29 janeiro 2023

O OUTRO LADO DO CAMINHO


 

Becas.
E
ncontrava-o todas as semanas, o que, amiúde, é falar por defeito. Por vezes, via-o dia sim, dia não, ou mesmo todos os dias. 

Morava à distância de duas casas e costumava passar pela minha porta a ir passear os cães ao fim da tarde. Sempre Serra da Estrela, enormes, felpudos e com aquele ar pachorrento que esses cães aparentam. Antigamente, eram dois que seguiam pela trela, quase me parecia que conduzia um trenó pela rua fora.

"Olá, engenheiro...", cumprimentava do lado de dentro do meu portão do quintal.

"Olá, doutor...", devolvia ele com um sorriso acolhedor e tranquilo. 

E seguia, em marcha pausada, pela rua fora, a caminho da praia e do poente, que nem ele nem os cães podiam dispensar isso.

Os anos passaram e os cães, que habitualmente duram menos do que nós, foram morrendo e sendo substituídos por outros, para mim iguais aos anteriores. Ultimamente, era só um cão que ele guiava, a caminho da praia ao fim de tarde. 

A missa de corpo presente foi na igreja aqui ao lado, pelas seis e meia da tarde, aproximadamente a hora a que costumava andar em passeio com os cães. Como são, pouco mais ou menos, uns duzentos metros daqui até lá, fui a pé. Estava um fim de tarde gelado e nítido de um dia de Janeiro e, em frente aos meus olhos, o céu pintava-se de um azul irreal de manto de Virgem e nesse azul demasiado puro penduravam-se, aqui e ali, muito aprumadas, meia-dúzia de pequenas nuvens bem recortadas, macias e douradas como se tivessem sido imersas na calda do sol. Desci a rua fitando esse céu e, de súbito, adivinhando que emprestava os meus olhos aos olhos do engenheiro, para que ele pudesse ver um último poente na sua rua.  

De facto, ia pensando durante a cerimónia, eu conhecia o homem há mais de trinta anos, desde que me mudara para vir viver onde moro. Ele já por aqui andava, engenheirando, topava com ele nas esplanadas dos cafés da praia, nas ruas, na vila, por vezes. A cena dos cães sobreveio mais tarde, quando se reformou, pois o coração dele nunca ficou muito bom desde aquele primeiro enfarte. A última vez que o vi terá sido num café da vila que, nesses dias da primeira semana de Janeiro, se atarefava a vender bolos-reis. 

"Estou habituado a vê-lo na Praia, não sabia que parava por aqui...", disse-me do balcão onde encomendava doces de pós-Natal para o novo ano.

"Sim, sou frequentador assíduo..."

"Bom Ano, doutor", desejou-me.

"Bom Ano, engenheiro", desejei em retorno.

A missa teve uma duração moderada, o padre era discreto e alguns dos membros mais jovens da família cantaram cânticos, acompanhados à viola, em voz contida; à vez, subiram ao altar a ler trechos dos evangelhos.

Sim, há muitos anos... Um dia, no Verão de 1996, estava eu internado, ia para dois ou três dias, no hospital de Torres Vedras, a recuperar, a arrastar-me em direcção à superfície de um enfarte do miocárdio brutal, quando vi abrir-se a porta da enfermaria e colocarem na cama em frente à minha um doente que se contorcia com dores. Dores no peito, tremendas, demoraram eternidades a serem pacificadas e eu em frente, deitado, incomodado e inútil, a assistir a tudo. Quando o coração dele se acalmou e o homem adormeceu, reconheci nele o engenheiro Patrício, que construía à época uma casa ao lado da minha. O enfarte surpreendera-o na obra, quando andava, de cigarro na boca, a transportar material de construção. Fomos colegas de enfarte e, por vezes, quando nos encontrávamos na nossa rua, parávamos a falar disso com a contenção de tipos recordando episódios que, como cenas de guerra e de combate, se devem manter íntimos.

"Faz esta semana quinze anos que estivemos lá em Torres, nos Cuidados Especiais..."

"Quinze anos", espantava-se ele, "já?!" 

Durante a missa, um filho subiu ao púlpito e leu um trecho de Santo Agostinho, santo que viveu entre os longínquos anos de 354 e 430, e a quem um dia, numa praia, terá aparecido o Menino Jesus que, como é habitual em crianças, tentava encher uma covinha na areia com água do mar, usando uma concha como balde. 

A morte não é nada. Somente passei para o outro lado do caminho.

Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês, continuarei sendo.

Dêem-me o nome que sempre me deram, falem comigo como sempre fizeram.

Vocês continuam a viver no mundo das criaturas,
eu estou a viver no mundo do criador.

Não utilizem um tom solene ou triste, continuem a rir
daquilo que nos fazia rir juntos.

Rezem, sorriam, pensem em mim.
Rezem por mim.

Que o meu nome seja pronunciado como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo, sem nenhum traço de sombra ou tristeza.

A vida significa tudo o que sempre significou, o fio não foi cortado.
Porque estaria fora dos vossos pensamentos, agora que estou apenas fora das vossas vistas?

Não estou longe, apenas estou do outro lado do caminho…

Tu, que aí ficaste, segue em frente, a vida continua, linda e bela como sempre foi.

Engenheiro Patrício e Becas.

Um bonito texto, antigo de mil e quinhentos anos, alusivo e actual. Sim, eu, a quem já sobram mortos na vida, conseguia perceber bem isso da permanência deles connosco, aqui ao lado, do outro lado da rua.

Mas e o cão que sobrou, ruminava de regresso a casa, como explicar-lhe que o seu dono, apesar de nunca mais o poder ir passear à praia, continuava do outro lado do caminho?







(A Manuel Patrício, in memoriam)


© Fotografias obtidas a partir de Lena Tenreiro.

6 comentários:

  1. Nice post thank you Elizabeth

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  2. Bem haja! Muito obrigada pela partilha!

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  3. Magnifico. Enternecedor
    Comovente . Às lágrimas
    MUITO OBRIGADO
    Tantas saudades, querido mano. Tu és assim
    🙏💖

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    1. Olá, muito obrigado pela sua mensagem. Fico contente que tenha gostado

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  4. Dr Serrano, um obrigado muito grande da parte do neto do Sr Engenheiro! Gostei muito muito de ler isso, deu para ver um lado que não conhecia do meu avô (o lado da rotina). Quando estava connosco, tudo o resto era indiferente, fazia sempre uma festa enorme! Vinha com um sorriso de orelha a orelha sempre cheio de coisas nas mãos- fosse os doces que fazia com carinho, ou as hortenses que trazia para as casas ficarem bonitas, ou o típico pão da areia branca quentinho estaladiço.
    De facto não conhecia essa parte da vida dele mas consigo dizer com certeza que assim era, porque o avô Manel era assim mesmo: bom coração, amigo das pessoas.

    Mais um vez obrigado pelo testemunho. Soube muito bem ler!

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    1. Olá, Neto, obrigado pela mensagem e pelas palavras bonitas sobre o seu avô, nomeadamente sobre as hortenses que, na minha terra (Porto), chamamos hidranjas. Quanto ao seu avô, lembro-me dele amiúde e, por vezes, penso que vou virar uma esquina da Praia e encontrá-lo a manter a Becas na linha...

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