As you pass through fire as you pass through fire try to remember its name
When you pass through fire licking at your lips you cannot remain the same
And if the building’ burning move towards that door but don’t put the flames out
There´s a bit of magic in everything
And then some loss to even things out
Lou Reed (“Magic and Loss”, 1992)
Acordei de repente, não compreendi logo a razão, nem onde estava. Abri um olho no breu, apercebi-me de uma luz a piscar no escuro, ainda pensei que fosse a luz de presença do detector de incêndios que agora existe em todos os quartos de hotéis. Mas a luz dos detectores de incêndios costuma ser vermelha, fantasmática, esta era branca e lembrava o piscar intermitente de um farol.
Então percebi que era a luz de aviso do telemóvel e que o que me tinha arrancado ao sono fora o toc-toc-toc de uma mensagem a chegar.
Acendi o candeeiro, peguei no telemóvel, olhei automaticamente a hora: quase quatro da manhã! Quem caralho poderia ser? Premi a tecla. Mensagem da Leny, de Bangkok, a informar que o Zé Pedro tinha saído dos cuidados intensivos.
“Estamos em festa!”
Pois, na Tailândia já devia ter amanhecido e eu ali encravado no Porto no meio da madrugada.
Pouco antes do 25 de Abril de 1974 conheci uma rapariga que andava no famoso Colégio de Odivelas, instituição liceal para meninas, mas de inspiração e rigores quase militares. A tal jovem poder-se-ia categorizar na subsecção “louras”, mas a sua cabeleira de ondas largas era de um louro maduro, um louro do sul, e os olhos cor-de-mel olhavam com a avidez e o deslumbramento de quem vê o mundo pela primeira vez. Abençoados e perigosos dezoito anos! Assim, e como provavelmente as minhas ouvintes já terão dado como garantido, passei a ir a Lisboa muito mais vezes do que o costume, o que, até à data, se resumiam aos três dias do mês de Novembro em que se realizava o Festival de Jazz de Cascais e a uma ou outra visita esporádica à minha prima Natalinha, que morava nos Olivais.
A circunstância de a minha prima Natália e o seu marido Augusto morarem nos Olivais caiu como sopa no mel, pois a Leny morava também nos Olivais, no sexto ou sétimo andar de um prédio que, para lá chegar sem me perder, tomava como referência a torre com relógio, que ainda existe, dos bombeiros de Moscavide.
O ambiente dos Olivais era muito diferente daquele a que estava habituado nos sonolentos bairros do Porto por onde me movia: a coisa era mais urbana, mais nervosa, quase me sentia em Nova Iorque, naquele entorno que ouvia cantado nas canções dos Velvet Underground e do Lou Reed. Por exemplo: enquanto no Porto se começavam timidamente a fumar uns charros de erva; a nomenclatura oscilava também pelas designações de liamba ou soruma, nomes africanos, pois com a descolonização os retornados das províncias ultramarinas trouxeram como carga nos contentores toneladas do vegetal, recurso que, especulo, terá permitido a muitos sobreviver do lado de cá do mar, num país onde tinham chegado de mãos a abanar. E, de repente, a calmaria do Porto foi sacudida por aquela substância ilegal (cujo nome, unificador e botânico, é Cannabis sativa), que inundou a cidade em tal quantidade que nos anos entre 1974 e 1975 era mais rápido comprar erva em alguns cafés do Porto do que um maço de tabaco! Em termos de substâncias modificadoras do estado de consciência, se excluirmos o maduro-tinto e o bagaço, era o que havia e, já mais para os idos de 1976, começou também a surgir no mercado, vindo do plano país que inventara o queijo flamengo e as putas de vitrina, uma substância sintética chamada dietilamida do ácido lisérgico, para os íntimos o LSD. E era mais ou menos tudo.
Nos Olivais encontrei um ambiente diferente: graças a Deus não faltava o sexo, com um enquadramento semelhante ao do Porto, lá estava o rock’n’roll (com a música brasileira e o jazz embutidos, tal qual como no Norte), mas, no que diz respeito a drogas, o panorama era mais pesado. Naquelas garagens e arrumos do rés-do-chão dos renques de prédios que ornavam as margens da Segunda Circular, havia gente que tratava por tu a coca e a heroína e, para grande arrepio meu – a quem as agulhas davam um terror gelado – não apenas fumada, mas injectada. E, com angústia de permeio (nomeadamente da minha namoradinha lisboeta), havia dois ou três interessantes espécimes de seres humanos completamente agarrados àquilo na bela idade de vinte anos.
Em 1975, quando isto se passou, eu tinha pouco mais do que essa idade e esses foram os meus primeiros contactos com a sombra que existe por trás das superfícies brilhantes, sombras que só conhecia dos livros e das letras das canções. Lembro, nos longos passeios a pé que dávamos por aquelas largas e soalheiras avenidas de Lisboa, conversarmos a dois sobre isso e se aquele caminho seria um caminho tão legítimo como qualquer outro para se chegar à idade adulta, à sabedoria, sabe-se lá onde... Nem nós sabíamos bem por onde ir nem de que era feito o mundo e a Leny, com uma atração grande pelos trilhos da mente, oferecia-me livros escritos por psiquiatras libertários que aconselhavam a sociedade a trocar de lugar com os loucos e a usar, nos tratamentos psicológicos, os alucinogénios da moda. Ainda tenho aqui, nas minhas estantes, alguns desses livros, com títulos sugestivos como o Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, O Eu Dividido, A Morte da Família, livros que ela me oferecia, irritantemente sublinhados e cheios de notas à margem nas passagens que considerava seminais. É uma falha que lhe perdoo de todo o coração, pois também eu o pratiquei durante anos e anos, levado pelo febril entusiasmo de “é isto mesmo”, assinalado em riscos com litros de Bic e chavetas a agruparem parágrafos com a abreviatura imp. (de importante).
A Leny tinha muitos irmãos, um ror de raparigas e um rapazito que, nesses dias intensos, andava ainda no liceu e dono de um sorriso encantador, cativante. Era tímido e chamava-se José Pedro como eu, o que fez com que ela fosse uma das poucas pessoas deste mundo que me tratavam por Zé Pedro, por intimidade e carinho. Numa dessas temporadas em Lisboa, um Sábado à tarde, como par atento que éramos, fomos torcer pelo espectáculo que o Zé Pedro e uns amigos iam dar num sarau do liceu D. Pedro V, daqueles que geralmente têm lugar no salão do ginásio. Não me lembro de pormenores, isto passou-se há mais de 35 anos, apenas de que havia uma ou duas guitarras acústicas e uma flauta, e de que o Zé Pedro estava nervoso pois era uma das suas primeiras actuações ao vivo.
O tempo enrolou-se e perdi a Leny de vista, completamente e nem fácil era tentar saber pormenores sobre a trajectória dela, uma vez que esquecera o seu sobrenome! Era a Leny, chegava para chamar por ela. E o tempo que corre, se não nos faz secos e amargos, torna-nos nostálgicos e damos por nós a gostar de seguir o fio da vida daqueles que foram alguém nas nossas vidas.
Um dia, na Mexicana (um lugar mítico na Praça de Londres, em Lisboa), estava eu a almoçar quando vi entrar o famoso Zé Pedro, o guitarrista dos Xutos e Pontapés, seguido pelo olhar de reconhecimento dos presentes e pela deferência dos empregados. Enquanto terminava a sobremesa e tomava o café fui avaliando perante mim próprio a coragem, a intromissão, de me dirigir à estrela (que me vira meia-dúzia de vezes quando tinha 17 anos) para lhe perguntar pela irmã.
Quando me cheguei à mesa e o interpelei é óbvio que ele não fazia a mínima ideia de quem eu era, mas recebeu-me com o sorriso acolhedor que lhe recordava e quando lhe pedi para dar, da minha parte, saudades à irmã abriu ainda mais o sorriso e disse:
“Podes estar descansado, vou estar com ela agora a seguir.”
E assim o fez e passei a poder reunir as linhas daquelas vidas que andavam a rolar por aí, longe do meu conhecimento. E se da Leny perdi, durante décadas, completamente o rasto (a não ser por, numa livraria, me dar conta que escrevera a biografia do seu famoso irmão), o mesmo não sucedeu com o Zé Pedro. Fui acompanhando pelos media a sua carreira, dei-me conta, com espanto mas tudo batendo certo, que os Xutos eram um produto lógico daquele ambiente urbano, de um frio de betão, dos Olivais que eu conhecera de raspão. Disso tudo fizeram parte os excessos (de drogas leves e duras e álcool) que o Zé Pedro nunca procurou varrer para debaixo do tapete da conveniência de figura pública.
Como qualquer médico lhe poderia ter dito, e provavelmente ele próprio intuía, as impurezas das drogas duras, sobretudo quando injectadas, entopem o filtro que é o fígado. O facto de se usarem agulhas, muitas vezes em condições de esterilização duvidosa e partilhadas com outros, atrai o vírus da hepatite C, doença que deixa marcas permanentes no fígado e o torna num tecido cicatricial que vai perdendo a habilidade de filtrar seja o que for. Ah! e o álcool, a tequila – por exemplo, faz um efeito sobreponível ao da hepatite C: transforma um organismo vivo e vital para nos livrar das impurezas que o nosso canastro produz num courato sem préstimo, uma isca requentada de roulote de porta do Campo Pequeno.
Por todos estes excessos, que se potenciam uns aos outros, o fígado do Zé Pedro deu o berro, de um modo tão definitivo que tiveram de o trocar por outro – estaria um dia destes possivelmente morto ou a caminho disso se assim não fosse. Não está, e a irmã mandou-me uma mensagem às quatro da manhã a dizer que o pior já parecia ter passado. Apaguei a luz, senti-me confortado e, suponho, terei mesmo esboçado um sorriso no escuro, não tão encantador como o do outro Zé Pedro mas, mesmo assim, passível de ser registado pelo detector de incêndios do tecto do meu quarto de hotel.
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Leny, por Pedro Braula Reis; (2) Leny e Zé Pedro, Lisboa (Olivais), anos 70, fotógrafo desconhecido; (3) Enric Vives-Rubio, Público.
When you pass through fire licking at your lips you cannot remain the same
And if the building’ burning move towards that door but don’t put the flames out
There´s a bit of magic in everything
And then some loss to even things out
Lou Reed (“Magic and Loss”, 1992)
Acordei de repente, não compreendi logo a razão, nem onde estava. Abri um olho no breu, apercebi-me de uma luz a piscar no escuro, ainda pensei que fosse a luz de presença do detector de incêndios que agora existe em todos os quartos de hotéis. Mas a luz dos detectores de incêndios costuma ser vermelha, fantasmática, esta era branca e lembrava o piscar intermitente de um farol.
Então percebi que era a luz de aviso do telemóvel e que o que me tinha arrancado ao sono fora o toc-toc-toc de uma mensagem a chegar.
Acendi o candeeiro, peguei no telemóvel, olhei automaticamente a hora: quase quatro da manhã! Quem caralho poderia ser? Premi a tecla. Mensagem da Leny, de Bangkok, a informar que o Zé Pedro tinha saído dos cuidados intensivos.
“Estamos em festa!”
Pois, na Tailândia já devia ter amanhecido e eu ali encravado no Porto no meio da madrugada.
Pouco antes do 25 de Abril de 1974 conheci uma rapariga que andava no famoso Colégio de Odivelas, instituição liceal para meninas, mas de inspiração e rigores quase militares. A tal jovem poder-se-ia categorizar na subsecção “louras”, mas a sua cabeleira de ondas largas era de um louro maduro, um louro do sul, e os olhos cor-de-mel olhavam com a avidez e o deslumbramento de quem vê o mundo pela primeira vez. Abençoados e perigosos dezoito anos! Assim, e como provavelmente as minhas ouvintes já terão dado como garantido, passei a ir a Lisboa muito mais vezes do que o costume, o que, até à data, se resumiam aos três dias do mês de Novembro em que se realizava o Festival de Jazz de Cascais e a uma ou outra visita esporádica à minha prima Natalinha, que morava nos Olivais.
A circunstância de a minha prima Natália e o seu marido Augusto morarem nos Olivais caiu como sopa no mel, pois a Leny morava também nos Olivais, no sexto ou sétimo andar de um prédio que, para lá chegar sem me perder, tomava como referência a torre com relógio, que ainda existe, dos bombeiros de Moscavide.
O ambiente dos Olivais era muito diferente daquele a que estava habituado nos sonolentos bairros do Porto por onde me movia: a coisa era mais urbana, mais nervosa, quase me sentia em Nova Iorque, naquele entorno que ouvia cantado nas canções dos Velvet Underground e do Lou Reed. Por exemplo: enquanto no Porto se começavam timidamente a fumar uns charros de erva; a nomenclatura oscilava também pelas designações de liamba ou soruma, nomes africanos, pois com a descolonização os retornados das províncias ultramarinas trouxeram como carga nos contentores toneladas do vegetal, recurso que, especulo, terá permitido a muitos sobreviver do lado de cá do mar, num país onde tinham chegado de mãos a abanar. E, de repente, a calmaria do Porto foi sacudida por aquela substância ilegal (cujo nome, unificador e botânico, é Cannabis sativa), que inundou a cidade em tal quantidade que nos anos entre 1974 e 1975 era mais rápido comprar erva em alguns cafés do Porto do que um maço de tabaco! Em termos de substâncias modificadoras do estado de consciência, se excluirmos o maduro-tinto e o bagaço, era o que havia e, já mais para os idos de 1976, começou também a surgir no mercado, vindo do plano país que inventara o queijo flamengo e as putas de vitrina, uma substância sintética chamada dietilamida do ácido lisérgico, para os íntimos o LSD. E era mais ou menos tudo.
Nos Olivais encontrei um ambiente diferente: graças a Deus não faltava o sexo, com um enquadramento semelhante ao do Porto, lá estava o rock’n’roll (com a música brasileira e o jazz embutidos, tal qual como no Norte), mas, no que diz respeito a drogas, o panorama era mais pesado. Naquelas garagens e arrumos do rés-do-chão dos renques de prédios que ornavam as margens da Segunda Circular, havia gente que tratava por tu a coca e a heroína e, para grande arrepio meu – a quem as agulhas davam um terror gelado – não apenas fumada, mas injectada. E, com angústia de permeio (nomeadamente da minha namoradinha lisboeta), havia dois ou três interessantes espécimes de seres humanos completamente agarrados àquilo na bela idade de vinte anos.
Em 1975, quando isto se passou, eu tinha pouco mais do que essa idade e esses foram os meus primeiros contactos com a sombra que existe por trás das superfícies brilhantes, sombras que só conhecia dos livros e das letras das canções. Lembro, nos longos passeios a pé que dávamos por aquelas largas e soalheiras avenidas de Lisboa, conversarmos a dois sobre isso e se aquele caminho seria um caminho tão legítimo como qualquer outro para se chegar à idade adulta, à sabedoria, sabe-se lá onde... Nem nós sabíamos bem por onde ir nem de que era feito o mundo e a Leny, com uma atração grande pelos trilhos da mente, oferecia-me livros escritos por psiquiatras libertários que aconselhavam a sociedade a trocar de lugar com os loucos e a usar, nos tratamentos psicológicos, os alucinogénios da moda. Ainda tenho aqui, nas minhas estantes, alguns desses livros, com títulos sugestivos como o Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia, O Eu Dividido, A Morte da Família, livros que ela me oferecia, irritantemente sublinhados e cheios de notas à margem nas passagens que considerava seminais. É uma falha que lhe perdoo de todo o coração, pois também eu o pratiquei durante anos e anos, levado pelo febril entusiasmo de “é isto mesmo”, assinalado em riscos com litros de Bic e chavetas a agruparem parágrafos com a abreviatura imp. (de importante).
A Leny tinha muitos irmãos, um ror de raparigas e um rapazito que, nesses dias intensos, andava ainda no liceu e dono de um sorriso encantador, cativante. Era tímido e chamava-se José Pedro como eu, o que fez com que ela fosse uma das poucas pessoas deste mundo que me tratavam por Zé Pedro, por intimidade e carinho. Numa dessas temporadas em Lisboa, um Sábado à tarde, como par atento que éramos, fomos torcer pelo espectáculo que o Zé Pedro e uns amigos iam dar num sarau do liceu D. Pedro V, daqueles que geralmente têm lugar no salão do ginásio. Não me lembro de pormenores, isto passou-se há mais de 35 anos, apenas de que havia uma ou duas guitarras acústicas e uma flauta, e de que o Zé Pedro estava nervoso pois era uma das suas primeiras actuações ao vivo.
O tempo enrolou-se e perdi a Leny de vista, completamente e nem fácil era tentar saber pormenores sobre a trajectória dela, uma vez que esquecera o seu sobrenome! Era a Leny, chegava para chamar por ela. E o tempo que corre, se não nos faz secos e amargos, torna-nos nostálgicos e damos por nós a gostar de seguir o fio da vida daqueles que foram alguém nas nossas vidas.
Um dia, na Mexicana (um lugar mítico na Praça de Londres, em Lisboa), estava eu a almoçar quando vi entrar o famoso Zé Pedro, o guitarrista dos Xutos e Pontapés, seguido pelo olhar de reconhecimento dos presentes e pela deferência dos empregados. Enquanto terminava a sobremesa e tomava o café fui avaliando perante mim próprio a coragem, a intromissão, de me dirigir à estrela (que me vira meia-dúzia de vezes quando tinha 17 anos) para lhe perguntar pela irmã.
Quando me cheguei à mesa e o interpelei é óbvio que ele não fazia a mínima ideia de quem eu era, mas recebeu-me com o sorriso acolhedor que lhe recordava e quando lhe pedi para dar, da minha parte, saudades à irmã abriu ainda mais o sorriso e disse:
“Podes estar descansado, vou estar com ela agora a seguir.”
E assim o fez e passei a poder reunir as linhas daquelas vidas que andavam a rolar por aí, longe do meu conhecimento. E se da Leny perdi, durante décadas, completamente o rasto (a não ser por, numa livraria, me dar conta que escrevera a biografia do seu famoso irmão), o mesmo não sucedeu com o Zé Pedro. Fui acompanhando pelos media a sua carreira, dei-me conta, com espanto mas tudo batendo certo, que os Xutos eram um produto lógico daquele ambiente urbano, de um frio de betão, dos Olivais que eu conhecera de raspão. Disso tudo fizeram parte os excessos (de drogas leves e duras e álcool) que o Zé Pedro nunca procurou varrer para debaixo do tapete da conveniência de figura pública.
Como qualquer médico lhe poderia ter dito, e provavelmente ele próprio intuía, as impurezas das drogas duras, sobretudo quando injectadas, entopem o filtro que é o fígado. O facto de se usarem agulhas, muitas vezes em condições de esterilização duvidosa e partilhadas com outros, atrai o vírus da hepatite C, doença que deixa marcas permanentes no fígado e o torna num tecido cicatricial que vai perdendo a habilidade de filtrar seja o que for. Ah! e o álcool, a tequila – por exemplo, faz um efeito sobreponível ao da hepatite C: transforma um organismo vivo e vital para nos livrar das impurezas que o nosso canastro produz num courato sem préstimo, uma isca requentada de roulote de porta do Campo Pequeno.
Por todos estes excessos, que se potenciam uns aos outros, o fígado do Zé Pedro deu o berro, de um modo tão definitivo que tiveram de o trocar por outro – estaria um dia destes possivelmente morto ou a caminho disso se assim não fosse. Não está, e a irmã mandou-me uma mensagem às quatro da manhã a dizer que o pior já parecia ter passado. Apaguei a luz, senti-me confortado e, suponho, terei mesmo esboçado um sorriso no escuro, não tão encantador como o do outro Zé Pedro mas, mesmo assim, passível de ser registado pelo detector de incêndios do tecto do meu quarto de hotel.
© Fotografias, de cima para baixo: (1) Leny, por Pedro Braula Reis; (2) Leny e Zé Pedro, Lisboa (Olivais), anos 70, fotógrafo desconhecido; (3) Enric Vives-Rubio, Público.
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