05 junho 2011

CALARAM-SE AS MUSAS


I once loved a girl, her skin it was bronze
With the innocence of a lamb, she was gentle like a fawn
I courted her proudly but now she is gone
Gone as the season she's taken

Ballad in Plain D (Bob Dylan)


Olhe bem para a fotografia aqui ao lado e diga o que nela é, para si, mais saliente. Sim, são ambos muito novos (ela tinha 19 anos, ele 22), são ambos bonitos; é enternecedor o modo como estão abstraídos do que se passa à sua volta (um festival de música em Newport, 1963, em que ele actuou, com grande sucesso, para 15.000 pessoas).
A mim, o que mais impressiona no retrato, é como os elementos daquele par, transformados num único ser pela paixão, são fisicamente parecidos um com o outro ou, melhor, como se tornaram fisicamente parecidos um com o outro sob esse estranho e definitivo maremoto chamado primeiro amor; primeiro amor adulto, deixe-se acrescentar, é esse que conta.
Na extensa lista de mulheres com quem Bob Dylan se envolveu, Suze Rotolo seguiu-se a Gloria Story e Echo Helstrom, as primeiras namoradas do Dylan adolescente que vivia, ainda ignorado do mundo, em Hibbing, no Minnesota, um centro mineiro perto da fronteira com o Canadá.
Dylan, nascido em 1941, apanhou uma boleia para Nova York no Inverno de 1960 e, embora fosse já um tipo especial, obstinado, dotado, sensível e inteligente, pouco passava de um provinciano que nunca vira do mundo mais do que lhe tinham mostrado umas leituras, meia-dúzia de programas de rádio e centenas de discos de música country e de blues ouvidos compulsivamente. Poucas semanas após chegar a Nova York e a Greenwich Village conheceu Suze Rotolo e isso iria mudar a sua vida, muito mais do que podia ou queria imaginar.
Susan Rotolo tinha 17 anos, era uma loura de pele dourada e olhos enormes, uma beleza que chamava a atenção de quem lhe passasse por perto. Dylan que o diga (aliás, disse-o, bem explicitamente), que não mais conseguiu tirar os olhos dela, deixar de pensar nela.
Uns meses depois, Bob Dylan gravou o primeiro disco para a Columbia (Bob Dylan, 1962) e nas fotos de estúdio lá está Suze, sentada assustadoramente próxima do músico em gravação, tão próxima que, durante o registo de uma das suas canções (“In My Time of Dyin’”), ele utilizou mesmo o tubo do batom da namorada como trasto na guitarra.
Mas Suze Rotolo foi tudo menos o modelo da musa passiva que inspira o artista pela simples proximidade. Oriunda de uma família de italianos, o pai era artista gráfico e sindicalista, a mãe uma senhora culta que fazia traduções e escrevia textos médicos como ocupação. Ambos eram gente filiada no partido comunista e (tudo isto se passou na era de McCarthy) não deixaram de ter abundantes problemas por causa disso. Suze foi, assim, criada num ambiente de esquerda, culto e tolerante, e mais do que actores de cinema, os seus ídolos de adolescência foram escritores, poetas e pintores.
Quando ela e Dylan se tornaram inseparáveis, arrastou-o para todo esse mundo de teatro (deu-lhe a conhecer Bertolt Brecht), cinema (viram tudo o que se podia ver, desde a nouvelle vague francesa ao cinema italiano de Fellini e o ao Hitchcock louvado por Truffaut), poesia (apresentou-o a Byron, Rimbaud, Baudelaire). Dylan, como esponja ávida que era, absorveu tudo com sofreguidão e deixou marca disso nas letras das suas canções.
A relação deles durou cerca de quatro anos e Dylan fala disso numa série de canções que se tornaram eternas; quando a relação se rompeu mais algumas canções registaram a zanga, os remorsos, a pena pelo que sucedeu (1). Bob Dylan trocou Suze Rotolo por Joan Baez, uma morena de voz argentina que já era uma rainha no mundo da música folk... Era inevitável o embate, poder-se-ia dizer, e nesses anos de relação amorosa com Baez, Dylan viu a sua notoriedade aumentar exponencialmente e Joan Baez tornou imortais composições a que Dylan pouca importância deu (“Farewell Angelina” e “Four Letter Word” são bons exemplos).
Passaram-se quatro décadas e, em 2005, Martin Scorsese fez um documentário sobre esses primeiros anos gloriosos do cantor. Entre outros antigos contactos, entrevistou Suze Rotolo e Joan Baez e deixou-as falar sobre o seu velho companheiro. Todos estes anos depois é comovedor observar como a loura de olhos grandes abençoa esses anos da sua vida e fala de Dylan com uma nostalgia serena, enquanto Joan Baez ainda não consegue disfarçar convincentemente o ressentimento e o espanto por Bob Dylan ter seguido o seu próprio caminho e se ter afastado da linha da canção de protesto esquerdista onde todos, a começar por ela, pareciam querer agrilhoá-lo para a eternidade.
Este ano de 2011, a 24 de Fevereiro, Suze Rotolo morreu de cancro de pulmão – sempre se manteve uma infatigável fumadora - mas antes escreveu um livro onde fala da sua vida de uma forma luminosa e sem sombra de vedetismo. Quando ouvi da sua morte bateu-me a ponta de tristeza que sentimos quando os tempos que nos pertenceram se afastam na bruma como um barco à deriva. E fiquei a cismar, de mim para mim, o que poderia ter experimentado Dylan quando soube que o seu velho primeiro amor se finara.
Não creio, sendo ele quem nos fez perceber que é, que não tenha sentido nada e, na mais amarga das hipóteses, calculo que tenha sentido pena de pena já não conseguir sentir.

(1) “Down the Highway”, “Boots of Spanish Leather”, “Ballad in Plain D”, “Simple Twist of Fate”, “Don’t Think Twice, It’s Allright”. 

© Fotografias, de cima para baixo: (1) Jim Marshall, 1963; (2) Don Hunstein, 1963.

Referências consultadas para este texto:

· Dylan, Bob. Canções: Volume 1 (1962-1973). Lisboa: Relógio d’Água; 2006 [tradução de Angelina Barbosa & Pedro Serrano].
· Dylan, Bob. Canções: Volume 2 (1974-2001). Lisboa: Relógio d’Água; 2008 [tradução de Angelina Barbosa & Pedro Serrano].
· Feinstein, Barry; Kramer, Daniel; Marshall, Jim. Early Dylan. New York: Bulfinch Press; 2005.
· MOJO. Dylan: Visions, Portraits, and Back Pages. London: MOJO; 2005.
· Rollason, Christopher. On Suze’s Rotolo ‘A Freewheelin’ Time’. The Bob Dylan Critical Corner [online] April 2, 2010 [cited March 4, 2011]. Available on: http://nicolamenicacci.com/bdcc/on-suze-rotolos-a-freewheelin-timr/  
· Rotolo, Suze. A Freewheelin’ Time. London: Aurum Press; 2008.
· Scorsese, Martin. No Direction Home. Hollywood: Paramount Pictures; 2005 [filme em DVD].
· Williams, Richard. Suze Rotolo obituary. The Guardian [online] 28 February 2011, 19:21 GMT [cited March 3, 2011]. Available on: http://www.guardian.co.uk/music/2011/feb/28/suze-rotolo-obituary?INTCMP=SRCH


Nota: O título deste texto ecoa outro, este famoso – The Muses Are Heard, crónica de Truman Capote, escrita em meados dos anos 50 e publicada inicialmente no The New Yorker, narrando a digressão da ópera Porgy and Bess, de George e Ira Gershwin, por terras da, então, União Soviética. Esta crónica está contida na compilação de textos de Capote Dogs Bark, da qual existe tradução portuguesa na Relógio d’Água (2002). A essa, prefiro a tradução brasileira feita por João Guilherme Linke e publicada pela Civilização Brasileira em 1977.

2 comentários:

  1. Concordo contigo. Na verdade, recordo-me muito melhor da Suze Rotolo do que da Joan Baez no documentário do Sorcese - precisamente por causa da forma como as palavras dela parecem genuinamente despojadas de qualquer tipo de juízo de valor sobre Dylan, ou sobre a relação entre os dois. Percebe-se nela um olhar para trás nostálgico mas tranquilo. Nem toda a gente consegue lidar assim com o passado...
    Gina

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  2. @ Gina, Devias ler o livro da Suze que é uma beleza de simplcidade e o que diz sobre o Dylan não é diferente do que diz sobre o resto da vida dela. Gosta-se muito daquela senhora e o Dylan teve muita sorte ao chegar a Nova York. Beijo

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