01 março 2011

VOU-TE CONTAR: 30. A estação das bruxas


When I look over my shoulder
What do you think I see?
Some other cat looking over
His shoulder at me.

Donovan (Season of the Witch, 1966)

Nesse tempo havia bruxas em todo o lado. Não em permanência, graças a Deus, mas cumprindo um equilibrado sistema de permuta. Por exemplo: assim que nós começávamos a fazer malas para ir para a casa de Viseu, passar todo o mês de Setembro, as bruxas da casa de lá começavam a fazer as malas para virem ocupar a nossa casa mais antiga no Porto durante um mês.
O mesmo acontecia quando se iniciava a mudança, nos primeiros dias de Agosto, para a casa alugada em Leça da Palmeira: eis as bruxas que moravam habitualmente nessa casa a empacotarem andrajos, feitiços e mau-olhado entre resmungos, contrariadas por terem de se mudar provisoriamente para uma casa ensolarada do Amial. E elas que eram uns seres de hábitos, apegadas a névoas, teias de aranha e espessas camadas de pó!
Mas o sistema não era perfeito, nenhum é, e havia sempre a hipótese de alguma se atrasar a deixar a casa, de existir uma desmiolada que não cumpria as regras, uma surda que não as ouvia ou outra, especialmente malévola, que ficava só para me aterrorizar. Na casa de soalhos rangentes de Leça da Palmeira, essa sensação tornava-se quase palpável à noite e de cada vez que o sobrado de tábuas enceradas crepitava eu suava de puro terror na minha cama estreita, enquanto a goiabada dormia em plena segurança dentro do seu armário, pois apesar de o assalto à lata se poder perpetrar em plena impunidade eu não poria o pé no chão nem que estivesse a rebentar para mijar. O pior é que esta presença assombradora podia manifestar-se também em pleno dia, bastava que estivesse o terceiro tipo de clima possível em Leça da Palmeira, aquele que, mesmo antes de raiar a luz dia, era augurado pelo uivo roufenho do farol da Boa-Nova, rais parta, nome mais irónico!
Esse clima de bruxas, em que coelhos cinzentos corriam entre os chorões que bordejavam a praia e os caranguejos se roçavam, nervosos, na pedra fria das fendas entre as rochas, podia muito bem ser anunciado de véspera pelo farol, mas o indício não era totalmente seguro, pois, a maior parte das vezes, o sol de Agosto dava cabo dele em três tempos. Mas, se o tempo tinha de correr mal, tudo podia começar com um ”oh” da minha mãe logo após o jantar, interjeição anunciando que a nossa voltinha até ao centro de Leça ou à quermesse fora estragada por uma neblina cerrada, caída sem aviso e que, num repente, arrefecera o tempo para temperaturas compatíveis com pneumonias duplas. Em pé, enfiado na camisola que me seria vestida se saíssemos, afastando a cortina com uma ponta de dedos, espreitava pela janela da sala o espesso manto alaranjado que se produzira no combate entre a névoa invasora e a luz dos candeeiros da rua. Tirando o lamento intermitente da ronca, o silêncio era total, como se toda a população tivesse desertado ou, talvez, esperasse, amordaçada, por trás de cada janela e nem uma só alma se atrevesse a pisar os paralelepípedos da rua, brilhantes na humidade como as escamas dos peixes que esperavam, mudos, no mercado do lado de lá da ponte móvel.
Na manhã que se seguia a uma noite destas, mais plausivelmente se a ronca uivara toda a noite, era possível que a Maria, que tinha ido ao pão, nos surgisse arrepiada e com o cabelo coberto de gotículas de orvalho marítimo, anunciando:
“Hoje não há praia para ninguém...”
E todo o santo dia penávamos pela casa, tentando espantar o tédio com sessões de  envernizamento dos bonequinhos feitos com búzios e cola UHU, com leitura e, para espairecer, um ou outro ataque à goiabada e ao queijo flamengo. De permeio, eu e a minha irmã sofríamos uma prolongada sesta no quarto, à espera de um sono que não descia, escutando a casa ranger nas duas da tarde como um navio perdido na bruma. E o que tinha sido aquele clic na porta do guarda-fatos...?


© Fotografias de Pedro Serrano, de cima para baixo: (1) Miramar, 2010; (2) Praia da Areia Branca, 2004.

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