhos. A girar, perdido na bruma, o sol palpitava fraco, alumiando o horizonte de um azul anémico que mal sublinhava o contorno das nuvens que se esfiapavam no céu sob a nortada.
“Uma sombra do que foi!”, a minha mãe caracterizava o fim da época balnear à D. Albertina, que, encaixada numa cadeira de praia ao lado da cunhada, a D. Gumercinda, tricotava furiosamente, “já se sente o Outono no ar...”
Sentado na areia, dois metros à frente da minha barraca para sublinhar que não tinha nada a ver com aquela gente, eu cobria os pés com punhados de areia fina, enquanto esperava, numa disposição saturnina, que chegassem as raparigas das barracas da ala direita da praia.
Verão de 1967, no número um dos tops está a canção “A Whiter Shade of Pale”, dos Procol Harum. Fizera 14 anos, mal podia fazer a barba por falta de espaço para mover a lâmina entre as colinas de acne, e não podia andar mais nos baloiços da praia. Conhecera esse choque no Verão anterior quando, em Viseu, correra alegremente para a roda de cavalinhos de madeira do parque infantil, um local amigo em frente ao Hotel Grão Vasco. Mal dera lanço à roda e pusera em frenesi duas miudecas que vegetavam nos assentos, um guarda aproximou-se e, com uma pronúncia a frigir de sshs:
“Estáss a asssustar asss meninasss. Não achass que já éss demasiado matulão para isto?”
Agora, na Praia dos Beijinhos, onde não havia guardas nem nenhum cartaz afixado com o limite “12 anos”, não queria passar por humilhação semelhante. Segurava-me e limitava-me a olhar de lado o baloiço vazio, que continuava a chamar por mim no doce balanço habitual.
Entretanto, as raparigas tinham chegado. As barracas delas estavam agora tomadas por um frenesi de cestos, roupões, toalhas e sapatos espalhados. Assisti, impotente, em alerta súbito e com o coração a entupir-me a garganta, à pala frontal de uma das barracas a ser baixada: era o momento de elas vestirem os fatos de banho... Mas nada, elas calafetavam as frestas com todo o cuidado e já saíam cá para fora completamente artilhadas!
Começávamos por nos reunir em frente às barracas delas, muito mais do que às nossas, e ficávamos ali a jogar ao prego. Depois, à medida que as mães, as tias ou as empregadas se iam esquecendo de nós, íamos deslizando para a parte de trás das barracas, um corredor de localização sombria em que a areia estava sempre húmida e o ar cheirava vagamente a urina, pois era onde se iam aliviar os aflitos que não tinham tempo ou disposição para se deslocar uns metros até ao quarto-de-banho oficial da praia. Mas, apesar destes inconvenientes, o local era recoberto de vantagens: escapávamos por momentos ao controlo e coscuvilhice dos adultos, podíamos nós espreitar e controlar o que se passava na praia (escavando a areia e levantando um pouco do pano das traseiras da barraca) e, até, pelo mesmo método, assaltar as provisões de comida guardadas num canto do fundo da barraca. 
Mas, por muito que nos esforçássemos por tentar uma vida autónoma dos adultos, as nossas tentativas eram sistematicamente rebentadas pela rede que,  parecendo observar o mar, se entretinha com o que se passava em terra.
“Sabes que andei no colégio com a tia e a mãe da tua amiguinha...?”, esclarecia a minha mãe mal eu me aproximava da barraca para esperar a mulher que vendia os bolos e se aproximava pelo areal.
“Qual amiguinha? Não tenho amiguinha nenhuma!”
“Oh, retorquia ela numa simplicidade odiosa, “aquela lourinha engraçadinha com quem estiveste a manhã inteira a jogar o prego...”
Cabisbaixo, ficava por ali sentado, a verter punhados de areia nos tornozelos, olhando os pés como se fossem o fundo de uma ampulheta. Ao lado, a minha mãe, enquanto recebia da Clarinha o porta-moedas para pagar os bolos à vendedeira, comentava para a D. Gumercinda:
“De quem eu era mesmo amiga, era da tia dela, que andava na minha sala. A mãe, era dois anos mais nova, andava noutra turma, via-a mas nunca tive grande intimidade... Quem andava também no Colégio era uma prima direita delas, que morava em S. Mamede Infesta, uma beldade – metia as primas num chinelo. Olhe, estive anos e anos sem a ver, mas encontrei-a outro dia na Casa Tamegão, a escolher uma cafeteira italiana de café. Coitada, até me fez impressão: está um caco, uma pálida sombra do que era!”  


© Fotografias (de cima para baixo): (1) Leça da Palmeira, anos 60, fotógrafo desconhecido; (2) fotografia de Pedro Serrano, Praia do Titã (Matosinhos), 2010.
     
             "A Whiter Shade of Pale", Procol Harum, 1967.

13 março 2011

DALI VAI AO DENTISTA

Olham-me como se fosse um quadro numa exposição, dirigem-me uma qualquer variação consternada de:
“Coitado! Olha, espero que não sofras muito...”
O que eu tinha acabado de dizer era, somente, que dali ia para o dentista. Um local a que recorro seis ou sete vezes por ano e, isso é mais difícil de confessar, onde vou com um certo prazer existencial, pois é quase o único local do mundo onde nenhum dos meus problemas ou angústias fica por satisfazer. Saio sempre com uma necessidade satisfeita ou em vias de resolução e quem dera poder dizer o mesmo sobre tudo o resto! Compare-se, por exemplo, com qualquer repartição do Estado, na qual, diz-nos a experiência, vamos desperdiçar metade do dia e de onde sairemos (99 % de probabilidade) com o fardo de aí termos de voltar por causa do mesmo assunto, pois qual é o ser humano que tem na sua posse tudo quanto é necessário?!
Não me custa nada ir ao dentista e, para que – definitivamente – me arrumem nos casos vizinhos da insanidade, informo que faço 600 km de cada vez que preciso de ir... Enquanto aguardo que a estupefacção sedimente, deixem-me que conte tudo desde o princípio.
Depois de nascer sem eles, nasci com maus dentes e nesse tempo a dentuça não era objecto dos cuidados e precauções de hoje em dia; o flúor praticamente ainda não tinha sido inventado. Por outro lado, abusei dos açucares em todas as quatro formas da matéria: em pó e em torrões (sólido), por mel e compotas (pastoso), groselhas e refrigerantes (líquido) e toneladas de algodão-doce no Senhor de Matosinhos e Feira de S. Mateus (gasoso). Como resultado, ainda antes dos dez anos de idade tive um abcesso dentário e precisei ir ao dentista. Fui, confiante, como sucursal de uma consulta da minha mãe. Era ali na Rua Formosa e jurei que nunca mais ninguém me apanhava em tal cadeira.
A seguir fiquei em terra de ninguém, entregue a mim próprio, entre a guinada insuportável que pode ser uma dor de dentes e o pavor que é ver essa dor acarinhada por mãos pouco sensíveis. Andei assim anos, escondendo as dores para não ser levado ao dentista, tratando delas à minha moda, tomando carradas de analgésicos com nomes tão misteriosos e promissores como Optalidon, Saridon, ou Melhoral.
Viria a pagar caro toda esta ocultação e, agora já um homenzinho de sorriso acinzentado, tornou-se para mim muito claro que precisava de encarar os meus dentes como um empreendimento a longo prazo, era a única forma de tornar aquilo um mal menor.
Um dia, o meu primo Manel deu-me a dica de que uns colegas dele da Faculdade tinham trocado o curso de Medicina pela nova licenciatura em Medicina Dentária e estavam numa clínica no Amial, pouco mais de dez minutos a pé da casa dos meus pais.
Passaram 30 anos e a coisa correu tão bem que ainda lá vou. Entretanto, o mundo mudou: eles mudaram-se de uma casinha acanhada com uma recepção em cima da porta da rua para um luxuoso prédio de três andares com TAC na cave, eu mudei de casa duas vezes, a última das quais para 300 km do Porto e da clínica... Eles passaram dos dois ou três médicos do começo, da recepcionista assistente-e-tudo-o-mais-que-fosse-preciso, para uma equipa alargada de médicos e assistentes, e eu sofri nos dentes os efeitos singelos do tempo que passa, potenciados por uns tratamentos de quimioterapia e radioterapia. A todas estas mudanças nos fomos adaptando, eles e eu.
Foi já nas novas instalações que, em meados dos anos 90, procurei, a conselho médico, resposta para uns gânglios que me tinham aparecido na parte alta do pescoço:
“Começa por ir ao dentista”, disse-me um médico, “pode ser dentes. Às vezes há umas bactérias Gram-negativo que se infiltram por ali abaixo...”
Fui. Ao sítio do costume, sabendo que não me iam deixar sem resposta. Não deixaram. O dentista examinou com todo o cuidado os dentes que podiam estar na origem de gânglios naquela localização. Radiografou.
“Daqui não é nada.” Depois disse: “Deixa-me, num instante, ligar a um tipo da cirurgia plástica que conheço – eles lidam imenso com estas merdas...”
Fiquei sentado na cadeira, com um guardanapo de papel verde-esperança ao pescoço, vendo-o dar a volta por trás da secretária e pegar no telefone. Depois continuei a observá-lo enquanto ele ruminava uns “sim”, “pois”, “ah” e “estou a ver”. No meio desse diálogo, houve um momento em que ele, o meu dentista de quase vinte anos, me mirou com um olhar que se tinha modificado. Senti passar um anjo. Aí começou um longo caminho que acabaria no diagnóstico de um linfoma.
Findos os tratamentos, voltei para reparar os efeitos que as drogas e as radiações tiveram sobre a minha boca e, também dessas vezes, não saí de lá com os dentes a abanar.
Percebem-se agora os meus 300 km para ir ao dentista, por que digo que me sinto confortado quando lá vou? E, garanto, não estou a dourar nenhuma pílula: não me chegam os dedos das duas mãos para contabilizar as vezes que saí daquela cadeira a cuspir sangue, com a boca cheia de pontos e directo para um saco de gelo nas ventas.
Passaram os anos suficientes para poder olhar para este quadro com serenidade e me sentir grato àquela gente que, no fundo, também acha tão estranho um gajo fazer 600 km para ir ao dentista que fizeram de mim um caso especial e me recebem em qualquer dia e a qualquer hora em que apareça. O máximo que pode acontecer é ter de esperar um pedaço, mas aquela sala de espera contribuiu também para o meu aperfeiçoamento da virtude muito contemplativa e zen da paciência.
Um dia, o tipo que me costumava tratar, agora professor catedrático na Faculdade de Medicina Dentária, apareceu-me na orla da cadeira acompanhado de um jovem tímido:
“Este é o Paulo, vai começar a trabalhar connosco.”
Gradualmente, o Paulo passou a ser o meu dentista para todas as eventualidades. Tem uma paciência e um apego profissional iguais ao do seu mestre e de todas as vezes que o visito conversamos sobre o oriente, zona do mundo para onde ele e a mulher fogem sempre que podem. As nossas conversas oscilam entre sashimi e templos do sul da Índia, embora nalgumas delas seja mais ele que faz a despesa da conversação, pois eu, com a boca cheia de tubos e de chumaços de algodão, pouco mais posso do que grunhir, abanar ligeiramente a cabeça ou agitar no colo um indicador ou um polegar.
No início de alguma fase importante de intervenção ou tratamento, o Paulo vai chamar o meu antigo dentista para que dê uma opinião ou confirme um ponto de vista, o mesmo fazendo no final do processo para que o mestre veja como a coisa ficou. Quero com isto sublinhar que há ali um espírito e uma prática de equipa e que, embora cada um trabalhe no seu consultório, recorrem uns aos outros nas especificidades em que cada um deles se foi diferenciando. Este método de trabalho inclui também as assistentes e, por exemplo, nunca nada é decidido em termos estéticos sem se chamar a Maria do Céu, a mais antiga assistente da Clínica, que fica a olhar para a nossa boca fixamente, deixando toda a gente em pulgas pela sua opinião.
“Não, está branco de mais – vai parecer um piano! Ó Dr. Sampaio, não o vai deixar ir para a rua assim...”
E a tonalidade escolhida para os novos dentes, o brilho, a altura definitiva com que vão aparecer na boca foi decidida pelo olhar experiente da Maria do Ceú.
Depois há a Helena, a Mónica e sei que sempre que vou ser submetido a operação que implique sangria, corte de gengivas ou raspagem de osso a Helena vai aparecer para espreitar, pois como ela mesma me admitiu:
“Adoro, é a parte que eu gosto mais...”
Ultimamente, a clínica contratou a Maria João, uma morena-alourada de profundos olhos castanhos, e embora a rapariga ande por lá há relativo pouco tempo (3 anos) já se lhe nota distintamente a postura que é marca de água daquela gente: eficiência, simpatia e uma envolvência discreta no modo de se relacionar connosco e de nos fazer participar no que nos vai ser feito, qualidades que, por tão raras, me fazem sentir em casa.

© Fotografias e pontas das botas de Pedro Serrano, Porto, 2010.









12 março 2011

TSUNAMI







© Fotografias, de cima para baixo: (1) e (2) Pedro Serrano, Enoshima, 2006; (3) Ricardo Ventura, Enoshima, 2006; (4) Pedro Serrano, Tokyo, 2006.

08 março 2011

PESO RELATIVO


©Himalayan Academy Publications, Kapaa, Kauai, Hawaii.
Na Índia, a vaca é um animal sagrado. Era o transporte do deus Shiva e é, para os hindus, um animal puro. Não pode ser morta ou ferida e é-lhe permitido circular por onde muito bem entender sem ser incomodada.
Em consequência, há na Índia mais de 250 milhões de vacas a viver livremente. Em cidades como Nova Deli ou Mumbai (a antiga Bombaim, com dezassete milhões de habitantes), as vacas circulam alegremente no meio da rua, nas estradas e auto-estradas e os condutores, sem nunca perder paciência, contornam-nas como podem e o máximo que se permitem, quando o contornar se torna inviável, é exercer alguma pressão psicológica sobre elas, empurrando-as pela aproximação do veículo ou, se o método falha, sair do carro e enxotar brandamente o bicho à mão. Cientes do seu estatuto, durante todo o processo elas mantêm uma pachorrentice hippie, fitando o interlocutor com uma plácida expressão de táss bem e dando a entender que talvez se movam quando lhes apetecer.
A única excepção territorial a esta veneração é Goa, ou não tivessem lá estado os portugueses quase quatrocentos anos, onde a carne de vaca integra a ementa dos restaurantes especializados em cozinha goesa, uma gastronomia muito respeitada na Índia e na qual a influência portuguesa refogou tão fundo que existe um equivalente da cabidela (o sarapatel).
Mas não se pense, lá porque se pode meter um cutelo no cachaço do bicho, que a vaca é maltratada em Goa ou que circula ali em menor liberdade do que no resto do país. Não, andam por todo o lado, incluindo a praia onde, com alguma sorte, é possível vê-las a abrigar-se do sol intenso sob o guarda-sol de algum turista, cuja expressão oscila entre o siderado e o aterrado.
Um fim de tarde, deitados nas nossas espreguiçadeiras, estávamos muito reflexivamente a olhar o pôr do sol sobre o mar Arábico, quando entrou no nosso campo de visão, tapando o astro por momentos, uma vaca, conduzida por dois rapazes. A cena era tão National Geographic Magazine que me apressei a pegar na máquina fotográfica e a disparar. A vaca foi passando, eu fiquei ali a meditar a que propósito serviria aquele grande pedaço de madeira que o animal levava pendurado sob o pescoço, como se fosse uma canga no local errado, e que lhe emprestava um andar tão cabisbaixo...
Pragmáticos, os deuses indianos, responderam à minha interrogação com rapidez e recorrendo a exemplo prático, o que evidencia que, apesar dos quatro ou cinco milhares de anos que já levam, se têm adaptado às modernas teorias pedagógicas. Menos de dois minutos depois, uma nova vaca surgiu no meu campo visual, caminhando na areia molhada como a anterior e, tal como a outra, seguida de dois rapazes que a conduziam. A única diferença notável era a de que esta nova vaca não tinha nenhum peso pendurado ao pescoço e movia-se leve como nos tempos de Shiva. Mas, de repente, algo mudou no andar pausado do quadrúpede e, sem motivo aparente, a vaca começou a acelerar o passo, depois a trotar e, em breve, galopava pela praia fora, obrigando os dois rapazes a uma correria inútil, pois ela deixou de os ter por completo em consideração. Apesar do pânico que se instalou entre as espreguiçadeiras, as cadeiras e as toalhas de praia, tudo acabou na beatitude que leva Goa a ter como slogan a palavra portuguesa sossegado. Após alguns zigzags pela areia fora e de ter apontado na direcção dos turistas, a grande vaca parou a meio caminho entre o mar e as esplanadas e ficou ali especada, a bovina mente talvez concluindo que, agora que o sol se afundara nas águas, já não era necessário resguardar-se em nenhum guarda-sol.
Esta acalmia vespertina tirou um grande peso dos ombros de toda a gente. 

© Fotografias de Pedro Serrano, Goa (Índia), Janeiro 2011.  







07 março 2011

QUEM VIU UM...




Sunset
Another sunset
I know it looks undistinguishable from the last 
but I remember the difference.

Richard Harris ("Slides", 1972)

Os livros de viagens sobre a Índia referem o pôr do sol em Goa como algo  especial, inesquecível. A gente duvida, pensa “pores-do sol, são pores-do-sol, quem viu um viu todos, são todos iguais…" Talvez que o jornalista de viagens que escreveu aquilo estivesse com um martini a mais ou em muito inseparável companhia, tornando aquele momento especial por razões que nada devem à astronomia.
Já tinha estado em Goa anteriormente, boquiaberto ao crepúsculo e ao mar Arábico, mas, desta vez, dei por mim a tentar caracterizar essa diferença, dado que pelas fotografias a gente não vai longe, ficam todas com ar de postal envernizado, significante para quem  envia, pois corresponde a uma emoção entrevista, mas indiferente para quem o recebe, que, distraidamente, dirá:
“Olha que postal tão giro eles mandaram da China…”, e pespega um ananás de plástico magnetizado mesmo sobre o sol ao colá-lo na porta do frigorífico, entre a  receita de Quiabos à Moda do Caxito e a lembrança “levar botas ao sapateiro”.
Fique sabendo que o pôr do sol em Goa é mesmo especial. O sol  cai depressa, como em África, mas deixa-se olhar de frente, sem óculos escuros ou mão em pala, perfeitamente redondo e circunscrito no seu halo, depois alastrando a tudo em volta com uma luz que vai progredindo do laranja feliz para o vermelho de incêndio renascentista e se esvai num amarelo-sépia prateado que a lua cheia nascente, que lhe dá lugar em palco, agradece com um sorriso ainda tímido.
Quem pintou bem isto do pôr-do-sol foi um senhor inglês chamado Richard Harris, actor de cinema e cantor, numa canção chamada “Slides”, que deixo aqui com uma vénia ao U Tube.



© Fotografias de Pedro Serrano, Goa (Índia), 2011.

06 março 2011

VOU-TE CONTAR: 32. Os cotovelos de Maria



Ontem à noite fomos ao centro paroquial, pegado à igreja de Leça, ver um filme. Estava a sonhar com isso quando a Maria me acordou naquele jeito bruto de chamar o meu nome aos berros, destapar-me e puxar-me pelos pés. Deu cabo de tudo e o sonho evaporou-se tão depressa que, embora tenha ficado na cama uns bons minutos a remoer, não consegui lembrar-me mais do que me estava a acontecer nele.
Chateado, levantei-me e abri as portadas. Olhar lá para fora foi igual a estar a ver através de um copo de leite frio! Um nevoeiro grosso não deixava ver mais do que o outro lado da rua e um cão amarelo a olhar-me do passeio com aquele ar desolado que os cães às vezes têm.
“Nem sequer se vai poder sair”, gritei em direcção ao corredor, “para que têm a mania de me acordar tão cedo?!”
Não obtive resposta ou porque não ouviram, ou porque não me ligaram e, então, resolvi explorar a profundidade daquele silêncio o que me permitiu cortar uma gorda lasca de goiabada sem ser apanhado de imediato. Ainda a engoli-la, corri para o quarto de banho e lavei os dentes sempre a olhar pelo espelho. Consegui acabar antes e, quando a minha mãe entrou a dizer “ah, estás aqui”, já eu tinha fingido que lavara a cara e estava a secá-la na toalha.
“Pus roupa no teu quarto. Veste-te e arranja as tuas coisas, que vamos para a praia no fim do pequeno-almoço.”
“Mas não se vê nada lá fora, vai estar um gelo!”
“Não vai nada, é só uma ponta de nevoeiro – vai levantar. Ouvi no rádio, dizem que vai estar um dia fantástico...”
Vesti-me e fui despejar o resto de água de mar do baldinho azul: o camarão desapareceu logo, mas o peixe ficou ali a nadar como se estivesse num aquário com forma de retrete. Mijei-lhe em cima e puxei o autoclismo – com sorte, se o mijo não o intoxicasse, ainda ia parar outra vez ao mar. Meti a toalha, o balde, a pazinha, o espelho da Clarinha e o meu canivete no saco e fui ter com elas à cozinha onde já estavam todas sentadas à mesa a falar e a comer grossas fatias de regueifa com manteiga.
“Quero regueifa com goiabada”, pedi.
Quando saímos desta casa e a porta se fecha, a mão de metal que se usa para bater e chamar dá sempre um safanão e bate à porta, o que me faz impressão, pois é como estar a bater a uma casa onde já sabemos que não está ninguém! A quem pode ser dirigido tal batimento que não seja a um ser invisível, tipo bruxa?! Mas, era o que queria dizer quando falei nisso, logo que a porta se fechou sobre nós senti subir pelo nariz aquele cheiro que, em dias especiais, vem directo do mar e parece uma mistura de nortada, sal e algas. A minha mãe disse:
“Olhem só este cheiro a maresia! Faz-me sempre lembrar quando era menina e ia para a Barrinha de Esmoriz... Dizem que tem muito iodo!”
E como eu me detivesse uns metros mais abaixo, a fazer umas festas no cão amarelado, ela espicaçou-me:
“Vá, anda, olha que a maré vai estar vasa...”
E a minha irmã Clarinha, que é uma estúpida e tem de repetir tudo o que se disse, acrescentou:
“Anda, olha que a maré vai estar vasa...”
Demorámos imenso tempo de casa à praia, dá-se mesmo conta disso aos fins de semana quando vamos no carro do meu pai e é um instante. A pé, temos de descer a rua toda, chegar à avenida marginal, virar à direita e percorrer toda aquela extensão de passeio até à praia dos Beijinhos, que é a penúltima antes da praia Azul aos pés do farol da Boa-Nova.
A minha mãe tinha razão e a maré está completamente vasa, o mar anda lá ao fundo, tão longe e misturado no nevoeiro que praticamente só se ouve. Deixaram-me ir para as pocinhas das rochas com a condição de ter muito cuidado e prometer que não molhava as mangas da camisola, tenho de a levar vestida pois ainda está frio para ir só de fato de banho. De qualquer modo, mandou a Maria estar por perto e ela fica ali na borda da água, sem fazer nada, a molhar os pés.
A maré vasa é o que eu gosto mais no mar, é quando se pode estar sossegado, apanhar estrelas do mar e bichos que não se esperam e ver as pocinhas com atenção; pode-se estar um dia inteiro só a ver o que há em duas ou três pocinhas, isto é, podia-se se depois a maré não começasse a encher! Há muitos tipos de pocinhas, umas são minúsculas outras enormes, umas rasas e outras fundas, umas quase só tem areia e água, outras têm tanta coisa como se fossem um mar inteiro. Destas, as melhores são as que estão mais no meio das rochas, já encostadas às últimas pedras antes do mar aberto. São as melhores, mas as que metem mais medo lá estar. De repente é como se o mundo todo desaparecesse e estivéssemos sozinhos com um mar que está ali a lamber as rochas todo ajuizado, mas que se pressente ser fundo e não acabar mais. Daqui, em pé, já só vejo até aos cotovelos da Maria.
De cócoras, com todo o cuidado, agarro-me com uma mão à ponta de uma rocha e espreito: em baixo, a uma distância mais curta do que a minha, começa o mar aberto. A água tem transparência na parte de cima, mas, se se olhar na vertical, fica rapidamente azul-escura e depois perde-se numa cor que parece negro mas nem é bem isso, é de ser tão sem pé. Quando bate na rocha e recua faz um ruído como se estivesse a chupar tudo, como um desentupidor gigantesco. Se não tivesse toda a cautela ou me desse a loucura de saltar, bastava um passo e tombava naquela água, morria. Há tantos sítios onde se pode morrer a qualquer momento! Dei um passo atrás, subi acima de uma rocha, olhei para trás e lá está a areia e a linha das barracas, às listas vermelhas e brancas, umas, às listas azuis e brancas, outras, também há verdes. Vejo a minha mãe lá muito ao fundo, percebo que é ela pois tem aquele chapéu esquisito e a minha irmã pequenina sentada no colo. Quanto à Maria, continua ali a chapinhar na borda da água, a olhar para o mar como se dali pudesse aparecer alguma coisa que lhe sirva! Podia afogar-me mil vezes que ela nem dava conta e o meu pai despedia-a num abrir e fechar de olhos!
Nesta rotação, quando baixei de novo os olhos, topei com uma poça maravilhosa, daquelas como gosto: funda, mas não que não tenha pé se entrar nela; sem areia, por estar longe do areal e o mar que a alimenta ser tão fundo que já não a consegue cuspir àquela altura; para além disso tem uma fenda na rocha, exposta ao sol, quase a rasar a linha de água. Sei bem que aquilo deve estar cheio de caranguejos, embora de momento não veja nenhum. Pudera, sentiram-me chegar, estão escondidos lá ao fundo, na sombra, à espera que me vá. Em total silêncio pousei o baldinho ao meu lado, abri o canivete e tirei o espelho do bolso: vou fazer incidir luz de sol concentrada na fenda da rocha até os pôr a ferver de calor e os obrigar a sair; prevejo uma boa caçada. Mas eles não se intimidam facilmente, a fenda é profunda e o canivete é curto, não vou arriscar os dedos nas pinças deles... Se, ao menos, tivesse aqui uma cana ou um arame... De súbito, vejo uma sombra escorregar da parede para o fundo da poça! Foi uma coisa rápida, tão camuflada, que fiquei na dúvida se terá sido uma nuvem que projectou sombra na água. Viro o pescoço, olho o céu por cima de mim: o nevoeiro evaporou-se, não há uma única nuvem, e o azul do céu é tão intenso e puro que o sinto entrar em mim pelo ar que me enche o peito e me torna leve, tal se os meus ossos tivessem virado pneumáticos como o das gaivotas que planam lá longe.
Quanto à sombra, por exclusão de partes, só pode ser um polvo e a minha sorte nunca foi tanta.  

© Fotografias, de cima para baixo: (1) Composição sobre fotografias de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca 2010 + Lisboa 2010; (2) Zé João Serrano, Goa (Índia), 2003.
  

04 março 2011

VOU-TE CONTAR: 31. Amanhã é longe de mais


Por ter sido o primeiro a tomar banho, consegui lascar uma fatiazita de goiabada entre a confusão dos banhos dos outros e a azáfama da preparação do jantar.
Agora estou aqui, sentado a uma ponta da mesa da cozinha, olhando atentamente o meu baldinho de praia, as pernas a balançar contra a trave do banco ao ritmo do cascalhar dos ovos a cozer.
O meu baldinho é o azul, no fundo tem alguma areia, dois búzios e uma lapa e, na água, gira loucamente um peixito de olhos esbugalhados e um camarãozinho transparente, de cor acinzentada, sobe e desce no balde como se fosse um cavalinho de carrossel. 
Pedi à Maria se ela me deixava cozer o camarão na água dos ovos, mas ela não deixou, diz que é um crime cozinhar uma coisa deste tamanho, que nem tem por onde ser comido. Mas a minha ideia não era comê-lo, era comprovar que iria ficar vermelho; quase não acredito que uma cor tão desanimada e com as tripas à mostra como esta fique com aquele bonito alaranjado dos camarões que vem à mesa na marisqueira do Senhor Henrique Torres, em Matosinhos e que faz o meu tio Rui perguntar sempre:
“Belos camarões, Sr. Torres, são da costa?”
Em seguida dá um gole profundo no fino, a mim espanta-me como é que a cerveja não lhe sobe ao nariz com tantas bolhinhas que engoliu de uma vez só.
Este fim de semana vamos lá encontrar-nos com os meus primos e tios, só que, desta vez, eles vêm de mais longe do que nós, pois a nós, que estamos aqui em Leça, basta-nos sair da casa, entrar no carro e atravessar a ponte nova. Depois, os meus primos ficam cá para Domingo e vamos todos para a praia. Os meus tios não, que não há camas para toda a gente, mas vêm cá ter à hora do almoço. Gosto sempre muito de ir por aquela ponte e acho que o meu pai gosta tanto como eu, pois fica todo entusiasmado (ao contrário da minha mãe que tem medo que o mecanismo possa – por contágio e avaria – emperrar e arrastar os carros) quando, subitamente, o semáforo fica vermelho e temos de parar para a ponte se abrir e passar um barco. Ali ficámos, a espreitar pela janela, a ver o chão da ponte a subir lentamente no ar e a mim faz-me impressão como é que uma rua onde a gente passa com o carro pode mudar tanto de posição em tão pouco tempo. 
Do lado de lá é logo o Mercado, depois a rua das confeitarias e, ao fundo de uma voltas, numa esquina, é a Marisqueira.
O que aprecio mais, quando vamos à marisqueira, nem é bem o marisco, de marisco só gosto de lombos de lagosta, que é a única coisa que não pica os dedos. O que gosto mais são os Grissinos que eles trazem para a mesa antes do resto e, enquanto toda a gente fica ali a martelar cascas e a esgravatar patas, levantarmo-nos para ir espreitar as santolas, sapateiras e lagostas a subirem umas por cima das outras nos grandes aquários que eles tem à entrada; e pensar o que poderia suceder se os elásticos, que mantêm as pinças dos lavagantes presas, rebentassem. Depois voltamos à mesa para comer um gelado, que ficámos a lamber a toda a volta enquanto vemos a dança que o meu pai e os meus tios fazem quando é preciso pagar a conta, pois cada um deles parece ter grande prazer em puxar da carteira antes do outro, em pôr a mão sobre a mão do outro quando ele a leva ao bolso do casaco onde deve estar a carteira e dizer verdades como:
“Ó Eduardo, olhe que eu até fico ofendido!”
Ao Sábado, a seguir ao mercado que “quanto mais cedo formos mais se apanham frescos”, vamos também à confeitaria, sempre a uma que é mais ou menos perto da casa da tia Lelé, irmã do meu avô Heitor. Estas confeitarias são a central, os sítios de onde partem os batalhões que vendem bolos na praia e, às vezes, até encontrámos lá a trabalhar uma das senhoras que costumámos ver, descalças e de avental, a percorrer a praia com uns armarinhos de lata azuis, com tampa, gavetas e gavetinhas onde os bolos estão arrumados por categorias.
Aqui, na confeitaria, a quantidade de bolos é tão grande que até fico tonto só de os ver acumulados nas vitrinas e montras, enquanto que na praia a gente tem de se concentrar imenso e ser certeiro na escolha quando a minha mãe, a meio da manhã, finalmente chama a senhora com um gesto e nos vai avisando:
“Olhem que só podem escolher um cada um!”
A senhora, numa cerimónia do género do Japão, ajoelha-se na areia em frente à barraca e nós aterrámos, também sobre os joelhos, em frente à arca do tesouro, ao mesmo tempo que, nas barracas do lado, miúdos vigiam de soslaio a nossa hesitação enquanto fingem que jogam ao prego.
E, embora saiba que podia comer hoje um tipo de bolo e amanhã outro e assim sucessivamente, amanhã é longe de mais e custa-me decidir entre uma bola de Berlim, um caramujo, um mil-folhas ou um pão-de-deus, que é maior, embora não tenha creme. 
A minha irmã Clarinha, que tem uma queda contabilística para assuntos de comida, pergunta:
“Mãe, se eu comer bolo também posso comer batatas fritas?”
“Já sabes que não”, responde a minha mãe, “é uma coisa ou outra...”
Ela não desiste logo, tenta:
“E se forem barquilhos? Posso comer bolo e, se aparecer o homem, barquilhos?” 
A nossa mãe bufa, diverge:
“Decidam-se, não veem a senhora aí à espera?”
Os miúdos da barraca a seguir já não disfarçam e levantam areia com os pés, como se fossem cavalos danados por desatar a galopar.

© Fotografias de Pedro Serrano, de cima para baixo: (1) S. Miguel (Açores), 2008 ; Lisboa, 2003. 

01 março 2011

VOU-TE CONTAR: 30. A estação das bruxas


When I look over my shoulder
What do you think I see?
Some other cat looking over
His shoulder at me.

Donovan (Season of the Witch, 1966)

Nesse tempo havia bruxas em todo o lado. Não em permanência, graças a Deus, mas cumprindo um equilibrado sistema de permuta. Por exemplo: assim que nós começávamos a fazer malas para ir para a casa de Viseu, passar todo o mês de Setembro, as bruxas da casa de lá começavam a fazer as malas para virem ocupar a nossa casa mais antiga no Porto durante um mês.
O mesmo acontecia quando se iniciava a mudança, nos primeiros dias de Agosto, para a casa alugada em Leça da Palmeira: eis as bruxas que moravam habitualmente nessa casa a empacotarem andrajos, feitiços e mau-olhado entre resmungos, contrariadas por terem de se mudar provisoriamente para uma casa ensolarada do Amial. E elas que eram uns seres de hábitos, apegadas a névoas, teias de aranha e espessas camadas de pó!
Mas o sistema não era perfeito, nenhum é, e havia sempre a hipótese de alguma se atrasar a deixar a casa, de existir uma desmiolada que não cumpria as regras, uma surda que não as ouvia ou outra, especialmente malévola, que ficava só para me aterrorizar. Na casa de soalhos rangentes de Leça da Palmeira, essa sensação tornava-se quase palpável à noite e de cada vez que o sobrado de tábuas enceradas crepitava eu suava de puro terror na minha cama estreita, enquanto a goiabada dormia em plena segurança dentro do seu armário, pois apesar de o assalto à lata se poder perpetrar em plena impunidade eu não poria o pé no chão nem que estivesse a rebentar para mijar. O pior é que esta presença assombradora podia manifestar-se também em pleno dia, bastava que estivesse o terceiro tipo de clima possível em Leça da Palmeira, aquele que, mesmo antes de raiar a luz dia, era augurado pelo uivo roufenho do farol da Boa-Nova, rais parta, nome mais irónico!
Esse clima de bruxas, em que coelhos cinzentos corriam entre os chorões que bordejavam a praia e os caranguejos se roçavam, nervosos, na pedra fria das fendas entre as rochas, podia muito bem ser anunciado de véspera pelo farol, mas o indício não era totalmente seguro, pois, a maior parte das vezes, o sol de Agosto dava cabo dele em três tempos. Mas, se o tempo tinha de correr mal, tudo podia começar com um ”oh” da minha mãe logo após o jantar, interjeição anunciando que a nossa voltinha até ao centro de Leça ou à quermesse fora estragada por uma neblina cerrada, caída sem aviso e que, num repente, arrefecera o tempo para temperaturas compatíveis com pneumonias duplas. Em pé, enfiado na camisola que me seria vestida se saíssemos, afastando a cortina com uma ponta de dedos, espreitava pela janela da sala o espesso manto alaranjado que se produzira no combate entre a névoa invasora e a luz dos candeeiros da rua. Tirando o lamento intermitente da ronca, o silêncio era total, como se toda a população tivesse desertado ou, talvez, esperasse, amordaçada, por trás de cada janela e nem uma só alma se atrevesse a pisar os paralelepípedos da rua, brilhantes na humidade como as escamas dos peixes que esperavam, mudos, no mercado do lado de lá da ponte móvel.
Na manhã que se seguia a uma noite destas, mais plausivelmente se a ronca uivara toda a noite, era possível que a Maria, que tinha ido ao pão, nos surgisse arrepiada e com o cabelo coberto de gotículas de orvalho marítimo, anunciando:
“Hoje não há praia para ninguém...”
E todo o santo dia penávamos pela casa, tentando espantar o tédio com sessões de  envernizamento dos bonequinhos feitos com búzios e cola UHU, com leitura e, para espairecer, um ou outro ataque à goiabada e ao queijo flamengo. De permeio, eu e a minha irmã sofríamos uma prolongada sesta no quarto, à espera de um sono que não descia, escutando a casa ranger nas duas da tarde como um navio perdido na bruma. E o que tinha sido aquele clic na porta do guarda-fatos...?


© Fotografias de Pedro Serrano, de cima para baixo: (1) Miramar, 2010; (2) Praia da Areia Branca, 2004.

Now they know how many holes it takes

© Fotografia de Pedro Serrano, Goa (Índia) 2003.
Ontem (28 de Fevereiro 2011), este blogue atingiu os 12 meses de idade e as 10.000 visitas. A todos os meus ouvintes o meu obrigado, particularmente pelos comentários que, por escrito ou ao vivo, me foram fazendo chegar e muito úteis como gratificação ou estímulo para dar corpo palavral a ideias ou pormenores sugeridos.
PS: No mesmo período de tempo, o meu livro Coração Independente, com acesso à versão integral a partir do blogue, teve 1.330 visitas, o que o aproxima perigosamente de uma segunda edição (habitualmente entre 1.500 e 2.000 exemplares).