30 junho 2011

AS TIME GOES BY

Casualmente, A. comentou que vira um, único, cabelo branco na cabeça morena do meu filho de vinte e dois anos. A revelação caiu-me como uma pedra num poço... Primeiro atravessou a superfície clara, um céu reflectido e em recato, depois desceu por camadas ainda pintalgadas de luz, mas a sua pressa foi sendo arrefecida pela sombras cada vez mais espessas, até pousar, como um ovo num ninho, no silêncio macio das lamas do fundo.
Nenhum livro me ensinou nunca em tão pouco o tempo.


Nota: "As Time Goes By" é o título de uma canção de Herman Hupfeld, imortalizada no filme Casablanca, de Micahel Curtiz (1943). 


© Fotografia de Pedro Serrano, Mértola, 2008.

27 junho 2011

CHAMA-ME ZULMIRO!

Beira-mar. Depois do braseiro de ontem, e dos dias precedentes, hoje corria uma brisa benévola, carregada daquele aroma a maresia que, de imediato, me mergulha na minha juventude à borda d'água.
À minha esquerda na esplanada, uma senhora, concentradíssima na tarefa e ignorando os apelos do mar vizinho, corrigia testes, a esferográfica vermelha, erecta e de tampa a condizer com a cor das unhas das mãos e dos pés, aguardando, atenta, a oportunidade de intervir sobre o papel e aí deixar pertinente comentário, quiçá um suficiente menos ou um medíocre +.
Como um papagaio ébrio, solta no azul da tarde, a minha mente regressou aos tempos do liceu em que o sonho de qualquer aluno do meu género seria poder penar os 50 minutos que durava uma aula vendo flanar no estrado, ou esticando-se para escrever no cimo do quadro-negro, uma pintura semelhante. Isso, sim, tornava qualquer disciplina interessante. Eram, no entanto, recursos inexistentes nesses tempos pré-liberdade, o que explica o ar sisudo e grave dos licenciados da minha geração. 
E, agora, ali estava ela, feita carne-e-osso, o maço de pontos ainda por corrigir, presumivelmente ordenado por ordem alfabética, pousado sobre a sua morena e tépida coxa estival.
Paguei, levantei-me e fui dar milho às gaivotas... 


© Fotografia de Pedro Serrano, Matosinhos, Junho 2011 (o autor agradece à Buondi a gentil intercessão que evitou o dever de obter um consentimento informado do modelo).

25 junho 2011

D'AMOR NÃO MORREU, MAS QUASI


D’amor não morreu, mas quasi
Num dia branco de Outono
Ao despertar do seu sono
Meu coração naufragado,
São Sebastião lanceado
Por Cupido ao abandono,
Que após pirueta rasgada,
Se esgueirou célere pr’a casa,
Antes que alguém o acusasse
Antes que a mãe o chamasse.

D’amor não morreu, mas quasi
Sob uma cadeira tombado,
Meu coração afogado
Num paúl de choro e lamento
Esguichando sentimentos,
Derramando pensamentos,
Oh, convulsivos momentos,
Pudesse eu um dia esquecê-los
Pudesse um dia eu revê-los.

D’amor não morreu, mas quasi
Esperando ser chamado,
Ansiando ser tratado,
Aguardando a sua vez
Na fila das manhãs de espera
Às portas de um hospital,
Meu coração passou mal.
E se conservou a ilusão
(De tintura e algodão)
Que tudo pode ser consertado
Ali foi desenganado.

D’espanto não morreu, mas quasi
Com o mágico de tez distante
Que, ao rematar o diagnóstico
E revelando o prognóstico,
Anunciou em tom cortante:
“Vida, só com transplante.”
Meu coração foi-se abaixo,
Mas por apenas um minuto,
E, com um ar grave de luto,
Recorreu da decisão:
“Quero uma outra opinião.”

Por ti não morri, mas quasi
És um parvo, coração,
E se me sobrasse algum tino
Deixava-te já num vidrão
Ou nos escombros poeirentos
De uma obra em construção.
Mas não passas de um menino
A quem rebentou o balão
E eu cumpro o meu destino
De te amparar o caminho
De te levar pela mão.

D’amor não morreu, mas quasi
Coração dormita agora,
Esquecendo a qualquer hora
Em que pode findar seu bater.
Mas que posso mais eu fazer?
Todo o dia, a noite inteira,
Em silêncio, à sua beira,
Quebro a luz ao candeeiro,
Acomodo o travesseiro,
Entalo-lhe o cobertor.
E, se em gelada vigília,
Farejar na madrugada
O desamarrar dos laços
Que, ténues, o ligam ao ser
Toma-lo-ei nos meus braços,
Cerrarei seus olhos baços
Para que, enfim, possa morrer.
(É quanto me sobra aprender.)


© Fotografia de Pedro Serrano, Porto, 2011.

24 junho 2011

VOU-TE CONTAR: 37. Desembrulha, amor!


Manhã gloriosa de S. João. Decidimos ir ao horto tomar o pequeno-almoço e, na empreitada, comprar um manjerico para abrilhantar e aromatizar a sala de estar da casa do meu pai, anémica por integrar agora os aposentos tristonhos de uma casa fechada vai para três anos.
O Horto da Quinta do Tronco, aqui ao fundo da rua, aproveitou uma velha casa agrícola, conhecida outrora como a Quinta do Bravo, e tornou-se num enorme hangar de cobertura amovível e paredes de granito, repleto de plantas ornamentais, bonsais, flores para todos os gostos e ocasiões, velas, incensos; vasos, floreiras, pires e outros tipos de recipiente que alegram o espaço com a sua cor cremosa de tijolo e o seu buraquinho redondo, com jeito de umbigo, por onde se escoarão os excessos de rega de donas de casa pressurosas.
O dono do Horto é um tipo vivaço e, como se não bastasse tanta variedade, onde até se encontra, para venda, uma pontezinha arqueada de madeira, como aquelas que se veem, mirando os nenúfares, nos quadros impressionistas, integrou na área as amenidades de um café com esplanada e tornou todo o recinto wireless, de modo que é vulgar encontrar por ali gente nova a teclar em computadores ou obsessivamente agarrada aos monitores.
Pedi um croissant com fiambre, aquecido, um Sumol de ananás – nada como começar uma manhã são-joanina de forma dieteticamente incorrecta. A empregada é uma moçoila despachada, de t-shirt, rabo-de-cavalo e calças de fato de treino, acoplados a um olhar transbordante de curiosidade desafiadora e evidente gosto pelo convívio. Quando se afasta, após pousar na mesa de madeira às ripas e bancos corridos, o pequeno-almoço e o cartão electrónico com a despesa, reparo que ostenta no tornozelo direito, logo acima do rebordo dos ténis, uma tatuagem representando a clássica composição da caveira com tíbias entrecruzadas, a que foi aposta um lacinho cor de rosa no crânio ossudo.
Terminada a refeição propriamente dita, A. e eu vegetámos mais um pouco pela mesa, onde o fundo dos cinzeiros – ao invés de água – contém uma camadinha de terra fresca, beberricando um café antes de nos decidirmos levantar para ir escolher, entre muitos da espécie, o nosso manjerico.  
Eis-nos ao balcão da caixa. Do outro lado, a empregada limpa cuidadosamente restos de terra agarrados ao vaso e prepara-se para acondicionar a planta num saco de plástico com asas.
“Demorou muito, fazer aquela sua tatuagem da caveira?”, pergunto à rapariga.
“Gostou?”, pergunta ela de imediato, olhando-me com olhos curiosos. “Não, não demorou muito, doeu mas foi como o caraças...”
“É natural”, respondi, “é uma zona quase só pele e osso...”
“E também tem umas estrelinhas engraçadas aí no ombro...”, junta-se A. à conversa.
“Também tenho uma com os gatinhos da minha filha, e outra com o meu nome em português e em árabe...”, acrescentou ela, enquanto dá um jeito com a tesoura aos contornos da bandeirola que enterrou no vaso e onde reza uma quadra alusiva à Quadra.
“Mas a melhor é uma que eu tenho aqui”, continuou ela. E, dando-nos as costas, levantou a t-shirt generosamente, expondo os lombos e permitindo-nos a visão, na fronteira do cós descaído das calças do fato de treino, de um vistoso laço, tatuado em azul-negro e cor-de-rosa-choque no fundo das costas.
“Bem, esse laço aí ninguém vai conseguir desapertar...”, comentei, entre o divertido e o surpreendido.
“Pois não”, diz ela, que, entretanto, já se recompôs e está a conferir o nosso troco, “se não tinha-lhe mandado tatuar por baixo DESEMBRULHA, AMOR”.
Caro ouvinte, um último conselho antes de me ir em busca de sardinhas e pimentos: não se meta nunca com uma gaja do Porto, vai ficar sempre a ganhar!


© Fotografias de Pedro Serrano: Porto, Junho 2011.





16 junho 2011

GIVE PISS A CHANCE!

Imagine o leitor que vai de Lisboa para o Porto. 
Já saiu da reunião mais tarde do que pensava que ia ser a sua duração e, quando se levantou de três horas ininterruptas de cadeira, percebeu que não seria mau dar uma mija antes de partir, mas, depois, veio-lhe à mente que o tempo de parcómetro do automóvel terminara há mais de vinte minutos. Despediu-se à pressa, desceu as escadas a correr e, graças a Deus, a ucraniana da EMEL ainda andava entretida a encravar envelopes em limpa para-brisas mais a leste. Meteu-se no carro e arrancou.
A bexiga pesa-lhe um pouco, mas nada de transcendente, e assim deixa passar a estação de Aveiras em branco. Na de Santarém, concluiu que também não era por mais 40 Km que ia rebentar e quando se deu conta da estação de Leiria ia tão distraído a pensar nas enormidades da intervenção do representante do sindicato que já não teve tempo de guinar para a direita sem risco de colidir com um camião-TIR da Porcelanosa.
Trava, já muito aflito, na área de serviço da Figueira da Foz e tem de sair do assento de lado, contrafeito como uma grávida de nove meses. Carrega no controlo-remoto da chave do carro e o mais dignamente que pode vence os metros que o separam da porta do WC dos homens. Empurra-a, verifica satisfeito que não está ninguém lá dentro e apressa-se para um dos dois mictórios que esperam pendurados na parede de azulejos cinzento-antracite.
[Faço um parêntesis para, em proveito das minhas ouvintes – que imagino menos versadas nestes detalhes de WC masculinos – explicar algumas coisas, a primeira das quais é a de que nos quartos-de-banho públicos destinados ao sexo masculino existem, para além das vulgares retretes, uma espécie de enormes terrinas, suspensas na parede à altura conveniente, para aqueles necessitados que só precisam de satisfazer a parte líquida das necessidades fisiológicas. Chamam-se mictórios, embora o vulgo também os designe por mijatórios. São, se o local é limpo e os parceiros que o usam minimamente civilizados, de um branco imaculado, podem conter no fundo bolas de naftalina para absorver odores e, os mais sofisticados, ostentam, pintada na porcelana, uma enorme mosca-varejeira em tons de preto que, suponho, se destina a assustar a mesma e mesmo outras categorias de insectos. A segunda coisa que queria ilustrar às ouvintes é o modo como os homens cumprem o acto de urinar, funcionalidade com que podem não estar totalmente familiarizadas. Ao contrário da mulher, que geralmente se alivia sentada ou, se muito nojenta, flectida ou de cócoras, o homem adulto mija de pé. Não pense, querida leitora, que isto torna o acto mais fácil, pois, apesar da posição casual, o praticante precisa sempre das duas mãos para o fazer: uma para manter a braguilha aberta e/ou a borda das cuecas rebaixada e a outra, mais frequentemente a direita, para segurar, entre o polegar e o indicador, o aparelho mijatório e, findo o esvaziamento, para sacudir convenientemente as teimosas últimas gotas].
Pedindo desculpa pela extensão do parêntesis, retomo a descrição do episódio onde o deixei, isto é: quando o nosso herói, à rasquinha, se dirige para um dos  mictórios, a mão direita estripando já o fecho-éclair das calças e apontando ao cálice de porcelana o necessitado órgão. E ei-lo que mija, mija, mija, e uma qualquer câmara poderia filmar a satisfação e alívio que se lhe vai estampando na face não fora a luz do quarto-de-banho se extinguir de repente!
“Caralho”, conclui, aterrado, o herói nortenho de si para si, “um WC amigo do ambiente!”
E, de facto, aconteceu-lhe ir parar a um dispositivo sanitário auto-sustentável, como o classificaria qualquer planeador urbano do PS, daqueles munidos de uma foto-célula inspirada em Galileu: se há movimento a luz mantém-se acesa, se o movimento cessa ela extingue-se. E, na realidade e no seu êxtase, o nosso herói estava praticamente imóvel, tinha até apoiado a testa apaziguada nos azulejos cinzento-antracite da parede, a única coisa que se movia em si era aquele jacto de um dourado silencioso...
Sem luz, é complicado manter a certeza se se está a mijar na direcção correcta e, não querendo mijar o chão, o nosso viajante sacode um pouco o corpo. Nada, o sensor não detecta e a luz mantém-se apagada. Sacode-se um pouco mais, o sensor é activado, mas o movimento foi demasiado enérgico e um pouco de produto atinge-lhe o sapato direito. Contendo uma imprecação, o nosso herói continua o que ainda vai a meio e vai precisar de ainda mais duas sacudidelas do tronco até que se dê por finalizada a depleção da bexiga. Agora, faltam-lhe apenas as sacudidelas terminais, mal dadas, executadas à pressa no receio de novo eclipse...
Algo frustrado, o nosso amigo dirige-se ao lavatório e inspeciona a torneira, em busca de um manípulo, uma rosca, ou algo que se pressione para que a água brote. Nada. O viajante espreita debaixo da pia em busca de um pedal, às vezes são torneiras dessas... Nada, é mesmo uma puta duma torneira inteligente, auto-sustentável. E ei-lo a passar as mãos por baixo dela, para a frente, para trás, para-a-frente-e-para-trás... Eis que, sem que tenha percebido o paralaxe do mecanismo, a água jorra e ele aproveita o jacto enquanto ele verte. Sol de pouca dura, pois a luz de cima apaga-se por insuficiente movimento global. 
Cerca de cinco minutos depois, graças a ter saltaricado num pé e no outro metade do tempo, o nosso viajante conseguiu lavar as mãos e começar a secá-las num aparelho eléctrico que atroava os ares como um tufão, mas que parava de bufar mal as mãos abandonavam a mística posição de um deslizamento síncrono e vertical sob uma luz de um azul tão intenso e holográfico como o do terceiro olho.
Com as cuecas húmidas, os sapatos conspurcados e as mãos peganhentas de espuma mal escorrida, o nosso herói entrou de rompante no cubículo de uma das retretes, sacou do suporte o rolo de papel higiénico e enrolando uma generosa porção em torno das mãos acabou a secá-las dessa forma tão censurável, deixando atrás de si um rasto de portas escancaradas e papel reciclado....


© Fotografias de Pedro Serrano, Lisboa 2011.  

ECLIPSE

 © Fotografias de Pedro Serrano, Cabo Verde, Junho 2011.

14 junho 2011

Género feminino

Ontem, quando saí para jantar no Poeta com a Inês e o Mohsin, apanhei a lua, à boleia de uma nuvem transatlântica, a espreitar na esquina do meu apartamento aqui na cooperação portuguesa.  
Hoje, ainda não bem sete da manhã, o céu estava indeciso entre o chumbo e a prata. Indiferentes de todo, as acácias exibem-se à nossa frente em vermelho como pavões vegetais e deixam cair do regaço pétalas enganadoras como bagos de romã.






© Fotografias de Pedro Serrano, ilha de Santiago, Junho 2011.





13 junho 2011

Entletanto em Cabo Velde...

Entretanto, em Santiago, hoje o dia amanheceu nublado, pensei até que ia chover. Qual quê! Pelo meio-dia o céu desabrochou num azul excessivo, picando as acácias rubras até ao deslumbre cromático. Na embaixada da China, o facto ia provocando um incidente diplomático já que não foi vista com bons olhos a concorrência às cores da bandeira do Império do Meio.




© Fotografias de Pedro Serrano, Praia (Cabo Verde), Junho 2011.

10 junho 2011

Sexo, drogas & iscas de fígado

As you pass through fire as you pass through fire try to remember its name
When you pass through fire licking at your lips you cannot remain the same
And if the building’ burning move towards that door but don’t put the flames out
There´s a bit of magic in everything

And then some loss to even things out


                    Lou Reed (“Magic and Loss”, 1992)


Acordei de repente, não compreendi logo a razão, nem onde estava. Abri um olho no breu, apercebi-me de uma luz a piscar no escuro, ainda pensei que fosse a luz de presença do detector de incêndios que agora existe em todos os quartos de hotéis.  Mas a luz dos detectores de incêndios costuma ser vermelha, fantasmática, esta era branca e lembrava o piscar intermitente de um farol.
Então percebi que era a luz de aviso do telemóvel e que o que me tinha arrancado ao sono fora o toc-toc-toc de uma mensagem a chegar.
Acendi o candeeiro, peguei no telemóvel, olhei automaticamente a hora: quase quatro da manhã! Quem caralho poderia ser? Premi a tecla. Mensagem da Leny, de Bangkok, a informar que o Zé Pedro tinha saído dos cuidados intensivos. 
“Estamos em festa!”
Pois, na Tailândia já devia ter amanhecido e eu ali encravado no Porto no meio da madrugada.
Pouco antes do 25 de Abril de 1974 conheci uma rapariga que andava no famoso Colégio de Odivelas, instituição liceal para meninas, mas de inspiração e rigores quase militares. A tal jovem poder-se-ia categorizar na subsecção “louras”, mas a sua cabeleira de ondas largas era de um louro maduro, um louro do sul, e os olhos cor-de-mel olhavam com a avidez e o deslumbramento de quem vê o mundo pela primeira vez. Abençoados e perigosos dezoito anos! Assim, e como provavelmente as minhas ouvintes já terão dado como garantido, passei a ir a Lisboa muito mais vezes do que o costume, o que, até à data, se resumiam aos três dias do mês de Novembro em que se realizava o Festival de Jazz de Cascais e a uma ou outra visita esporádica à minha prima Natalinha, que morava nos Olivais.
A circunstância de a minha prima Natália e o seu marido Augusto morarem nos Olivais caiu como sopa no mel, pois a Leny morava também nos Olivais, no sexto ou sétimo andar de um prédio que, para lá chegar sem me perder, tomava como referência a torre com relógio, que ainda existe, dos bombeiros de Moscavide.
O ambiente dos Olivais era muito diferente daquele a que estava habituado nos sonolentos bairros do Porto por onde me movia: a coisa era mais urbana, mais nervosa, quase me sentia em Nova Iorque, naquele entorno que ouvia cantado nas canções dos Velvet Underground e do Lou Reed. Por exemplo: enquanto no Porto se começavam timidamente a fumar uns charros de erva; a nomenclatura oscilava também pelas designações de liamba ou soruma, nomes africanos, pois com a descolonização os retornados das províncias ultramarinas trouxeram como carga nos contentores toneladas do vegetal, recurso que, especulo, terá permitido a muitos sobreviver do lado de cá do mar, num país onde tinham chegado de mãos a abanar. E, de repente, a calmaria do Porto foi sacudida por aquela substância ilegal (cujo nome, unificador e botânico, é Cannabis sativa), que inundou a cidade em tal quantidade que nos anos entre 1974 e 1975 era mais rápido comprar erva em alguns cafés do Porto do que um maço de tabaco! Em termos de substâncias modificadoras do estado de consciência, se excluirmos o maduro-tinto e o bagaço, era o que havia e, já mais para os idos de 1976, começou também a surgir no mercado, vindo do plano país que inventara o queijo flamengo e as putas de vitrina, uma substância sintética chamada dietilamida do ácido lisérgico, para os íntimos o LSD. E era mais ou menos tudo.
Nos Olivais encontrei um ambiente diferente: graças a Deus não faltava o sexo, com um enquadramento semelhante ao do Porto, lá estava o rock’n’roll (com a música brasileira e o jazz embutidos, tal qual como no Norte), mas, no que diz respeito a drogas, o panorama era mais pesado. Naquelas garagens e arrumos do rés-do-chão dos renques de prédios que ornavam as margens da Segunda Circular, havia gente que tratava por tu a coca e a heroína e, para grande arrepio meu – a quem as agulhas davam um terror gelado – não apenas fumada, mas injectada. E, com angústia de permeio (nomeadamente da minha namoradinha lisboeta), havia dois ou três interessantes espécimes de seres humanos completamente agarrados àquilo na bela idade de vinte anos.
Em 1975, quando isto se passou, eu tinha pouco mais do que essa idade e esses foram os meus primeiros contactos com a sombra que existe por trás das superfícies brilhantes, sombras que só conhecia dos livros e das letras das canções. Lembro, nos longos passeios a pé que dávamos por aquelas largas e soalheiras avenidas de Lisboa, conversarmos a dois sobre isso e se aquele caminho seria um caminho tão legítimo como qualquer outro para se chegar à idade adulta, à sabedoria, sabe-se lá onde... Nem nós sabíamos bem por onde ir nem de que era feito o mundo e a Leny, com uma atração grande pelos trilhos da mente, oferecia-me livros escritos por psiquiatras libertários que aconselhavam a sociedade a trocar de lugar com os loucos e a usar, nos tratamentos psicológicos, os alucinogénios da moda. Ainda tenho aqui, nas minhas estantes, alguns desses livros, com títulos sugestivos como o Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, O Eu Dividido, A Morte da Família, livros que ela me oferecia, irritantemente sublinhados e cheios de notas à margem nas passagens que considerava seminais. É uma falha que lhe perdoo de todo o coração, pois também eu o pratiquei durante anos e anos, levado pelo febril entusiasmo de “é isto mesmo”, assinalado em riscos com litros de Bic e chavetas a agruparem parágrafos com a abreviatura imp. (de importante). 
A Leny tinha muitos irmãos, um ror de raparigas e um rapazito que, nesses dias intensos, andava ainda no liceu e dono de um sorriso encantador, cativante. Era tímido e chamava-se José Pedro como eu, o que fez com que ela fosse uma das poucas pessoas deste mundo que me tratavam por Zé Pedro, por intimidade e carinho. Numa dessas temporadas em Lisboa, um Sábado à tarde, como par atento que éramos, fomos torcer pelo espectáculo que o Zé Pedro e uns amigos iam dar num sarau do liceu D. Pedro V, daqueles que geralmente têm lugar no salão do ginásio. Não me lembro de pormenores, isto passou-se há mais de 35 anos, apenas de que havia uma ou duas guitarras acústicas e uma flauta, e de que o Zé Pedro estava nervoso pois era uma das suas primeiras actuações ao vivo.
O tempo enrolou-se e perdi a Leny de vista, completamente e nem fácil era tentar saber pormenores sobre a trajectória dela, uma vez que esquecera o seu sobrenome! Era a Leny, chegava para chamar por ela. E o tempo que corre, se não nos faz secos e amargos, torna-nos nostálgicos e damos por nós a gostar de seguir o fio da vida daqueles que foram alguém nas nossas vidas.
Um dia, na Mexicana (um lugar mítico na Praça de Londres, em Lisboa), estava eu a almoçar quando vi entrar o famoso Zé Pedro, o guitarrista dos Xutos e Pontapés, seguido pelo olhar de reconhecimento dos presentes e pela deferência dos empregados. Enquanto terminava a sobremesa e tomava o café fui avaliando perante mim próprio a coragem, a intromissão, de me dirigir à estrela (que me vira meia-dúzia de vezes quando tinha 17 anos) para lhe perguntar pela irmã.
Quando me cheguei à mesa e o interpelei é óbvio que ele não fazia a mínima ideia de quem eu era, mas recebeu-me com o sorriso acolhedor que lhe recordava e quando lhe pedi para dar, da minha parte, saudades à irmã abriu ainda mais o sorriso e disse:
“Podes estar descansado, vou estar com ela agora a seguir.”
E assim o fez e passei a poder reunir as linhas daquelas vidas que andavam a rolar por aí, longe do meu conhecimento. E se da Leny perdi, durante décadas, completamente o rasto (a não ser por, numa livraria, me dar conta que escrevera a biografia do seu famoso irmão), o mesmo não sucedeu com o Zé Pedro. Fui acompanhando pelos media a sua carreira, dei-me conta, com espanto mas tudo batendo certo, que os Xutos eram um produto lógico daquele ambiente urbano, de um frio de betão, dos Olivais que eu conhecera de raspão. Disso tudo fizeram parte os excessos (de drogas leves e duras e álcool) que o Zé Pedro nunca procurou varrer para debaixo do tapete da conveniência de figura pública. 
Como qualquer médico lhe poderia ter dito, e provavelmente ele próprio intuía, as impurezas das drogas duras, sobretudo quando injectadas, entopem o filtro que é o fígado. O facto de se usarem agulhas, muitas vezes em condições de esterilização duvidosa e partilhadas com outros, atrai o vírus da hepatite C, doença que deixa marcas permanentes no fígado e o torna num tecido cicatricial que vai perdendo a habilidade de filtrar seja o que for. Ah! e o álcool, a tequila – por exemplo, faz um efeito sobreponível ao da hepatite C: transforma um organismo vivo e vital para nos livrar das impurezas que o nosso canastro produz num courato sem préstimo, uma isca requentada de roulote de porta do Campo Pequeno. 
Por todos estes excessos, que se potenciam uns aos outros, o fígado do Zé Pedro deu o berro, de um modo tão definitivo que tiveram de o trocar por outro – estaria um dia destes possivelmente morto ou a caminho disso se assim não fosse. Não está, e a irmã mandou-me uma mensagem às quatro da manhã a dizer que o pior já parecia ter passado. Apaguei a luz, senti-me confortado e, suponho, terei mesmo esboçado um sorriso no escuro, não tão encantador como o do outro Zé Pedro mas, mesmo assim, passível de ser registado pelo detector de incêndios do tecto do meu quarto de hotel.


© Fotografias, de cima para baixo: (1) Leny, por Pedro Braula Reis; (2) Leny e Zé Pedro, Lisboa (Olivais), anos 70, fotógrafo desconhecido; (3) Enric Vives-Rubio, Público.


05 junho 2011

CALARAM-SE AS MUSAS


I once loved a girl, her skin it was bronze
With the innocence of a lamb, she was gentle like a fawn
I courted her proudly but now she is gone
Gone as the season she's taken

Ballad in Plain D (Bob Dylan)


Olhe bem para a fotografia aqui ao lado e diga o que nela é, para si, mais saliente. Sim, são ambos muito novos (ela tinha 19 anos, ele 22), são ambos bonitos; é enternecedor o modo como estão abstraídos do que se passa à sua volta (um festival de música em Newport, 1963, em que ele actuou, com grande sucesso, para 15.000 pessoas).
A mim, o que mais impressiona no retrato, é como os elementos daquele par, transformados num único ser pela paixão, são fisicamente parecidos um com o outro ou, melhor, como se tornaram fisicamente parecidos um com o outro sob esse estranho e definitivo maremoto chamado primeiro amor; primeiro amor adulto, deixe-se acrescentar, é esse que conta.
Na extensa lista de mulheres com quem Bob Dylan se envolveu, Suze Rotolo seguiu-se a Gloria Story e Echo Helstrom, as primeiras namoradas do Dylan adolescente que vivia, ainda ignorado do mundo, em Hibbing, no Minnesota, um centro mineiro perto da fronteira com o Canadá.
Dylan, nascido em 1941, apanhou uma boleia para Nova York no Inverno de 1960 e, embora fosse já um tipo especial, obstinado, dotado, sensível e inteligente, pouco passava de um provinciano que nunca vira do mundo mais do que lhe tinham mostrado umas leituras, meia-dúzia de programas de rádio e centenas de discos de música country e de blues ouvidos compulsivamente. Poucas semanas após chegar a Nova York e a Greenwich Village conheceu Suze Rotolo e isso iria mudar a sua vida, muito mais do que podia ou queria imaginar.
Susan Rotolo tinha 17 anos, era uma loura de pele dourada e olhos enormes, uma beleza que chamava a atenção de quem lhe passasse por perto. Dylan que o diga (aliás, disse-o, bem explicitamente), que não mais conseguiu tirar os olhos dela, deixar de pensar nela.
Uns meses depois, Bob Dylan gravou o primeiro disco para a Columbia (Bob Dylan, 1962) e nas fotos de estúdio lá está Suze, sentada assustadoramente próxima do músico em gravação, tão próxima que, durante o registo de uma das suas canções (“In My Time of Dyin’”), ele utilizou mesmo o tubo do batom da namorada como trasto na guitarra.
Mas Suze Rotolo foi tudo menos o modelo da musa passiva que inspira o artista pela simples proximidade. Oriunda de uma família de italianos, o pai era artista gráfico e sindicalista, a mãe uma senhora culta que fazia traduções e escrevia textos médicos como ocupação. Ambos eram gente filiada no partido comunista e (tudo isto se passou na era de McCarthy) não deixaram de ter abundantes problemas por causa disso. Suze foi, assim, criada num ambiente de esquerda, culto e tolerante, e mais do que actores de cinema, os seus ídolos de adolescência foram escritores, poetas e pintores.
Quando ela e Dylan se tornaram inseparáveis, arrastou-o para todo esse mundo de teatro (deu-lhe a conhecer Bertolt Brecht), cinema (viram tudo o que se podia ver, desde a nouvelle vague francesa ao cinema italiano de Fellini e o ao Hitchcock louvado por Truffaut), poesia (apresentou-o a Byron, Rimbaud, Baudelaire). Dylan, como esponja ávida que era, absorveu tudo com sofreguidão e deixou marca disso nas letras das suas canções.
A relação deles durou cerca de quatro anos e Dylan fala disso numa série de canções que se tornaram eternas; quando a relação se rompeu mais algumas canções registaram a zanga, os remorsos, a pena pelo que sucedeu (1). Bob Dylan trocou Suze Rotolo por Joan Baez, uma morena de voz argentina que já era uma rainha no mundo da música folk... Era inevitável o embate, poder-se-ia dizer, e nesses anos de relação amorosa com Baez, Dylan viu a sua notoriedade aumentar exponencialmente e Joan Baez tornou imortais composições a que Dylan pouca importância deu (“Farewell Angelina” e “Four Letter Word” são bons exemplos).
Passaram-se quatro décadas e, em 2005, Martin Scorsese fez um documentário sobre esses primeiros anos gloriosos do cantor. Entre outros antigos contactos, entrevistou Suze Rotolo e Joan Baez e deixou-as falar sobre o seu velho companheiro. Todos estes anos depois é comovedor observar como a loura de olhos grandes abençoa esses anos da sua vida e fala de Dylan com uma nostalgia serena, enquanto Joan Baez ainda não consegue disfarçar convincentemente o ressentimento e o espanto por Bob Dylan ter seguido o seu próprio caminho e se ter afastado da linha da canção de protesto esquerdista onde todos, a começar por ela, pareciam querer agrilhoá-lo para a eternidade.
Este ano de 2011, a 24 de Fevereiro, Suze Rotolo morreu de cancro de pulmão – sempre se manteve uma infatigável fumadora - mas antes escreveu um livro onde fala da sua vida de uma forma luminosa e sem sombra de vedetismo. Quando ouvi da sua morte bateu-me a ponta de tristeza que sentimos quando os tempos que nos pertenceram se afastam na bruma como um barco à deriva. E fiquei a cismar, de mim para mim, o que poderia ter experimentado Dylan quando soube que o seu velho primeiro amor se finara.
Não creio, sendo ele quem nos fez perceber que é, que não tenha sentido nada e, na mais amarga das hipóteses, calculo que tenha sentido pena de pena já não conseguir sentir.

(1) “Down the Highway”, “Boots of Spanish Leather”, “Ballad in Plain D”, “Simple Twist of Fate”, “Don’t Think Twice, It’s Allright”. 

© Fotografias, de cima para baixo: (1) Jim Marshall, 1963; (2) Don Hunstein, 1963.

Referências consultadas para este texto:

· Dylan, Bob. Canções: Volume 1 (1962-1973). Lisboa: Relógio d’Água; 2006 [tradução de Angelina Barbosa & Pedro Serrano].
· Dylan, Bob. Canções: Volume 2 (1974-2001). Lisboa: Relógio d’Água; 2008 [tradução de Angelina Barbosa & Pedro Serrano].
· Feinstein, Barry; Kramer, Daniel; Marshall, Jim. Early Dylan. New York: Bulfinch Press; 2005.
· MOJO. Dylan: Visions, Portraits, and Back Pages. London: MOJO; 2005.
· Rollason, Christopher. On Suze’s Rotolo ‘A Freewheelin’ Time’. The Bob Dylan Critical Corner [online] April 2, 2010 [cited March 4, 2011]. Available on: http://nicolamenicacci.com/bdcc/on-suze-rotolos-a-freewheelin-timr/  
· Rotolo, Suze. A Freewheelin’ Time. London: Aurum Press; 2008.
· Scorsese, Martin. No Direction Home. Hollywood: Paramount Pictures; 2005 [filme em DVD].
· Williams, Richard. Suze Rotolo obituary. The Guardian [online] 28 February 2011, 19:21 GMT [cited March 3, 2011]. Available on: http://www.guardian.co.uk/music/2011/feb/28/suze-rotolo-obituary?INTCMP=SRCH


Nota: O título deste texto ecoa outro, este famoso – The Muses Are Heard, crónica de Truman Capote, escrita em meados dos anos 50 e publicada inicialmente no The New Yorker, narrando a digressão da ópera Porgy and Bess, de George e Ira Gershwin, por terras da, então, União Soviética. Esta crónica está contida na compilação de textos de Capote Dogs Bark, da qual existe tradução portuguesa na Relógio d’Água (2002). A essa, prefiro a tradução brasileira feita por João Guilherme Linke e publicada pela Civilização Brasileira em 1977.

04 junho 2011

HOSPITALEIRO


Nos últimos quinze anos, habitualmente no fim da Primavera e no início do Inverno, vou ao Hospital dos Capuchos, situado numa zona antiga de Lisboa, a ver como anda o meu linfoma. À chegada, não reparo em grande coisa no caminho até ao serviço de Hematologia, mas quando saio, se tudo correu bem e a minha médica me manda viver em paz até à próxima, o ar tornou-se mais leve e “olha que bonito o lilás do jacarandá contra o salmão do edifício pintado de novo”. Orgulhoso do band-aid no antebraço como um puto que foi socorrido de uma esfoladela, atravesso a cerca do hospital e vou tomar um pequeno-almoço reconfortante no café em frente, pois estou em completo jejum por inerência dos tubinhos de sangue que colecionaram à minha custa e a expensas do erário público.
Há três semanas atrás, revestido noutro estatuto e encastrado num blazer azul e sapatos pretos de pala, fui ao Hospital Curry Cabral para tomar parte numa reunião de médicos de toda a zona Sul do país (qualquer coisa entre Leiria e o Algarve). O Curry tem jardins lindíssimos e costumam aconchegar-se no seus relvados os tons metálicos e cintilantes de dezenas de patos que, calculo, praticam curtos ciclos migratórios entre os relvados do hospital e os aristocráticos jardins e lagos da Gulbenkian, à justa do lado de lá da avenida. Desta vez não vi nenhum palmípede e perguntei ao Nuno que seria feito deles.
“Sei lá”, respondeu, pragmático, “se calhar comemo-los...”
No final da reunião, o Nuno Riso (um senhor da Medicina Interna e das doenças autoimunes que trabalha no Curry) veio acompanhar alguns de nós até ao portão e ao passar por uma álea, desenhada entre pavilhões do hospital, saquei do telemóvel e posicionei-me para tirar uma foto aos magníficos jacarandás que formavam um túnel de verde onde só faltava uma cabrocha de sombrinha. Mas estranhei, no estuante Maio lisboeta, as árvores não ostentarem ainda uma só flor. O Nuno esclareceu:
“É que não são jacarandás, pá, são tipuanas e ainda não estão em flor. Dão uma flor linda, amarela...”
Fez-se luz na minha cabeça, a mim, que andava por aí a pensar em jacarandás roxos e jacarandás amarelos, que chamei “poalha de jacarandá” ao pano de fundo que uso como leitmotiv do meu blog. Afinal, Lisboa, essa cidade do Sul, está cheia de exemplares de flora de ressonância exótica: palmeiras, jacarandás, tipuanas... Por aqui, pensámo-nos logo na América do Sul, ao contrário, por exemplo, do Porto, que nos meses de Maio e Junho rescende a tília e onde a casca branca das bétulas abrilhanta os parques, parecendo que as paisagens da Europa do Leste poderiam espreitar por entre a folhagem.
Alguém, para além do António Barreto, devia cantar esta hospitalidade.




© Fotografias de Pedro Serrano, Lisboa. De cima para baixo: (1) Hospital dos Capuchos, Junho 2008; (2) Hospital Curry Cabral, Maio 2011; (3) Avenida Elias Garcia, Junho 2010.