17 março 2024

LA PALOMA

Si a tu ventana llega una paloma 

Trátala con cariño que es mi persona... 

    Texto: fragmento do poema da canção "La Paloma", composta em 1863 por Sebastian Iradier e Salaverri; 
© fotografia: pedro serrano, Ponta Delgada (Açores), Junho 2008. 



30 julho 2023

LOJA DOS TREZENTOS

Com a presteza do merceeiro que tira o lápis detrás da orelha e sarrabisca uma conta no papel de embrulho, o ministro da saúde comparou nos telejornais a República de Cuba a uma empresa de prestação de serviços, daquelas a que o ministério recorre às colheradas para esticar a manta de retalhos do Serviço Nacional de Saúde.

Segundo o homem, quando paga a uma destas empresas não tem de se preocupar se o dinheiro vai todo para os médicos subcontratados através dela ou se a direcção da empresa mete dinheiro ao bolso no processo. Pizarro, aliás, acha muito natural que o faça... 

Assim, para ele fica resolvida a questão de o governo de Cuba meter, ou não meter, ao bolso oitenta ou mais por cento do dinheiro pago aos seus médicos pelos países para onde os exporta, como se fossem charutos ou barris de rum. Pizarro não tem nada a ver com isso, lava daí as suas mãos, o que, como se tem visto pelo modo como comanda o SNS, é o que ele sabe fazer melhor. Lavar as mãos com frequência é uma coisa boa, o ministério a que preside este grande estadista recomenda-o amiúde. 

Portugal anda atarefado a contratar 300 destes médicos semi-escravos e, pelos vistos, não se interessa pelas condições em que o faz, tal como os passadores e intermediários não se incomodam com o que acontece aos imigrantes que se afogam no mediterrâneo ou com os que atulham as estufas do Alentejo. Problema deles.

É claro que, neste seu empreendedorismo conquistador, Pizarro é forçado a ir arregimentar esta mão de obra bem-comportada ao terceiro mundo, neste caso à América Latina (África não tem sequer médicos para exportar), pois em nenhum outro local do mundo conseguiria, com o que Portugal oferece e paga aos médicos convencer, sequer, um único.

Tendo já perdido a capacidade de me espantar com a fibra e o estofo dos governantes que nos calharam em sorte, limito-me a corar de vergonha por habitar um país onde se vai acentuando, a cada dia que passa, o aroma esclavagista que nos tornou célebres noutros tempos. 

 

11 maio 2023

CADA CAVADELA, DUAS MINHOCAS

Temos de agradecer à TAP, e às peripécias com ela relacionada, o upgrade do dito popular "cada cavadela, sua minhoca". Agora, ainda entorpecidas pela luz do sol com que a enxada lhes iluminou a toca, os invertebrados bichos surgem aos dois, por vezes três, por cavadela.

Confesso que a maior surpresa desta semana foi ver aparecer novamente à luz do dia Constança Urbano de Sousa, que eu, como penso que a distraída maioria dos portugueses, pensava politicamente defunta e sob terra firme! Qual quê! A outrora especialista em abraçar corporações inteiras de bombeiros migrou de mansinho para as secretas e é agora expert em intelligence, coisa sobre a qual ninguém apostaria que escondesse uma jazida. Pois, mas o certo é que a mulher é a manda-chuva do Conselho de Fiscalização dos espiões e, nessa superlativa capacidade, não achou nada de especial que um serviço nacional de informações secretas fosse a casa de um cidadão arrestar-lhe o computador. Bafejada pela sorte, a nossa fiscal Mata-Hari, foi ouvida no Parlamento à porta-fechada, e foram os portugueses que ficaram a perder com a confidencialidade, que os inibiu dos momentos de rara beleza que, a crer no que vimos no tempo dos incêndios, devem ter proporcionado as suas explicações. À saída (e pela nesga que nos foi dada oportunidade de vislumbrar nas respostas que deu aos jornalistas), a senhora (jurista de formação) foi incapaz de enunciar qual o artigo da lei em que se baseou a intervenção do SIS neste corriqueiro assunto de polícia. Ficámos, no entanto, a saber que, afinal, aquilo que o ainda alegado Ministro das Infrasestruturas e o Primeiro Ministro consideraram, repetida e publicamente, um execrável roubo não foi afinal roubo nenhum, pois se fosse roubo o SIS não poderia ter metido mão no assunto. Percebeu? Eu também não.

Outra das felicidades revelada esta semana foi a de que o presidente da Comissão Parlamentar à TAP (Seguro Sanches, do PS) sentiu a honra violada pelas insinuações da Oposição de que quereria diminuir o tempo que cada deputado dispõe para, nas audições da Comissão, interrogar os convocados. Como tal, Seguro demitiu-se com fragor e, formoso mas não seguro, abandonou a função de queixo esticado como todas as donzelas ofendidas. Ora quem é que o PS (através de Santos Silva) foi logo buscar para o substituir? Lacerda Sales, o médico traumatologista que os portugueses bem conhecem dos tempos do Covid, quando esteve no Ministério da Saúde com a única função visível de amaciar as arestas mais ásperas da malograda ministra Marta Temido. Especialista em choques e apertos, amplamente rodado em atitudes esfíngicas e em não dizer nada que possa constar, o homem aceitou prontamente a missão, pois o que é isso comparado com os embates do mau-feitio combinado de Temido, Gouveia e Melo e Graça Freitas?

09 abril 2023

NOVA LOCALIZAÇÃO AEROPORTO LISBOA: BERLENGAS, PROPOSTA DE UM ANÓNIMO


Berlengas (avião a branco): proposta enviada aos responsáveis pela consulta pública.

Nome do proponente: Pedro Serrano

Localização: -1064467.3023676332,4752742.124779818 
Localidade: Berlengas
Número e dimensão das Pistas: 2, dimensão de geometria variável
Capacidade de expansão em hectares: infinita, depende apenas de cimento armado, flutuadores e pilares oceânicos.
Encontra-se limitado por alguma restrição aeronáutica? Se sim qual?: Não, apenas gaivotas e turistas
Encontra-se sobre alguma restrição de área protegida? Se sim qual?: Nada que não se consiga contornar
Esta opção estratégica destaca-se das restantes na medida em que….: Proporciona uma vista maravilhosa na aterragem e fica a pouco mais de 60 km de Lisboa, com a A8 mesmo ali ao lado.
Nome e descrição dos documentos de viabilidade técnica em anexo: sem anexos, trata-se apenas da minha opinião e pretende chamar a atenção para o populismo e grau de leviandade contidos no abrir às sugestões de quem lhe apetecer uma opinião sobre um assunto tão sério e eminentemente técnico. É quase o equivalente de um cirurgião perguntar a um doente como prefere que ele use o bisturi para o operar.
Com os melhores cumprimentos
pedro serrano, CEO aerotransportado

10 março 2023

VADE MECUM AGUIAR!



Meus Deus, que lhes terá dado? Ainda o país não tivera tempo para começar a arrefecer da indignação causada pelas atrocidades canoras do bispo de Beja sobre as vítimas deverem perdão aos seus agressores, e já bispos, arcebispos e cardeais se precipitavam para rádios, jornais e televisões vociferando que afinal os padres suspeitos iriam ser afastados, que seriam devidas indemnizações aos ultrajados e, claro está, que toda a Igreja andava em grande sofrimento com o sucedido. Um padre no activo, que em tempos disfrutou uma deliciosa noite numa tenda de campismo ladeado por uma rapariga de 11 anos e outra de 12, veio até confessar aos microfones da SIC que a gente, lá em casa, nem calcula o sofrimento que ainda o acomete, e já lá vão mais de dez anos sobre os tempos em que apalpava as mamas e o rabo às jovens católicas que lhe apareciam na sacristia. O homem, coitado, ainda passa horrores não inferiores às cinco santas chagas de Cristo; sofrem todos eles horrores, um horror que pode até ser retard e iniciar-se quase trinta ou quarenta anos mais tarde! É uma coisa crónica, devia ser classificada como profissão de risco.

Mas, a crer em D. Américo Aguiar (bispo auxiliar de Lisboa e da Pala), tudo o que se gerou na sequência das declarações da semana passada de bispos e cardeais não passou de uma grande infelicidade, grande parte da qual por responsabilidade directa do Vade Mecum.

Vade mecum, para os nossos leitores mais distraídos, significa literalmente "Vai Comigo", mas, na prática, refere um manual de procedimentos, uma espécie de livro de bolso com instruções de "faça você mesmo". Há Vade mecum para todas as áreas, existem em Medicina, em Direito, em Informática, até em Espiritismo, e, em última análise, pode exemplificar-se um livro de receitas de cozinha como um Vade Mecum culinário.

Pois o bispo da Pala foi o escolhido para nos vir informar que muita da culpa pelo imbróglio teve origem no Vade Mecum que eles usam lá na Igreja e de que seguem os artigos e as alíneas religiosamente, dado que o livrinho tem mais peso para eles do que, sei lá, a Vida dos Santos, a própria Bíblia. E o Vade mecum lá deles proíbe terminantemente que se use o termo "suspensão" para designar o afastamento de padres e outros incriminados do género: é que optando por usar o termo suspensão ter-se-á de, em conformidade, começar por abrir um inquérito, um processo, fazer investigações aprofundadas, mandar para o Vaticano, esperar a resposta do Vaticano, depois vai ao Ivo Rosa, ao Tribunal da Relação, ao Tribunal Constitucional, Belém, Jerusalém, uma fortuna em tradução e selos, um inferno de burocracia, prescrições, etc. Por isso aquela confusão de toda a gente ficar a pensar que a Igreja não ia afastar nenhum suspeito de agressão sexual a menores... É claro que vai, muitos, paletes deles se preciso for!

Tudo isto veio esclarecer D. Américo Aguiar, indigitado porta-voz por unanimidade e aclamação, tendo em conta o seu talento para anestesiar e manter em sentido jornalistas, o seu à vontade de mesa-redonda frente às câmaras e microfones, atributos que desenvolveu e exercitou na época em que trabalhou na Câmara, em Matosinhos, para o saudoso Narciso Miranda e para o PS.

"Voto em ti, Aguiar, tens o parlapié necessário para enfrentar a matilha...", teria dito, comovido, um dos prelados na noite da votação.

"Sim, já os vais conhecendo bem, lá da Pala e das Jornadas, tens à vontade e não te engrolas, como eu, em momentos infelizes...", terá alegadamente acrescentado D. Manuel Clemente.

"E não é só isso: dominas o Vade mecum do jargão político para se safar de um anzol: os mal-entendidos, o retirado do contexto, o não foi isso que eu disse, os não recordo ter dito isso, os não sabia de nada, os amigos jornalistas..."

E todos no conclave concordaram que era uma grande coisa o ter-se passado por uma experiência política prévia para enfrentar momentos de aperto, ainda que eclesiásticos.

"Uma mão lava a outra...", resumiu um dos presentes.

"Safa", desabafou um outro à saída da cripta onde tivera lugar a reunião, "que foi por um triz! Se não fora esta ideia do Aguiar de se apostar tudo na retórica, de jogar com a semântica, ainda nos encalacrávamos todos! Pois se até um prelado já Santificado, como o João Paulo II, não escapou à devassa!"

"Tempos de inclemência...", murmurou um terceiro.

"O Clemente?", interpretou um prelado pondo a mão em concha sobre o Sonotone, "esse e o Ornelas é que deram origem a toda esta avalanche, raios os partam!"

"Colega, olhe a outra face..."

 

 

  

08 março 2023

OS QUE FICAM À PORTA

Uma a uma, as ratazanas esticam o focinho fora da toca para, num discurso concatenado à pressa entre elas e empoado pelo makeup da hipocrisia piedosa, virem confirmar publicamente a sua vocação de encobridores. Cerram fileiras. Primeiro veio José Ornelas (bispo do eixo Leiria-Fátima), em seguida o inefável Manuel Clemente (cardeal-patriarca de Lisboa), quase em simultâneo com o muito convencido de si, Manuel Linda (que actualmente vexa o bispado do Porto, habituado a homens de outra fibra). Apareceu também à luz, embora um tanto cosida com as paredes, uma ratazana que responde pelo nome de Manuel Felício (bispo da Guarda) e, mesmo ontem, foi-nos servido, à hora dos telejornais, o vomitado de João Marcos, bispo de Beja. 

Todos vieram descartar a hipótese de afastamento preventivo dos padres acusados e suspeitos de abusos sexuais sobre menores, a que foram acrescentando joias da sua lavra, tal o sibilino José Clemente, que em vozinha adocicada e olhos revirados de "não falemos sequer dessas coisas", considera as indemnizações às vítimas como algo que, só de ser enunciado, poderia ser considerado insultuoso por elas, vítimas...  

Mas, o mais espectacular argumento de todos, veio do bispo de Beja (um dos que - e agora percebe-se a razão - se negou a participar nos trabalhos da Comissão Independente que investigou tudo isto), prelado que afirmou, entufado de piedade pelos predadores seus colegas de profissão, que em tudo isto está em falta o perdão, isto é: as vítimas devem perdoar os seus agressores, uma vez que eles se mostrem arrependidos. O perdão, acha o tipo, é o melhor tira-nódoas e apaga todas as marcas e manchas, torna praticamente desnecessária a justiça terrena (à atenção do Ministério da Justiça e dos tribunais entupidos). 

Deste modo, meu filho, se te entupiram a garganta, se o cu te ficou a arder ou se sangraste por ele, se a tua vida adulta ficou irremediavelmente abalada e tolhida pelo que te aconteceu quando andavas na catequese ou te ajoelhavas no confessionário, problema teu. Só te resta perdoar, pois os agressores estão muito arrependidos de se terem cevado em ti, uma e outra vez. Perdoa e engole.

Neste cortejo de horrores, a que os mais altos responsáveis pela Igreja Católica têm sujeitado os ouvidos da opinião pública, apetece perguntar se o Vaticano (e o Papa Francisco) estarão a par do reles espectáculo em cartaz neste canto da Península, estrelado pelos seus retalhistas e intermediários na condução da Fé. Será que o homem, lá em Roma, estará a acompanhar devidamente tudo isto? Será que alguém com a proximidade e os pergaminhos do nosso conterrâneo José Tolentino Mendonça (cardeal, assessor do Papa, cronista no mais lido jornal da terrinha) se tem debruçado e acarinhado esta causa? Ou será que vai ser forçoso esperar por Agosto e pelas Jornadas Mundiais da Juventude, para ir em procissão à Pala, manifestar ao Papa a indignação pelo que se passa por estas bandas e implorar-lhe que acerte uma vassourada nestes seus associados, que nada têm feito senão ignorar o que ele aconselhou? 

Abençoada Comissão Independente, penso mais uma vez para com os meus botões, que, suponho, deve andar completamente horrorizada e incrédula ante as reacções que despertou o cumprimento da sua missão. Abençoada, no entanto, pois mesmo que o seu trabalho não sirva para mais nada, enxotou até à luz do dia toda esta rataria sebosa, aninhada, instalada. E se a suas excelências, bispos e cardeais, não lhes é suficiente a simples informação de um nome para afastar um padre abusador, ficamos pelo menos a conhecer o nome e a cara de quem é quem neste xadrez, dos que ficam a guardar a porta enquanto o outro, o simples e anónimo padre Albino, vai à horta colher os tenros rebentos. 

"Deixai vir a mim as criancinhas!" 

"Despache-se padre Albino, que eu não posso ficar aqui, a tomar conta, toda a vida e já me bastam as chatices que tenho tido com a Comissão Independente!"

04 março 2023

O PATRONO DOS ABUSADORES

 

Chegada a hora de se pronunciar sobre as conclusões da Comissão Independente de Acompanhamento dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja e de vir dizer ao povo o que se propõe fazer sobre tão sinistro assunto, propõe-se o quê a Igreja portuguesa? Nada, nadie, rien, nothing, nichts; um rotundo e espantoso nada!

Ficámos a saber que por iniciativa da Igreja (como organismo colectivo) nenhum dos padres abusadores será afastado de funções (a não ser se condenado em tribunal), nenhuma vítima será indemnizada (segundo a Igreja é uma responsabilidade do padre violador), mas farão o grande favor de providenciar apoio psicológico às vítimas, desde que estas o requeiram na diocese onde foram abusadas. Finalmente, como tinham de tirar algum gesto de amor ao próximo da mitra, irão promover a construção de um memorial às vítimas de abuso, como se estivessem a referir vítimas de guerra, de terremoto ou de um outro acontecimento inevitável ou de força maior. Se me é permitido contribuir com ideias para esse memorial, proponho uma pala, como aquela que se preparam para nos fazer pagar nas Jornadas da Juventude, e sob a qual vários dos abusadores ou encobridores se irão resguardar do sol inclemente de Agosto. Ou talvez uma calçadeira com setenta metros de altura, um metro por cada ano de abuso oculto, ou em alternativa, um confessionário à prova de som e com retrete incorporada.  

Quem veio comunicar tudo isto publicamente, num tom onde imperava uma agressividade rebarbativa, foi um cavalheiro chamado José Ornelas, que acumula o ser bispo de Leiria-Fátima com a presidência da Conferência Episcopal Portuguesa, um graduado que, não assim há tanto tempo, andou por aí semienrolado numa situação de alegado encobrimento dos abusos sobre os quais foi agora convidado a pronunciar-se. Lembram-se? O Presidente da República até lhe telefonou a avisar que o caldo estava a azedar para os lados dele... 

Para ser franco, não fico tão espantado assim com este desfecho-éclair, pois sempre tive a sensação de que todos estes senhores estavam a fingir e só se moviam por força do aguilhão da opinião pública e desse prego no sapato chamado Comissão, uma comissão que, embora criada por eles, teve a lata de se portar de forma independente! Na hora da verdade, a Igreja continua a tentar esconder-se sob as varetas do guarda-sol, sem se dar conta de que o pano está mais que roto, está em farrapos. Não há batina que lhes valha. 

Em tudo isto há uma só coisa bonita de se ver: o trabalho que a Comissão Independente executou e apresentou no prazo em que prometeu que o faria! Um trabalho aturado, cuidadoso, cauteloso, isento e muito inteligente no modo deu a conhecer as suas conclusões. Valha-nos isso, num país onde a Justiça, pelo visto incluindo a Divina, está moribunda e tresanda.

    

 

 

 

29 janeiro 2023

O OUTRO LADO DO CAMINHO


 

Becas.
E
ncontrava-o todas as semanas, o que, amiúde, é falar por defeito. Por vezes, via-o dia sim, dia não, ou mesmo todos os dias. 

Morava à distância de duas casas e costumava passar pela minha porta a ir passear os cães ao fim da tarde. Sempre Serra da Estrela, enormes, felpudos e com aquele ar pachorrento que esses cães aparentam. Antigamente, eram dois que seguiam pela trela, quase me parecia que conduzia um trenó pela rua fora.

"Olá, engenheiro...", cumprimentava do lado de dentro do meu portão do quintal.

"Olá, doutor...", devolvia ele com um sorriso acolhedor e tranquilo. 

E seguia, em marcha pausada, pela rua fora, a caminho da praia e do poente, que nem ele nem os cães podiam dispensar isso.

Os anos passaram e os cães, que habitualmente duram menos do que nós, foram morrendo e sendo substituídos por outros, para mim iguais aos anteriores. Ultimamente, era só um cão que ele guiava, a caminho da praia ao fim de tarde. 

A missa de corpo presente foi na igreja aqui ao lado, pelas seis e meia da tarde, aproximadamente a hora a que costumava andar em passeio com os cães. Como são, pouco mais ou menos, uns duzentos metros daqui até lá, fui a pé. Estava um fim de tarde gelado e nítido de um dia de Janeiro e, em frente aos meus olhos, o céu pintava-se de um azul irreal de manto de Virgem e nesse azul demasiado puro penduravam-se, aqui e ali, muito aprumadas, meia-dúzia de pequenas nuvens bem recortadas, macias e douradas como se tivessem sido imersas na calda do sol. Desci a rua fitando esse céu e, de súbito, adivinhando que emprestava os meus olhos aos olhos do engenheiro, para que ele pudesse ver um último poente na sua rua.  

De facto, ia pensando durante a cerimónia, eu conhecia o homem há mais de trinta anos, desde que me mudara para vir viver onde moro. Ele já por aqui andava, engenheirando, topava com ele nas esplanadas dos cafés da praia, nas ruas, na vila, por vezes. A cena dos cães sobreveio mais tarde, quando se reformou, pois o coração dele nunca ficou muito bom desde aquele primeiro enfarte. A última vez que o vi terá sido num café da vila que, nesses dias da primeira semana de Janeiro, se atarefava a vender bolos-reis. 

"Estou habituado a vê-lo na Praia, não sabia que parava por aqui...", disse-me do balcão onde encomendava doces de pós-Natal para o novo ano.

"Sim, sou frequentador assíduo..."

"Bom Ano, doutor", desejou-me.

"Bom Ano, engenheiro", desejei em retorno.

A missa teve uma duração moderada, o padre era discreto e alguns dos membros mais jovens da família cantaram cânticos, acompanhados à viola, em voz contida; à vez, subiram ao altar a ler trechos dos evangelhos.

Sim, há muitos anos... Um dia, no Verão de 1996, estava eu internado, ia para dois ou três dias, no hospital de Torres Vedras, a recuperar, a arrastar-me em direcção à superfície de um enfarte do miocárdio brutal, quando vi abrir-se a porta da enfermaria e colocarem na cama em frente à minha um doente que se contorcia com dores. Dores no peito, tremendas, demoraram eternidades a serem pacificadas e eu em frente, deitado, incomodado e inútil, a assistir a tudo. Quando o coração dele se acalmou e o homem adormeceu, reconheci nele o engenheiro Patrício, que construía à época uma casa ao lado da minha. O enfarte surpreendera-o na obra, quando andava, de cigarro na boca, a transportar material de construção. Fomos colegas de enfarte e, por vezes, quando nos encontrávamos na nossa rua, parávamos a falar disso com a contenção de tipos recordando episódios que, como cenas de guerra e de combate, se devem manter íntimos.

"Faz esta semana quinze anos que estivemos lá em Torres, nos Cuidados Especiais..."

"Quinze anos", espantava-se ele, "já?!" 

Durante a missa, um filho subiu ao púlpito e leu um trecho de Santo Agostinho, santo que viveu entre os longínquos anos de 354 e 430, e a quem um dia, numa praia, terá aparecido o Menino Jesus que, como é habitual em crianças, tentava encher uma covinha na areia com água do mar, usando uma concha como balde. 

A morte não é nada. Somente passei para o outro lado do caminho.

Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês, continuarei sendo.

Dêem-me o nome que sempre me deram, falem comigo como sempre fizeram.

Vocês continuam a viver no mundo das criaturas,
eu estou a viver no mundo do criador.

Não utilizem um tom solene ou triste, continuem a rir
daquilo que nos fazia rir juntos.

Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.

Que o meu nome seja pronunciado como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo, sem nenhum traço de sombra ou tristeza.

A vida significa tudo o que sempre significou, o fio não foi cortado.
Porque estaria fora dos vossos pensamentos, agora que estou apenas fora das vossas vistas?

Não estou longe, apenas estou do outro lado do caminho…

Tu, que aí ficaste, segue em frente, a vida continua, linda e bela como sempre foi.

Engenheiro Patrício e Becas.

Um bonito texto, antigo de mil e quinhentos anos, alusivo e actual. Sim, eu, a quem já sobram mortos na vida, conseguia perceber bem isso da permanência deles connosco, aqui ao lado, do outro lado da rua.

Mas e o cão que sobrou, ruminava de regresso a casa, como explicar-lhe que o seu dono, apesar de nunca mais o poder ir passear à praia, continuava do outro lado do caminho?







(A Manuel Patrício, in memoriam)


© Fotografias obtidas a partir de Lena Tenreiro.

18 dezembro 2022

WAYWARD HEART (english translation of Coração Independente)

 

Pode ler a versão completa do livro carregando no link à direita em "outras páginas"
You can read the full version of the book clicking on the link in "outras páginas"

25 novembro 2022

A FILOSOFIA DA CANÇÃO MODERNA: em jeito de Prelúdio ao novo livro de Bob Dylan

Da esquerda para a direita: Little Richard, 
Alis Lesley e Eddie Cochran.
The Philosophy of Modern Song [A Filosofia da Canção Moderna] - Bob Dylan

Edição original: Simon & Schuster, Nova Iorque, Novembro 2022, 339 páginas.

Edição em português: tradução de Angelina Barbosa & Pedro Serrano, Relógio d'Água, Lisboa, Dezembro 2022.


Com Dylan, nunca se sabe. 

Se já teve oportunidade de passear os olhos pela lista das 66 canções comentadas no livro (pode consultar a lista no final deste texto), é plausível que se esteja a interrogar sobre a razão pela qual o autor optou por escolher estas e não outras. Mas Bob Dylan não nos informa nunca sobre as motivações da escolha, pelo menos de forma perceptível a curta distância. 

Ou, em alternativa, talvez possamos perguntar-nos se, sem margem para dúvida, estaremos perante 66 das melhores canções populares dos tempos modernos. Seria ousado afirmá-lo, mesmo recorrendo a alguns dos métodos possíveis para pesar a qualidade a uma canção, um dos quais, por grosseiro, consiste em olhar a amplitude e duração do seu sucesso público. Embora algumas das canções elegidas tenham alcançado sucesso planetário duradouro (como "Blue Moon," "Black Magic Woman," "Mack the Knife," "Strangers in the Night," "Volare," "Blue Suede Shoes" ou "My Prayer"), outras não passaram de êxitos já esquecidos ou exclusivamente circunscritos aos Estados Unidos da América.

Igualmente estão ausentes da selecção joias universalmente reconhecidas como tal, o que inclui aquelas de que o próprio Bob Dylan foi autor. Uma dessas ("Like a Rolling Stone," 1965) foi considerada, ao longo de décadas e em sucessivas votações especializadas, como a melhor canção pop de todos os tempos, e a última vez que tal sucedeu foi já em pleno século XXI (2004). Vamos supor que Dylan foi modesto ou quis evitar julgar em causa própria.

Quanto a um mérito que possa ser associado ao valor dos compositores das canções, não se encontra na lista canção alguma de autores/intérpretes que tenham deixado marca indelével na música popular—e na relacionada cultura global—e, mais naturalmente, a que corresponde à geração de Dylan: não se depara com uma canção dos Beatles, não há uma única composição de Leonard Cohen ou de Paul Simon (Simon & Garfunkel), nenhuma canção dos Velvet Underground, dos The Doors ou de Van Morrison, de Joni Mitchell, de Brian Wilson (The Beach Boys) ou de Chuck Berry. Tudo gente com quem Dylan privou de perto e admira, tendo mesmo referido Berry como o "Shakespeare do rock'n'roll".   

A páginas tantas, em observação marginal a uma canção que comenta, Bob Dylan deixa escorregar que um dos modos de avaliar a qualidade de uma música é pela quantidade de versões que outros fizeram dela. Mas mesmo seguindo essa sugestão não se chega a conclusão alguma, pois várias das canções dos ausentes que acabámos de citar geraram milhares de versões: "Yesterday," de Lennon e McCartney deu origem a cerca de três mil e "Hallelujah," de Leonard Cohen, acima das trezentas. Isto deixando, de novo, Dylan fora do concurso, uma vez que as suas canções engendraram, até à data, mais de cinco mil versões.   

Em que ficamos, então? Dylan, como é seu costume, faz o que lhe apetece e não se explica, tem até o gosto antigo de frustrar as voltas a quem tenta adivinhar-lhe tendências ou interpretar-lhe motivações. Ensaiemos, na tentativa de buscar o porquê de constarem aqui estas e não outras canções, o continuar a guiarmo-nos pelo peso de alguns números.

Das 66 canções escolhidas para comentário, a maioria foi originalmente lançada no mercado discográfico em single, um modo rápido de divulgar canções que se intuía poder estar destinadas a escalar ao topo das tabelas de êxitos nos dias em que a rádio era o principal veículo de difusão e o patrocínio comercial dos programas exigia uma interrupção da música de tantos em tantos minutos para que fosse passada publicidade. O single, ao contrário do LP (Long Playing), recorrendo a um suporte físico onde cabia apenas um par de canções (uma por face da estreita rodela de vinil) e tendo cada uma dessas faces a duração aproximada de três minutos, era o veículo ideal. Das canções escolhidas por Dylan, 37 (56 %) foram lançadas em single e 27 (41 %) dizem respeito a canções inseridas em LP, o que significa ter ele privilegiado as canções que singraram através do single, formato para consumo imediato e preparado para divulgação via rádio.

Olhar a data em que foram comercializadas estas canções permite-nos, até certo ponto, estabelecer uma conexão entre canções escolhidas/modo de divulgação: mais de metade (60 %) foram lançadas nos anos 50 e 60, época em que Dylan (nascido em 1941) contava entre dez e vinte anos de idade, isto é, estamos perante canções dos primórdios da sua formação musical, quando a rádio era praticamente o único meio para escutar música, sobretudo em local tão remoto como o Minnesota. Para além deste contingente maioritário, cerca de um quarto das restantes canções (26 %) respeitam às décadas de 70 e 80. As canções comercializadas em dias mais próximos de nós (anos 1990 a 2010) são apenas em número de quatro e uma delas ("Nelly Was a Lady") é, até, a versão recente de uma composição escrita em 1849. Igualmente quatro são as canções gravadas entre os anos 20 e 40 do século XX.  

Corroborando a importância e influência que a rádio teve em Bob Dylan, relembre-se que ao longo de três anos (2006 a 2009) o homem foi locutor de um programa de rádio de grande sucesso, chamado Theme Time Radio Hour. Como o nome indica, tratava-se de um programa temático e ao longo das suas mais de cem emissões foram glosados temas como nomes de mulher, a bebida, cães, o casamento e o divórcio, o tempo atmosférico, o hábito de fumar, etc. Na sua inconfundível e charmosa voz roufenha, mostrando grande talento como locutor, competia a Dylan ir comentando as canções que fazia ouvir, tecendo considerações aos intérpretes, ao ambiente em que a canção fora composta ou produzida comercialmente; revelando pequenas histórias relacionadas; ou entrelaçando reflexões sobre o tema do dia, o que podia incluir a leitura de poesia alusiva. Algo que, sob forma bastante mais desenvolvida, estruturada, reflectida e, até, mais livre no pensamento, volta a praticar nos capítulos do presente livro. Das 66 canções aqui contadas, cerca de um quarto foi passada nas emissões desse programa e, na sua quase totalidade, nas mesmas versões que Bob Dylan agora comenta.

E, mais uma vez, das mais de mil canções emitidas em Theme Time Radio Hour nenhuma teve como autor o locutor. 

. . . .

O que principalmente se encontra ao longo das páginas de A Filosofia da Canção Moderna são descrições, constatações e reflexões (técnicas, existenciais, sociais) feitas em tom coloquial e não poucas vezes tratando-nos por tu, considerações desencadeadas pelas canções escolhidas e que se espraiam aos intérpretes e compositores ou inclusive ao ambiente em que decorreu a génese ou a gravação dessas canções, canções que abarcam todo esse caldo rico e espesso que é a música dita popular: country e folkblues e rhythm & blues, gospel ou soul; uma mão cheia de rockabilly e rock'n'roll; uma pitada de jazz e de bluegrass. Conte ainda o leitor com a presença vincada e um gosto especial do autor pelos standards que os crooners e o jazz sempre se apressaram a interpretar e a adaptar aos respectivos mundos particulares.

Em alegre convivência e sem ordem aparente (cronológica ou outra), página a página desenrolam-se sob os nossos olhos canções de Elvis Costello e Bing Crosby, Little Richard e The Platters, Elvis Presley e Ray Charles, Hank Williams e Frank Sinatra, Nina Simone e Santana, Judy Garland e os The Who, Rosemary Clooney e os The Clash, entre muitos outros intérpretes, universalmente famosos ou nem por isso. Alguns, raros, terão direito a surgir com canções em mais do que um capítulo, como é o caso de Willie Nelson, Johnny Cash, Elvis Presley, Bobby Darin ou Little Richard. E certos deles, como sucede com Presley, Dean Martin, Johnny Cash ou Sinatra, verão os seus nomes ser amiudamente citados em comentários a canções interpretadas por outros.

Embora dominante nesta viagem, Dylan não se fica unicamente pela música norte-americana: com frequência chama por canções de nascimento europeu, mas não somente as de proveniência britânica, como seria de esperar num músico com as suas origens e língua materna. Para além dessas, há referências persistentes à chanson francesa, mas também à (primeiramente) alemã "Mack the Knife" ou à italiana "Volare (Nel blu, dipinto di blu)." O universo musical de raiz italiana é, aliás, omnipresente: repetidamente, quem lê tropeçará em cantores de voz velada e macia, americanos de nascença mas de ascendência itálica: tal vem a ser o caso com Frank Sinatra, Dean Martin, Bobby Darin, Perry Como, Dion ou Vic Damone.

A leitura evidencia igualmente o fascínio de Bob Dylan pelos crooners e pelos cantores de standards, fascínio já perceptível na fase da carreira em que se passeou quase exclusivamente por géneros como o folk, os blues e o rock, mais compatíveis com os anos que se viviam quando se tornou famoso. Em 1968, o álbum Nashville Skyline causou surpresa no público, pois nunca o repertório ou a voz de Bob Dylan tinham soado antes tão tranquilamente macios, e os críticos prontamente se arrepiaram com o perfume a Sinatra e Dean Martin que se exalava da obra. Indiferente, no disco seguinte (Self Portrait, 1970) Dylan vestiria de versões pessoais um renque de canções populares, uma das quais "Blue Moon," o clássico de 1934 de Hart e Rodgers tornado célebre pelas vozes de Mel Tormé, Billy Eckstine e Frank Sinatra, e de que Dylan escolheria a interpretação de Dean Martin para comentar no presente livro. Prestando tributo ao seu gosto duradouro por clássicos da música de entretenimento, três dos quatro álbuns mais recentes de Bob Dylan (Shadows in the Night, 2015; Fallen Angels, 2016; e Triplicate, 2017), são totalmente preenchidos por tentativas em recriar nada mais nada menos do que cinquenta e dois standardsda música popular das décadas de 30, 40 e 50 do século XX. 

Mas na órbita do rol das principais canções escolhidas gravitam centenas de outras músicas e de outros autores e intérpretes a que Dylan se irá referindo, seja porque se entrelaçam com as canções alvo de comentário seja para ilustrar a teoria (que lhe é querida e uma constante na música folk) de que todas as canções—como todas as obras de arte—vão nascendo umas das outras, e de que tudo influencia tudo. A esta luz surgem no texto referências à influência de linhas corais da Paixão Segundo S. Mateus, de Johann Sebastian Bach, em "American Tune," de Paul Simon, ou de um andamento de uma sinfonia de Rachmaninoff sobre a melodia de "Never Gonna Fall in Love Again," de Eric Carmen, sucesso na voz do próprio compositor, mas igualmente nas de Tom Jones ou Frank Sinatra.

Para além da imitação como fonte de criação, Dylan discorre sobre uma outra questão, também frequentemente discutida a propósito da música cantada: o que é mais importante numa canção, a melodia ou as palavras? Como seria de esperar, Bob Dylan não toma partido por nenhum dos polos da questão, mas não deixa de trazer à colação, como contraponto ao alemão—idioma, segundo ele, apropriado a festivais de cerveja—a maravilhosa qualidade plástica e melódica da língua italiana, ou de ir deixando escapar como está longe de ser essencial compreender uma só palavra de português para sentir que o fado é um género musical que "pinga tristeza". Dentro deste tópico das letras, Dylan lembra ainda que as palavras usadas para servir uma canção não devem sujeição à lógica da linguagem, escrita ou falada, e que, ao invés do que se deseja a um texto ou a um diálogo, é musicalmente adequado repetir e voltar a repetir as mesmas palavras, exemplificando o paradoxo com versos das canções "Black Magic Woman," e "Keep My Skillet Good and Greasy." 

Ocasionalmente, Bob Dylan nem ao menos perde tempo a comentar a canção que escolheu comentar, desprezando-a ou ignorando-a totalmente e lançando apenas mão ao nome da canção para considerações relacionadas com esse nome, como sucede em "On the Road Again," de que usa o título unicamente para se alongar em cogitações sobre a sua experiência numa banda de música itinerante; em "Saturday Night at the Movies," em que aproveita a boleia para nos falar longamente de cinema; ou em "I Got a Woman," em que fabrica um pequeno conto cujo entrecho é o oposto do sentido da canção original e no qual o ponto de ligação entre ambos é o solo de saxofone que o protagonista principal batuca no volante do automóvel, ao mesmo tempo que vai ouvindo essa canção de Ray Charles.

Assim, num fraseado inteligente, divertido ou provocatório, pleno de duplos sentidos (não poucos deles musicais e dizendo respeito tanto à melodia como à rima), vai Dylan delineando e desenrolando a narrativa, servindo-se de canções alheias para discorrer sobre temas que, desde sempre, lhe são queridos: a estrada, o ir-se embora e a nostalgia da terra natal; os fora-da-lei e os seres solitários e à margem da sociedade; a hipocrisia; o valor da frugalidade na existência; as mulheres e o amor impossível; o cinema, a literatura e, claro, a música e os temperamentos de quem a pratica. E, igualmente, o tempo e o efémero da fama e do sucesso, a invencível derrota sempre associada ao desfolhar dos dias. 

Embora raramente se revele pessoalmente e directamente, ao seguir a leitura torna-se perceptível de onde veio, no que se lhe prende o olhar e a atenção, o que gosta e o que menospreza este homem, descendente de judeus de Odessa e nascido em 1941 em Duluth, pequena cidade mineira do Minnesota, como Robert Zimmerman. 

Quanto às canções que decidiu comentar, sem o incómodo de explicar porque o faz, uma coisa é certa: após a leitura—e sendo-nos ou não familiares anteriormente—dificilmente as voltaremos a escutar com os mesmos olhos. 

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 Todas as 66 canções podem ser encontradas no Spotify ou no  YouTube nas versões que Dylan optou por comentar. A excepção é "Nelly Was a Lady," em que Bob Dylan recorreu a uma versão interpretada por Alvin Yongblood Hart (2004) e da qual, à data, não se consegue acesso nesse site. Mas, desta canção, composta por Stephen Foster em 1849, podem ser ali ouvidas várias outras interpretações. 

No que diz respeito às letras das canções, é fácil encontrá-las na Internet, mas recomenda-se que, sempre que possível, se prefiram sites oficiais na consulta, uma vez que não é raro depararmo-nos com versões apressadamente transcritas e não correspondendo ao original, não só na transcrição das palavras, mas particularmente na disposição métrica dos versos das estrofes.

 

 

   Listagem das canções comentadas e intérpretes 


1. Detroit City (Bobby Bare) / 2. Pump It Up (Elvis Costello) / 3. Without a Song (Perry Como) / 4. Take Me from This Garden of Evil (Jimmy Wages) / 5. There Stands the Glass (Webb Pierce) / 6. Willy the Wandering Gypsy and Me (Billy Joe Shaver) / 7. Tutti Frutti (Little Richard) / 8. Money Honey (Elvis Presley) / 9. My Generation (The Who) / 10. Jesse James (Harry McClintock) / 11. Poor Little Fool (Ricky Nelson) / 12. Pancho and Lefty (Willie Nelson and Merle Haggard) / 13. The Pretender (Jackson Browne) / 14. Mack the Knife (Bobby Darin) / 15. Whiffenpoof Song (Bing Crosby) / 16. You Don’t Know Me (Eddy Arnold) / 17. Ball of Confusion (The Temptations) / 18. Poison Love (Johnnie and Jack) / 19. Beyond the Sea (Bobby Darin) / 20. On the Road Again (Willie Nelson) / 21. If You Don’t Know Me by Now (Harold Melvin and the Blue Notes) / 22. The Little White Cloud That Cried (Johnnie Ray) / 23. El Paso (Marty Robbins) / 24. Nelly Was a Lady (Stephen Foster) / 25. Cheaper to Keep Her (Johnnie Taylor) / 26. I Got a Woman (Ray Charles) / 27. CIA Man (The Fugs) / 28. On the Street Where You Live (Vic Damone) / 29. Truckin’ (Grateful Dead) / 30. Ruby, Are You Mad? (Osborne Brothers) / 31. Old Violin (Johnny Paycheck) / 32. Volare (Domenico Modugno) / 33. London Calling (The Clash) / 34. Your Cheatin’ Heart (Hank Williams) / 35. Blue Bayou (Roy Orbison) / 36. Midnight Rider (The Allman Brothers) / 37. Blue Suede Shoes (Carl Perkins) / 38. My Prayer (The Platters) / 39. Dirty Life and Times (Warren Zoe) / 40. Doesn’t Hurt Anymore (John Trudell) / 41. Key to the Highway (Little Walter) / 42. Everybody Cryin’ Mercy (Mose Allison) / 43. War (Edwin Starr) / 44. Big River (Johnny Cash and the Tenessee Two) / 45. Feel So Good (Sonny Burgess) / 46. Blue Moon (Dean Martin) / 47. Gypsies, Tramps & Thieves (Cher) / 48. Keep My Skillet Good and Greasy (Uncle Dave Macon) / 49. It’s All in the Game (Tommy Edwards) / 50. A Certain Girl (Ernie K-Doe) / 51. I’ve Always Been Crazy (Waylon Jennings) / 52. Witchy Woman (The Eagles) / 53. Big Boss Man Jimmy Reed) / 54. Long Tall Sally (Little Richard) / 55. Old and Only in the Way (Charlie Poole) / 56. Black Magic Woman (Santana) / 57. By the Time I Get to Phoenix (Jimmy Webb) / 58. Come On-a My House (Rosemary Clooney) / 59. Don’t Take Your Guns to Town (Johnny Cash) / 60. Come Rain or Come Shine (Judy Garland) / 61. Don’t Let Me Be Misunderstood (Nina Simone) / 62. Strangers in the Night (Frank Sinatra) / 63. Viva Las Vegas (Elvis Presley) / 64. Saturday Night at the Movies (The Drifters) / 65. Waist Deep in the Big Muddy (Pete Seeger) / 66. Where or When (Dion).          

 pedro serrano, 22 outubro 2022.

11 novembro 2022

O ELOGIO DO ARGUIDO

Na sequência da demissão do seu secretário de estado mais querido (Miguel Alves, um paleante de Caminha), António Costa saltou de imediato ao terreiro para dizer o quê? Que ser arguido, estatuto com que Miguel Alves foi premiado, é até uma coisa boa e que os portugueses, ao pensar o contrário, só mostram uma grande iliteracia em matéria de Justiça. Sim, que o primeiro-ministro sabe do que fala e até relembrou aos jornalistas já ter sido ministro da Justiça. 

Mas recordemos o que se passou: este tal de Miguel Alves, até há poucos meses presidente da câmara de Caminha, usou 300.000 euros dos contribuintes para pagar, sem garantia alguma, a entrada para um pavilhão que iria ser construído numas bouças de Caminha, pavilhão que não existe, nunca existiu, nem vai existir: ou seja, 300 mil euros para o tecto. Segundo Alves, o negócio era sólido, assim como o seu parceiro no negócio, firmado com um outro rapaz que se intitula doutorado (phD, como o próprio teve o cuidado de esclarecer) embora não o seja! Este senhor, com quem Miguel Alves andava a cozinhar o arranjinho, é dono de umas 50 firmas mais ou menos fantasmagóricas, sem negócios em curso, algumas falidas, firmas que, tal como o tal pavilhão, não passam do papel. Pelos vistos, com a excepção dos 300.000, tudo se passa no domínio dos unicórnios e da realidade virtual.

Pois sobre tudo isto veio o primeiro ministro dizer-nos que não senhor, que ser arguido pode até ser uma coisa boa, distintiva, pois, entre outras vantagens, permite a uma pessoa não responder quando questionado pelas autoridades, ainda mais fácil do que a chatice de ter de alegar Alzheimer, arranjar atestado médico, etc. Ele sabe-o bem, pois, segundo disse, também já foi arguido.  

Perante esta distinção, é de propor que as pessoas passem a incluir nas habilitações do seu currículo o já ter sido, ser ou estar para ser arguido aos olhos da Justiça. Passaria a ser considerado um parâmetro de valorização positiva e faria com que os candidatos a qualquer emprego ou posição política ombreassem com outras grandes figuras da cena portuguesa que, por vezes com grande esforço pessoal, alcançaram esse honroso estado: José Sócrates, Ricardo Salgado, Manuel Pinho, Joe Berardo, Duarte Lima, Joaquim Couto, Isaltino Morais, Vale e Azevedo, Luís Filipe Vieira, a lista é longa e peço desculpa aos que me esqueci de referir. 

13 outubro 2022

ATIRA-ME ÁGUA-BENTA

Deplorável, o comportamento do presidente da república em relação aos abusos sexuais da Igreja em Portugal, e que fez com que um amigo meu se lhe referisse impiedosamente como o "Santinho dos Pedófilos".

Após a previsível gincana de ocultação, branqueamento e menorização por parte da hierarquia da Igreja (dos relatos chegados à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja somente 2 % foram declarados por iniciativa da Igreja), gincana que teve um pouco de tudo, desde um prémio Nobel da Paz em parte incerta, a bispos que encobrem subordinados e outros que desconhecem a lei e acham tudo isto apenas uma transitória e exagerada nuvem, esperava-se que um Presidente da República se comportasse de modo compatível com a dignidade, a neutralidade e a representatividade ampla do cargo para que foi eleito. E o que faz o homem? Telefonemazinhos a avisar bispos suspeitos de encobrimento de abusos de que vão ser alvo de aperto por parte da Lei e, como se não bastasse como indignidade, apressa-se a vir declarar sibilinamente que os 424 casos comunicados à Comissão são coisa pouca, que esperava até pior, fazendo, de imediato, lembrar a sinistra secretária de estado da Protecção Civil quando afirmou que, segundo os algoritmos, deveria ter ardido muito mais floresta do que ardeu....

Marcelo tem uma costela de bisbilhoteiro, outra de beato e uma terceira de torcer sempre pelo lado de quem manda ou tem pergaminhos. Tudo isso ajuda a explicar que não consiga estar calado e venha dar a sua mãozinha à Igreja nesta sua hora difícil, mormente àqueles que dentro dela têm mão beijável e guardam a chave da casa... E despachou-se a vir a público menorizar o cômputo da Comissão: que são até relativamente poucos os casos, sobretudo considerando o intervalo de tempo imenso que foi facultado aos possíveis queixosos, que há gente a poder queixar-se já com 90 anos, a quem essas coisas sucederem há 60 anos, etc. e tal. Dito de outro modo: o que pode esperar-se de fiável de alguém com noventa anos, ou exigir de precisão a uma memória com mais de 60 de tempo decorrido sobre os acontecimentos? Marcelo é premeditado e retorcido a disparar as suas balas de fragmentação. É possível que agora, após a indignação geral que assolou o país na sequência do seus ditos e comportamento, o presidente se apreste a condecorar, com as honras dos dourados, os membros da Comissão... Atira-me água benta, como cantavam os GNR. 

Quem também se apressou a vir a público defender Marcelo foi António Costa - que contente deve ele estar com esta nova pantomina do presidente. É mais uma que Belém lhe fica a dever... Venham mais patas na poça como esta que, a pouco e pouco, S. Bento ir-lhe-á passando uma laçada suave pelo pescoço - depois será só puxar a trela; com etiqueta, é claro, e eis o velhinho neutralizado. Um dia destes, mais cedo do que o esperado, uma vez que Marcelo não se aperta por muitas horas, o primeiro-ministro estará na posição confortável de, em tom compreensivo e paternal, poder vir afirmar sorridente que mais aquela afirmação de Belém não passa de um dos queridos e inofensivos exageros do nosso presidente, que o povo já sabe como ele é e por isso o adora...   

10 agosto 2022

"SENSAÇÕES QUE EU FINTO" (o nosso homem no Katar)

Mesmo assim, a crer na foto, ainda parece ser no cabelo que Manuel Gomes Samuel, diplomata e representante de Portugal no Katar, tem mais-valia de melanina ou, talvez, mais ferrugina acrescentada...

Não querendo ficar atrás no pódio das idiotices, este artista português, que acumula a diplomacia com a cantoria pimba e tem várias composições na Net (uma dela intitulada "Loucura", de que deixo a letra inspiradora mais abaixo) veio dizer à TV que quanto mais preto um tipo for maior resiliência possui e mais apto está a trabalhar ao ar livre em países com temperaturas acima dos 40 graus, como é o caso dos emirados árabes. Esta constatação científica do Nosso Homem em Doha, um alto funcionário do Estado, deveria ser aproveitada de imediato por Marta Temido, que advoga igualmente uma maior resiliência dos profissionais do SNS, ou pelos Bombeiros Portugueses, na luta contra o inferno dos incêndios, pois este género de trabalhadores, graças à alta concentração em melanina, resiste a tudo e, quem sabe, permitiriam até a poupança das golas anti-fumo do saudoso ministro Cabrita. Viva a melanina, embora, a crer na letra de "Loucura" a cor preferida de MG Samuel, nome artístico do embaixador, seja o vermelho-tinto.

Na mesma entrevista, durante a qual exibiu o ar vaidoso e satisfeito de quem está a atingir o seu momento de glória, MG Samuel aconselhou ainda todas as tribos gay, que se venham a deslocar ao Katar durante o mundial, a evitar ser invadidos pelo cio (para usar uma frase da sua canção) e manter durante a estadia decoro no comportamento, para não chocar os autóctones, que, embora usem vestidos compridos e toucados, gozam da fama de ser muito púdicos. "Mantenham o brio", porra, como advoga o nosso embaixador cantante.

E, agora, a fantástica letra de "Madness": 


Tudo começou num momento de miragem / Eu estava lá vendo a tua imagem / Quando de repente, tu te foste embora / E eu fiquei sentado, mais de uma hora / Olhando para o vazio do horizonte fora / À espera que tu voltasses para onde a gente mora / Isto é loucura, loucura que eu sinto / Desejos frustrados, sensações que eu finto / Mentiras escondidas, mas eu não minto! / Amor forçado, de côr vermelho tinto Quando eu deixei de estar ao teu lado a vida deixou de ter significado... / Quando eu deixei de estar ao teu lado a vida deixou de ter significado, para sempre... / Tudo foi um sonho, um sonho que ruiu / E eu iludido de esperanças sem fio / Desejando uma mulher que ninguém viu Uma cara e um corpo num espelho que se partiu / Senti-me desesperado, invadido pelo cio / Mas vi-me obrigado a manter o brio Isto é loucura, mas eu não minto / Amor forçado, para sempre.

30 julho 2022

É CONSIGO, ISSO DO FRUTO DO SEU VENTRE


Cara leitora, se é candidata a grávida aceite um conselho: evite os signos zodiacais de Caranguejo, Leão e Virgem para horóscopo do seu futuro bebé, isto é fuja, como o Diabo da cruz, dos meses de Verão para término do feliz desenlace! De outro modo irá ter de andar a consultar o Portal do SNS (cada vez mais parecido com o Borda d'Água) para identificar quais as maternidades abertas ou fechadas no dia do parto, antes e após a meia-noite, ao fim de semana; irá, igualmente, ter de consultar os portais da Administração Interna para aferir se alguma das estradas por onde terá de percorrer dezenas ou centenas de quilómetros irá estar cortada por incêndios; irá ter de ir ao site do INEM procurar quantas ambulâncias estão como as esquadras móveis da polícia do Porto, isto é escangalhadas. Cara leitora, evite os meses de Verão para ter o seu, outrora, feliz acontecimento, transformado em angustiante acontecimento desde que o Serviço Nacional de Saúde ser transformou no Serviço Nacional da Inacessibilidade. 

E apesar de uma gravidez não ser doença siga os conselhos do Presidente da República e da Ministra da Saúde, que aconselham a não adoecer no Verão. E, se for teimosa e insistir em parir o fruto do seu ventre, prepare-se a acusação de ser a culpada pela situação e siga, ao menos, os conselhos da Directora-Geral de Saúde: não inclua bacalhau à Braz na sua ração de combate e enfie na mochila uma camisa de dormir e um garrafão de água para as horas que irá esperar em todos os serviços de urgência por onde terá de penar até que o seu bebé possa, finalmente, ver a luz do dia em relativa segurança.

Ao arrepio da conversa da treta sobre incentivos à natalidade, em cada um dos últimos dois meses morreu um quase-bebé por falta de atendimento nos hospitais onde as mães recorreram e era suposto terem recorrido: o primeiro, em Junho, nas Caldas da Rainha e, já esta semana, o segundo no Hospital de Santarém. A história desta segunda morte é macabra e evidencia negligência a toda a prova da rede dos Serviços de Saúde do Estado. Uma grávida de 41 anos (idade, por si só, condicionante de alto risco para gravidez e parto), seguida na gravidez por médico particular, estando em fim de tempo para parir apresentou-se no hospital da área de residência (Abrantes) com uma carta do médico assistente, resumindo a sua situação clínica e aconselhando que aí passasse a ser enquadrada nas poucas horas que faltavam para o parto e, depois, no parto em si. Uma obstetra, escudando-se na situação de a urgência de Obstetrícia estar "em estando de contingência" (essa fantasia trapaceira inventada pela Ministra da Saúde), atendeu-a com maus modos num corredor, em pé, negando-se a ler a carta do colega, por esta vir da "Privada" e recusando-se a tomar conta da situação. A grávida que fosse, pelos seus próprios meios, bater a outra porta... Aflita, a senhora foi bater à porta que lhe indicaram: Santarém, a 100 km de casa! Mas era tarde quando aí chegou e a criança já estava morta no útero, tendo a já martirizada mãe sofrido o horror de dar à luz um ser de imediato destinado ao cemitério. Desumano e evitável. 

Quando o caso veio a lume, o hospital de Abrantes fez o que geralmente fazem os serviços públicos, que é negar tudo e acusar a vítima de ser a culpada pela situação. O hospital de Abrantes apressou-se a dizer que não havia "registo" de essa senhora lá ter ido e, paralelamente, que (agora já segundo os seus "registos") tal pessoa não tinha tido a gravidez seguida nesse hospital, implicando sub-repticiamente a não-obrigação em receber a parturiente, como se houvesse um qualquer sistema de fidelização, tipo assinatura de telemóvel, e uma grávida tivesse de ser seguida em local X para, depois, ser atendida no parto nesse local X. Bela leitura da Constituição e do muito propalado Direito à Saúde! 

Durante um dia ou dois, talvez mais, o Hospital de Abrantes continuou a insistir nessa de "não haver registo" como se pudesse haver registo formal de uma situação que é despachada, em maus-modos, numa conversa de corredor. Que mais seria necessário para assumirem que a senhora procurou os seus serviços? Visionar as gravações do sistema de videovigilância do hospital, como faz a polícia com os criminosos? E que raio de Obstetra é essa que, estando ao serviço e tendo à sua frente uma grávida de risco (pela idade) e em fim de tempo, se recusa a ler a comunicação de um colega sobre o caso e corre a parturiente dali para fora sem sequer avaliar o caso? Que juramento profissional fez ela, quando se comprometeu, como médica, a não negar assistência a ninguém que lho peça e o necessite? A situação, que tem vindo a ver a luz do sol à medida que os implicados são apertados pela comunicação social, compagina, no mínimo, deficiente ética profissional e negação de assistência médica dentro de um estabelecimento oficial prestador de cuidados de saúde.

E de Abrantes para cima? Lacerda Sales (secretário de estado da Saúde) veio, sem compromisso e com presteza, anunciar dois inquéritos, como quem reforça o nó num embrulho. Dois dias antes, na TV, o mesmo senhor tinha anunciado que tudo estava sob controlo no mundo da Obstetrícia e que o novo funcionamento em rede dos serviços iria garantir que ninguém ficasse sem os cuidados, rebéubéu pardais sem ninho. Mas e a patroa dele, que aparenta ter desaparecido do mapa e empurra Lacerda, que sempre evidencia maior poder anestesiante, para a frente das câmaras? Bem, uns dias antes desta tristeza desatada, quando os jornalistas a questionaram sobre o novo agravamento do estado das urgências e do atendimento obstétrico, afirmou rispidamente que o facto não era nenhuma novidade para ela e que já tinha, até, avisado que isto ia acontecer! Temido ficou encravada no pensamento pandémico, ao que parece, e esta parece uma velha frase rebuscada aos tempos do Covid19 e em que ela gostava de prometer algo como "ainda vai piorar antes de melhorar". Enquanto aguarda um director executivo para o SNS que passe a assumir todas estas chatices, Marta comporta-se em modo 'maioria absoluta' - embora tenha responsabilidade por tudo isto, na verdade não tem que sentir responsabilidade por nada. Prefere viver na recordação doce do tanto de bom que se fez e não se afligir muito a pensar neste presente em que já falham as urgências de pediatria e as urgências em geral, não apenas as de Obstetrícia. E se, dantes, tudo isto era apenas mazela do pobre interior do país, a mancha alastra já aos grandes hospitais centrais da capital. É mesmo caso para se dizer: que seca extrema!