30 dezembro 2017

PERNIL ENTREMEIADO

Tornam-se sinistros os personagens ridículos a quem foi conferido (nem que seja pelos próprios) demasiado poder.
1. É o caso de Nicolás Maduro, o homem que se entretém a dar cabo do que ainda resta da Venezuela, e  que, após a campanha para promover a criação massiva de coelhos como forma de resolver a fome que provocou no país, resolveu – agora que foi Natal e a lágrima é mais fácil – enfiar um pernil de porco na meia de cada família venezuelana.
Para isso contava, ao que parece, com a famigerada generosidade do povo português, povo que – derivado do seu muito à vontade com a suinicultura – forneceria os tais pernis, uma tradição de partilha iniciada nos dourados anos em que José Sócrates resolveu estreitar relações com alguns paladinos das democracias sul-americanas que, como ele, adoravam ideias luminosas e negócios-relâmpago. Assina o meu protocolo que eu logo assinarei o teu.
Mas acontece  que os pernis não chegaram a tempo à consoada venezuelana e o povo – farto de feijões e de rapar enlatados – deu-se conta e terá gemido... E lá vem Maduro à TV informar os aguados compatriotas de que teria havido uma cabala e que o culpado tinha nome: “Portugal”, afirmou sonoramente. Inclusive, Nicolás teria já dois imensos navios prontos para transportar o pernil de Lisboa, mas até isso fora boicotado, mais um daqueles golpes contra a soberania venezuelana que o PCP, partido irmão, tanto tem denunciado.
Nos ecrãs portugueses, o Ministro dos Negócios Estrangeiros apressou-se a garantir que o Governo nada tinha a ver com o boicote dos suínos. O suspense, aliás, só seria aliviado no dia seguinte quando o povo luso ficou finalmente a saber que o pernil não seguira uma vez que a Venezuela não paga, desde 2016, as facturas a quem o fornece.

2. Por cá, quem esteve quase quase a ter um sapatinho especialmente recheado foram os partidos políticos, pois, num alinhamento milagroso que só mesmo na quadra natalícia, resolveram cumular-se das bênçãos contidas naquilo a que se tem chamado a “lei do financiamento dos partidos”. Basicamente, segundo o sonho colectivo dos deputados, os partidos deixariam de ter limite na massa que podem açambarcar para se financiar (até agora com um tecto), e deixariam de pagar IVA pelas transacções relacionadas com a sua actividade. Esta maravilha legal, a que todos – com excepção do CDS – deram aval imediato, foi negociada às escondidas por todos eles no período muito conveniente das Festas, quando toda a gente andava entretida com as compras, o Natal dos queimados e o pernil do Maduro. A porra toda foi que o Presidente da República, mau-grado a hérnia entalada e a consoada em Pedrogão, se deu conta da marosca e toca de chamar a atenção dos meninos, do povo... Na consequência, veio a chefe de turma Ana Catarina garantir, na sua infabilidade assertiva, que a solução encontrada, em alargado fórum, não acarretava encargos para o país e para os contribuintes. Pois não, sua espertalhona, talvez nenhum dos dromedários do costume vá ter de pagar mais impostos por causa disso, mas que tal informar o rebanho de quantos milhões de euros deixam de entrar nos cofres do Estado tendo em conta essas isenções do IVA?
Mal, muito mal, nada que a gente já não soubesse que eram capazes, mas desta vez mostrando às claras que são todos da mesma massa, isto é dos mesmos euros, e que por aí se conseguem entender bem, apesar de nunca o parecer possível quando o entendimento são matérias que interessam ao país. Tudo conduzido às escuras, na maior das premeditações e depois, quando se foi descoberto, metendo os pés pelas mãos, com aqueles que horas antes votaram a favor do arranjo a acotovelar-se para serem os primeiros a declarar que, afinal, até eram contra, ou parcialmente contra; ou nunca a favor sem mais nem menos. Resumindo: mais entalados do que a hérnia do Presidente.


14 dezembro 2017

NUM DOCE BALANÇO, CAMINHO DO MAR

Da esquerda para a direita: Manuel Delgado e Paula Costa.
Parece que o ex-secretário de estado da Saúde Manuel Delgado, depois da tristíssima figura que fez na entrevista à TVI, intenta ainda processar aquela estação televisiva por "devassa da vida privada". Seria bom que o Sr. Dr.  pensasse bem antes de somar mais disparates aos que já produziu e, amigavelmente, aconselha-lo-ia a estar calado e quieto, evitando aparecer mais nos órgãos de comunicação social e até na rua. 
É que se arrisca a que lhe digam que a tal devassa da vida privada de que fala foi produto marginal de uma investigação a malabarismos feitos à custa de dinheiros públicos, em funções de Estado.
E, como se não bastasse, tentou enganar-nos a todos sobre o assunto, metendo, ao vivo e nas cores rosadas da falta de vergonha, os pés pelas mãos de um modo quase doloroso de assistir.
Da esquerda para a direita: Paula Costa e Manuel Delgado.



Nota: Pelas imagens um agradecimento à TVI, e pelo título deste texto um agradecimento à inspiração de Vinícius de Moraes e António Carlos Jobim na canção "Garota de Ipanema".

12 dezembro 2017

SENHORA DA APARECIDA

Talvez não fosse exactamente igual a esta, mas era muito semelhante. Talvez a nuvem onde ela pousa os pés tivesse também umas pombas anichadas, já não recordo exactamente. Sei que a comprei numa loja do aeroporto de Lisboa, devia ter um pouco mais de um palmo de altura e a coroa viajou separada da cabeça da Senhora no embrulho, para que não se amolgasse. Já em Mumbai voltei a coroá-la convenientemente com o auxílio de um pingo de cola.
Quando a recebeu, e após murmurar “Ah, Lady Fatima”, o Sr. Mendes executou um curioso ritual: primeiro, tomando-a entre mãos, ergueu-a alto, encostando a coroa da Virgem à testa; em seguida fez rodar a estátua em torno da cabeça, pausando aqui e ali como se se detivesse nos quatro pontos cardiais; nada que católicos das nossas bandas se lembrem de fazer quando apanham uma imagem da Imaculada nas mãos. Depois pousou a Virgem com cuidado no balcão e pareceu voltar a nós e à sua loja de panos, rendas e bordados situada ao fundo da Shahid Bagat Singh Road, no coração da baixa de Mumbai, uma movimentadíssima rua comercial onde fica o famoso Café Leopold, visitado por tudo quanto é viajante desde 1871 e, por isso, vítima dos atentados terroristas que assolaram a antiga Bombaim em 2008.
Mas há três ou quatro anos, quando, por quase acaso, demos com ela ao fim da rua, além da horda das bancas de vendedores que intoxicam os passeios, já nesses dias era uma loja decrépita com algo de retrosaria de província portuguesa em crise de trespasse. A montra, decorada como se não obedecesse a outro critério que a dos salvados numa loja de velharias, tinha expostas toalhas e guardanapos com curiosos bordados, alguns ingénuos, outros toscos, e uns poucos muito bonitos. Mas a esses, aos que valiam a despesa, o Sr. Mendes não os vendia... Estavam ali desde o tempo da mãe – Mrs. J. Mendes, a proprietária original da loja e senhora já falecida. Mrs. J. Mendes era natural de Goa, mas o filho, apesar do apelido, já não recordava o português; há muitos anos que tinham subido do Sul para Mumbai, da família restava apenas ele e um irmão que vivia em Londres.
Era Dezembro e, nessa primeira vez, saímos da loja com aquilo que o Sr. Mendes nos resolveu ceder, uma toalha de mesa e um conjunto de guardanapos, debruados com motivos natalícios em vermelho e verde, picotados no linho pelas órfãs do colégio de Goa que davam substância às encomendas de Mrs. Mendes.

No ano seguinte voltámos a Mumbai, a loja ainda lá estava e o Sr. Mendes continuava a não vender a parte mais interessante do recheio de um estabelecimento cada vez mais desfasado e desfalcado; achámos o próprio dono algo mais lento na compreensão, mais distanciado do interesse em comerciar fosse o que fosse. Aquilo que o animava mesmo era reconhecer que éramos portugueses, salvo-conduto para falar da mãe, de Goa, da fé católica, de como tinha visitado Fátima e Lurdes há muitos anos... E, para o ilustrar, sacava de uma carteira albardada de papéis, na qual, com dedos imprecisos, pescava um anúncio desbotado de um itinerário por cidades europeias em que as contas do rosário eram as atracções religiosas: Santiago de Compostela, o Vaticano... Fátima... E com uma unha amarelada e devota apontava-nos a pintura da Virgem pendurada por sobre a porta de entrada, iluminada por uma lâmpada eléctrica em forma de chama de vela apesar da luz violenta da tarde indiana.
Este ano de 2017 regressámos à loja ao fundo da Shahid Bagat Singh Road. Será que ainda estaria aberta? Será que o Sr. Mendes ainda era... Ainda, embora mais trémulo do que anteriormente, esboroando-se no esquecimento como a própria loja, à qual ruíra uma parede e escoras sustinham o tecto. O Sr. Mendes, entrincheirado ali dentro, parecia perdido na nova geografia e quase não havia mercadoria à vista, encontrava-se toda sob os plásticos que protegiam os rendados da caliça e os bordados da poeira dos escombros. Será que ainda se recordava de nós? Afinal éramos visitas que ali pousavam escassos minutos, uma vez por ano... “Ah, Lady Fatima”, murmurou quando retirei o presente do saco e lho passei para as mãos. Depois executou um curioso e silencioso ritual com a estátua e, quando terminou, pôs-se a pesquisar sob os plásticos que cobriam a mercadoria, acabando por nos oferecer um guardanapo de chá, bordado com pouca mestria por alguém de Goa que em tempos trabalhara para a sua mãe. A referência a Goa pareceu despertá-lo para uma qualquer ideia e deu em procurar nas páginas de uma velha agenda com entradas por ordem alfabética e onde nomes e números estavam registados em ordenada letra. Desligando o som à televisão e chamando-me para perto dele, pôs-se a discar números no telefone; minutos mais tarde dei comigo a falar com Goa, com pessoas cujo único cordão umbilical comigo era o falarmos português. Sim, eu era mesmo português... Se morava em Lisboa? Não exactamente, mas a umas dezenas de km... Ah, sabia muito bem onde eram os Olivais (local onde a senhora desconhecida que falava comigo tinha uma prima). Pois, muito gosto também. Até um dia... O Sr. Mendes tentou ainda outros números em Panjim, em Margão, mas ou as pessoas não atendiam ou a chamada ia abaixo. Como o vi contrariado, encravado numa qualquer decisão que não alcançava, deixei-lhe os meus contactos escritos para o que desse e viesse: nome, telemóvel português, o hotel onde ia ficar em Goa nos dias seguintes; tudo em letra de imprensa, cuidadosamente desenhada, pois os caracteres do alfabeto Marata não são, sequer, semelhantes aos nossos nos contornos que a mão deve traçar.

Umas manhãs gloriosas mais tarde, em Benaulim, dei com um envelope encaixado na maçaneta da porta da nossa villa. O serviço de hóspedes informava que um tal Mr. Mendes, “from Colaba, Mumbai”, tinha ligado insistentemente, pedindo que o contactasse no 9821271670. “Deve ser o Sr. Mendes, a comunicar mais uns contactos em Goa”, pensei enquanto aguardava que a recepção me completasse a chamada. Mas quem me atendeu do lado de lá não foi o inglês hesitante nem a voz sumida do Sr. Mendes da loja antiga de Colaba. Este era o outro Sr. Mendes – literalmente Mr. Mendes – irmão do Sr. Mendes, o que vive em Londres e vem à Índia de três em três meses. Num inglês fluente e rápido, o irmão mais novo – embora já tivesse chegado aos setenta, como me confessou – agradeceu profusamente a prenda e o cuidado que eu dispensara ao irmão, com quem andava preocupado. Numa dessas vindas de Inglaterra dera-se conta da degradação da loja e do estado delicado da saúde e da autonomia do irmão. A pouco e pouco, estava a tentar convencê-lo a vender a ruína em que se tinha transformado o estabelecimento e a empregar o dinheiro resultante no amaciar dos sobrantes dias dos quase oitenta anos do irmão mais velho.

Mr. Mendes parecia a par de tudo o que nos dizia respeito, desde as visitas ao irmão até à data em que íamos deixar a Índia de regresso a Portugal, lamentando essa data, sobretudo por ser coincidente com o dia em que, no expresso ferroviário de Mumbai, chegaria a Goa e por essa sobreposição temporal impedir que nos conhecêssemos e nos pudesse convidar para almoçar convenientemente. “Fica para outra vez”, prometi-lhe e a mim próprio, havemos de voltar. E, dando o tempo por bem empregue, dediquei-me a soletrar o meu endereço electrónico ao terceiro dos Mendes.
© Fotografias de pedro serrano, Mumbai (Índia), 2017.

05 dezembro 2017

A CAIXA MÁGICA

No sul anoitece rápido. É dia, durante uns minutos a luz amacia-se e, de súbito, deixamos de ver onde pomos os pés, sentimos o desejo do regresso a casa, mesmo que essa seja o quarto temporário de um hotel.
Iniciara-se esse introito ao crepúsculo e eu atravessava um parque de estacionamento, improvisado numa praceta, mirando os enormes morcegos que deixavam o poiso diurno nas árvores e inauguravam o anoitecer, quando senti uma voz tímida chegando-me do flanco: “shoeshine, sir?”
Olhei, embora soubesse o que acontece na Índia quando nos interpelam e a gente olha: alguém, até ao nosso desespero, não nos largará mais na proposta de um negocio ou serviço. Olhei e deparei com um rapaz que, numa mão, segurava uma escova e, na outra, uma latita circular de graxa. Mas onde estava a caixa de engraxar, como se proporia ele tratar-me dos sapatos? “Shoeshine?”, voltou a perguntar em voz quase envergonhada, “only ten rupees, sir...” Dez rupias são dez cêntimos e, mesmo na Índia, ninguém pede tão pouco por um serviço, sobretudo no primeiro embate da negociação de um preço. Aquilo, pensei para mim, era a tentativa realista de alguém que sabe que lhe restam escassos minutos para poder ver o que está a fazer, a última possibilidade de negócio do dia, como quando os supermercados baixam os preços dos frescos perto da hora do fecho. “Only ten rupees, sir, I’m hungry...”, insistia ele explicando-se e alargando ligeiramente os braços onde a escova e a lata continuavam penduradas, à espera.
“Ok”, anuí, procurando em volta e esperando ver aparecer, detrás de um dos carros estacionados, uma caixa de engraxador onde pudesse apoiar o meu sapato empoeirado. Já acocorado aos meus pés, o rapaz bateu na fímbria das minhas calças, fazendo sinal para que me descalçasse, e fazendo aparecer do nada um pedaço listrado de saco de plástico, onde eu pousasse a minha meia e não a conspurcasse com a sujidade de Mumbai.
Via-o agora de cima, enquanto ele ia enrolando nos dedos generosas porções de graxa com que ia lambuzando o meu sapato esquerdo. Era um tipo muito novo, teria os seus dezoito anos, magro, tímido, e tudo quanto ia dizendo enquanto produzia o seu trabalho era feito em voz delicada, de quem desabafa mais do que se lamenta ou tem como intenção crua derreter os cordões à bolsa de quem ouve. Entre um sapato e outro dei por mim a fazer perguntas também.
Era de Jaipur, uma cidade do Rajastão, no norte interior da Índia, viera com duas irmãs e a mãe para Mumbai, a grande capital do sul, onde vivem cerca de vinte milhões de pessoas, à procura de uma melhor sorte – era isso que os quatro imaginavam – mas estava a ser difícil. Não conseguia arranjar trabalho, os polícias confundiam-no com um pedinte quando o viam de escova solta na mão, expulsavam-no dos passeios e impediam-no de abordar quem passava. Se ainda ao menos tivesse uma caixa de engraxar, poderia estabelecer-se num canto qualquer da rua sem que o corressem dali, poderia chegar a fazer 200 rupias por dia (2,5 euros), era quanto lhe bastaria para se suster a si e à família...
Neste ponto da conversação já eu me deixara de perguntar se o que me chegava, subindo dos meus pés, correspondia a uma realidade ou a uma ilusão; já estava para além desse patamar da crença, de tal modo o seu lamento se casava com o encontro de alguém que encontrou um ouvinte e conta a surpresa dura da grande capital, o modo impiedoso e sem escapatória, sem esperança, de como foi acolhido por ela. E o seu Jaipur natal, que lhe parecera um dia tão impiedoso!
Dentro dos bolsos, os meus dedos rebuscavam e tinham substituído a nota de 10 rupias do preço ajustado por uma de 100 (1,3 euros). Ele polia agora o segundo sapato, continuava a descrever como uma caixa de engraxar podia mudar tudo aquilo, sobretudo o modo como passaria a ser visto pela polícia, como se a caixa trouxesse também com ela uma garantia de estatuto, uma cédula profissional.
“E quanto custa uma caixa dessas, com gaveta para as escovas e as latas, um molde para o pé do cliente?”, demonstrava eu o meu conhecimento de caixas de engraxador.
“Mil e quinhentas rupias, senhor”, respondeu prontamente; via-se que era assunto que já estudara.

Não há notas de mil e quinhentas rupias, a que lhe estendi, desdobrando perante os seus olhos uma ilusão duzentas vezes superior ao preço do serviço acordado, era uma de 2.000, o equivalente a duzentos pares de sapatos engraxados, por milagre, num único gesto. Ele ficou chocado ao perceber o que eu acabara de lhe passar para as mãos, tentou até que eu lhe desse a morada, para que pudesse pagar-me um dia a caixa de engraxar, o empréstimo. Mas onde íamos nós, no meio daquele nada, com a noite já instalada, arranjar papel, caneta e um apoio para escrever?

© Fotografias de pedro serrano. De cima para baixo: (1) e (2) Goa (índia), 2017; (3) Jaipur (Índia), 2013.

03 dezembro 2017