27 novembro 2012

ONE POR SEMANA


A conversação que podem espreitar no vídeo aqui em baixo foi captada num café de uma das ruas principais da baixa do Funchal e teve por protagonistas um casal de ingleses (David e Pauline) e uma portuguesa.
Sobre esta última é forçoso que gaste algumas palavras a caracterizá-la: pela pronúncia, por alguns termos usados (“oh que carago!”) intui-se que é do norte do país, mas, pelo sotaque, pelo conhecimento da cor local, percebe-se que reside há muitos anos na Madeira. Para além disto, não conhece do inglês mais do que uma meia-dúzia de palavras soltas, oh tão soltas: one, not, wife, speak, gold, many... Porém, como verão, isso não a impede de manter uma animada, ininterrupta e fluente conversa com o, por vezes, entupido e atónito casal britânico, demonstrando aquilo em que acredito há muito: tudo vale a pena se a alma não é pequena ou, dito de outro modo, eveything worths the pity if the soul is not small. Antes de vos entregar ao prazer das imagens, transcrevo um excerto de uma filmagem da véspera, a qual optei por não inserir pois o ruído do café torna-a demasiado difícil de seguir. Ficam as palavras, em volta do tempo meteorológico, muito instável nessa semana de bátegas e enxurradas na Madeira:
“Pauline, agora not chuva, mas hoje de manhã many chuva...”
A inglesa abana a cabeça, totalmente de acordo.
“Hoje, five da manhã, chuva; mas agora: not chuva...”
David, sentado em frente, encrespa as sobrancelhas de entendimento, diz:
“Yes, yes...”
Estimulada, a nossa amiga continua:
“Madeira, not chuva, às vezes good chuva, mas no continente many chuva”. E vai desfiando pelos dedos os locais mais açoitados pela inclemência: Porto, chuva; Lisboa, many chuva; Bragança, Coimbra, tudo chuva... Mas aqui tempo bom, not chuva...”
Os ingleses concordam...
[Ponham o som no máximo, que o ambiente é ruidoso]
© Video de Pedro Serrano, filmado com câmara Leica V Lux-20. Funchal, Novembro 2012. 
Também disponível no YouTube em http://youtu.be/vlig24VI8kU

21 novembro 2012

MORNINHA


Nuvem que vogas ao sul
Por sobre um mar tão azul
Vai e pergunta por mim

Enamora essa Morninha
Que um dia jurou ser minha
Vai e pergunta por mim

Diz se uma luz de tristeza
Dormita em sua beleza
Quando de través fita o mar

Ventaneia a acácia rubra
Até que seu colo se cubra
De pétalas por desfolhar

Vai, sussurra a essa mulata
Que a saudade me mata
Cá longe, neste cismar

Por sobre um mar tão azul
Nuvem que vogas ao sul
Vai e pergunta por mim


Acácia rubra, © Fotografia de Pedro Serrano, Santiago, Cabo Verde, 2011.


19 novembro 2012

VOU-TE CONTAR: 53. DAYS OF FUTURE PASSED


Nunca, mas nunca na vida eu imaginei que pudesse ser obrigado a ver uma professora de matemática em fato de banho e, ainda menos, vê-la a conversar com a minha mãe, tricotando crochet como se nada fosse!
Estava-se em 1968, eu fizera quinze anos, os Moody Blues tinham editado no Natal anterior o fabuloso álbum Days of Future Passed e matemática era pesadelo de que julgara ter-me livrado, pelo menos durante os três meses das férias grandes, e agora ali estava ela, lustrosa como uma foca, no seu fato de banho preto, assombrando-me a paz de espírito, obrigando-me a permanecer na areia, arredado das riscas paralelas da minha própria barraca, a tentar evitar tangentes e secantes...
Ao menos não era minha professora, nem sequer professora no meu liceu, mas, de qualquer modo, era professora de matemática e dava aulas no Carolina Michaelis, o liceu de raparigas a escassa centenas de metros do meu, isto é: deveria ter conhecimentos e influência suficiente para me poder prejudicar, bastava-lhe mexer o mindinho! É claro que sendo eu assíduo frequentador da hora de saída do Carolina já a conhecia de vista, sabia até a alcunha de mãe-preta pela qual era conhecida entre as raparigas, rótulo que lhe vinha do fácies um tanto negroide e de nariz esborrachado, à boleia de uma canção de protesto que estava na moda naqueles anos de estrebucho colonial. Mas uma coisa era mirá-la, vestida, do lado de lá do passeio, outra vê-la, de um ano para o outro, aterrar no verão da Praia dos Beijinhos, em Leça da Palmeira, nesse agosto em que tinha, à justa, acabado de surgir In Search of the Lost Chord, o esperado novo álbum dos Moody Blues, obra que confirmava a esmagadora surpresa do disco anterior e afirmava no firmamento o rock sinfónico, uma variação musical inaugurada (como era costume) pelos Beatles na primavera de 1966 com “Eleanor Rigby”, uma canção de nos pôr de joelhos, com um  arranjo de violinos e violoncelos que parecia música de câmara!
De tudo isto se ia falando, pernas cruzadas, lambuzados de Ambre Solaire, a uns metros das barracas, as nossas mãos, feitas ampulhetas, peneirando punhados de areia fina para o chão, os olhares demasiado tímidos para se fitarem de frente. A Lena e o Eduardo, dois tipos novos no nosso círculo da praia, eram, precisamente, grandes fãs dos Moody, possuíam em casa o Days of Future Passed e tinham já encomendado o Lost Chord e isso emprestava-lhes um valor inestimável, pois colecionávamos pessoas como quem coleciona discos.
Subitamente, no meio do meu entusiasmo, eis que descubro, arrepiado, que a Lena e o Eduardo eram filhos da mãe-preta, moravam perto de mim no Porto e, horror dos horrores, a Dr.ª Albertina (que era esse o seu inusitado nome) oferecera-se até para passar a dar-me boleia para o liceu no ano lectivo seguinte. Não, era mau de mais para estar a acontecer, a minha mãe a suspirar e a confessar à outra que a “matemática é o espinho dele, Dr.ª Albertina, isso e a Física, não há maneira... Este ano teve-me um 7 no segundo período!”
E a outra, entre duas remadelas nas agulhas do tricot, a interessar-se, a querer saber quem era o meu professor no liceu, pois que, com toda a certeza, o conheceria...
“Pedro”, aproveitou a minha mãe quando eu, a escorrer da gélida água dos mares do norte, acabava de chegar em busca de uma toalha perdida, “como se chama o teu professor de Matemática...?”
E eu, diminuído mentalmente por um couro cabeludo enregelado, a tentar lembrar-me como caralho se chamava mesmo o professor, a catar por entre a alcunha de sobe e desce como alguns o conheciam (o homem tinha uma perna mais curta do que outra) e a de se-te-apanho-fodo-te, como outros, os menos piedosos – entre os quais me incluía, se lhe referiam na intimidade, uma menção bicéfala ao seu defeito e ao facto de ser titular de uma disciplina temível...
Mas a adolescência é um tempo de perplexidade e contradição e era com espanto e um tributo mental de admiração ao pai que constatávamos diariamente ter a filha do sobe e desce, igualmente aluna do Carolina, um perfeito e ambicionado par de pernas... E acabou por ser por uma mistura de pernas e discos dos Moody Blues que aceitei a tal boleia para o liceu: agora, todas as manhãs, ao rondar das oito horas, batia à porta de casa da Dr.ª Albertina na esperança de ver surgir a filha ao cimo das escadas, a saber quem chegara. Nessa época estavam na moda uns collants de cor branca, opacos, e que transmitiam às pernas um picante ar cadavérico.
“Ah, és tu...”, dizia ela, pairando lá cima ou desfilando escadas abaixo a gritar pela mãe e pelo irmão.
E eu, paralisado na soleira como num embaraço de entrar em casa alheia, ficava-me ali como se já estivéssemos em 1969, ano em que os Moody Blues nos visitariam com o seu novo álbum On the Treshold of a Dream.    

16 novembro 2012

VEM CHUVA


Não cheira a chuva quando cai
Mas cheira o ar se vai chover
Como depois da erva cortada,
Ou a terra depois de molhada
São cheiros que se deixam ver










© Fotografia de Pedro Serrano, Praia da Areia Branca, 2010.

12 novembro 2012

TÓ ZÉ & A CHANCELERINA


Muito oportunamente, o jornal Público publicou hoje, dia da visita a Portugal da chanceler Ângela Merkel, um artigo do cidadão António José Seguro, prosa que percorri com a emoção que me assalta quando confiro o recibo das compras do supermercado.
Li o dito artigo à hora do almoço, pelo que a esta hora, um pouco depois do jantar, já nada recordo das relevantes asserções do cidadão a não ser que, às tantas, a mais de meio do texto, houve uma palavra que me sobressaltou, como se os meus olhos tivessem tropeçado. Mas continuei por ali fora, ruminando aquela prosa que bem poderia ter sido gerada por um processador de texto a quem previamente tivessem fornecido as palavras-chave “Portugal” – “Crise” – “Alemanha” – “Cidadania” – “Solidário”, até que, de novo, o meu tédio voltou a ser sobressaltado por aquele conjunto de sílabas... E uma outra vez, logo na linha debaixo. Seria uma ironia, pensei, será que o homem se atrevera a um toque de canela no copinho de leite? A sonoridade do termo fazia lembrar um pouco o cruzamento de uma salsicha com uma tangerina, será que poderia ser uma arremessada, uma arrevesada metáfora norte-sul?
Mas não, Tó Zé estava apenas a ser politicamente correcto quando interpelava Ângela como “chancelerina”, que pena! Provavelmente telefonara a Ana Gomes, mais habitué(e) a estas coisas da Europa, a acautelar-se:
“Ouve lá, ó Ana, como achas melhor que me dirija à Ângela? Presidenta ou chanceler...?”
“Chancelerina”, aconselhara, sem hesitar, a outra, “decididamente chancelerina, de outro modo podes vir a ser acusado de tratamento desigual dos géneros...”
“Quais géneros?”, perguntou Tó Zé, confuso, “olha que o Passos não me convidou para o almoço...”
“Não é desses, dos de deglutir”, respondeu Gomes de Bruxelas, “é dos outros, aqueles dos cromossomas...”
“E olha, chancelerina... como se escreve, é com SS?”, perguntou o interlocutor pouco seguro.
“Não, isso era antigamente, agora é com ‘c’ de companheirismo...”
“Ah”, disse Tó Zé, luzidio, “calculo que seja mais uma do acordo ortográfico! Confesso que ainda não o decorei todo...”