29 novembro 2019

BUENOS AIRES

Nverdade, foi só à medida que caminhava em direcção ao portão que me fui apercebendo de vários subentendidos, sendo o principal deles a enorme quantidade de tempo decorrido desde a última vez que ali estivera. Esse tempo como que se ia desdobrando ao ritmo das minhas passadas pelo passeio juncado das folhas amarelas do Outono.
Aquela não era uma área da cidade que costumasse frequentar e, ao chegar ao local onde tinha a minha reunião marcada, fui informado, por entre mil pedidos de desculpas, que esta teria de ser adiada por cerca de noventa minutos, uma vez que o meu interlocutor estivera retido num aparatoso desastre na autoestrada e encontrava-se ainda em trânsito.
Hesitei por uns momentos quanto ao que fazer. O dia estava de chuva, miudinha, todavia suficientemente persistente para obrigar a guarda-chuva, mas, por outro lado, não me apetecia ficar - como fora simpaticamente proposto - e aguardar numa sala de espera folheando revistas ocas de páginas lustrosas. Saí, tomei um café lento e quando voltei a olhar o relógio tinha ainda uma hora de espera à minha frente. 
No exterior, a chuva parecia ter parado, mas era apenas uma ilusão e em menos de nada as lentes dos meus óculos ficaram granuladas por gotículas. Foi após as limpar e ao olhar através delas para lhes testar a transparência que a minha vista embateu na placa toponímica identificando a rua que nascia naquela esquina. É uma alameda curta, estreita, ladeada por árvores antigas, com pouco trânsito, e é curioso como ao desviarmos por aí, saídos de uma rotunda de trânsito desenfreado, nos envolve a sensação de entrar numa dimensão mais pausada do tempo. Talvez o facto de se apelidar Rua da Meditação influencie essa impressão, ou talvez ela provenha de o topo da rua nos aparecer obliterado pelo muro do cemitério; não sei. O certo é que, ao caminhar em direcção ao gradeamento do portão, o tempo como que se foi desenrolando e refazendo ao ritmo do andar e, ao longo do passeio, como em expositores de rua, pareciam ter sido expostos, a preço convidativo, acontecimentos da minha vida pregressa. 
O meu pai morrera - tive de fazer cálculos para a quantia exacta - há catorze anos e era esse o tempo ao qual eu não voltava ao cemitério. Não muito após a sua morte, a minha vida profissional sofrera um abanão e fui empurrado a mudar de cidade, algumas centenas de quilómetros passaram a interpor-se entre mim, a sua campa, e a vontade de lá regressar para uma visita. Cinco anos volvidos foi a vez da minha mãe, que - para surpresa minha e da minha irmã - deixara escrito o desejo de ser cremada e dos seus restos mortais serem depositados num cemitério diferente daquele onde repousava o nosso pai.
"Ela já me tinha falado nisso, assim por alto, mas não dei continuação - são conversas sempre desagradáveis. Até lhe disse: 'mas a mãezinha não prefere ficar ao pé do papá?'."
Mas a nossa mãe, a crer na explicação da minha irmã, encorrilhara os ombros e argumentara que havia que se ser prático nesses assuntos: o cemitério que ela apontava estava apetrechado com crematório e oferecia uma modalidade de dispor das cinzas que lhe agradava, a qual consistia na plantação duma roseira sobre a covinha onde estas eram enterradas.
"Já lá estive e é muito agradável, é como se fosse um jardim, todo relvado e com vista para o rio..."
"Vista para o rio! Imagina.... Encolhe os ombros perante a hipótese de ficar ao pé do paizinho - como se fosse uma fantasia tola - e depois escolhe um sítio em que se vai transformar em rosas e tem vista para o rio!"
A minha irmã sempre tivera aquele feitio, um tanto para o bruto na afirmação das suas opiniões. Não que, no fundo, eu pensasse muito diferente dela, mas ouvi-lo, no dia da cremação dela, à medida que percorríamos as alas do cemitério e nos afastávamos do tal jardim com vista para o rio, chocou o meu desalento. Na ocasião nenhum de nós o sabia, mas essa tarde foi praticamente uma das últimas em que nos vimos: pouco depois o meu cunhado foi transferido para a sede, em Buenos Aires, da firma de adubos orgânicos em que trabalhava como engenheiro químico e por lá foram fazendo vida e depenando os anos, ela enredada na sua neurose de badejo, o marido com os derivados do guano, e os filhos crescendo, criando raízes e não querendo equacionar, sequer, a hipótese de um dia regressarem à origem.
A campa do nosso pai fica numa secção privada do cemitério, o que a tornava mais fácil de reencontrar. Durante quarenta anos ele fora arquivista na secretaria de um hospital, propriedade de uma irmandade religiosa, e essa fidelidade à casa abrira-lhe a possibilidade de vir a contar com um talhão de terra naquele cemitério. Já velho, recordo ouvi-lo falar sobre isso como uma apreciável vantagem, uma taluda que conseguira e quase não merecera! "Perpétuo!", dizia referindo a eternidade da possessão daqueles dois metros quadrados, onde, na qualidade de cônjuge, haveria também lugar para a minha mãe, pois durante vinte anos ele descontara mensalmente para essa benesse complementar.
O pedaço que lhe fora destinado situa-se numa espécie de praceta, delimitada pelas traseiras de um quarteirão de jazigos, e identifiquei a campa pela aproximação ao melancólico anjo de bronze que espreita do espaço livre entre duas paredes de granito. A sepultura dele, assim o quisera, era do mais simples: apenas uma pedra de granito cinzento onde figura o nome e o ano do nascimento e da morte. Mas, embora a campa estivesse muito limpa e a terra circundante livre de ervas daninhas, o estado em que se encontrava a lápide como que sublinhou a vermelho o tempo que passara sem ninguém ali voltar: as letras do sobrenome estavam quase apagadas; a data de nascimento, deslavada pelas intempéries e pela erosão, não se conseguia mesmo ler.
Olhei o relógio e tomei uma decisão rápida; os meus passos, arrastados à chegada, ganharam velocidade e determinação. Reparara que, vizinha da florista onde comprara o pequeno arranjo em verdes e amarelos para enfeitar a sepultura, convenientemente fronteiro à entrada principal do cemitério, existia um estabelecimento especializado em jazigos, mausoléus, estátuas e outras utilidades funéreas. Aí me dirigi. 
O meu problema foi facilmente identificado pelo homem que ocupava o pequeno escritório que, sob um telheiro, antecedia o terreno a céu aberto em que se atarefavam alguns homens e donde chegava um zumbir monótono de serras.
"Catorze anos é tempo...", disse ele como se falasse de um prazo de validade vencido há muito.
"É algum..." respondi pensando na eternidade que o meu pai julgara comprada.
Ajustámos o negócio, o preço da reparação, o modo como seria concretizada, o tempo que demoraria
"É fácil", continuava a garantir o proprietário, "vai lá um dos empregados e trata de reavivar os dizeres, voltam-se a pintar as letras como estavam. Agora só preciso que me diga onde fica a sepultura."
Eu não sabia nem a secção nem o número que a identificavam, mas até isso, segundo ele, era fácil de ultrapassar. Um dos empregados foi chamado a acompanhar-me, de novo, ao cemitério, para que lhe indicasse o local.
"Você conhece bem isto?", perguntei, já entre muros, para fazer conversa.
Ele olhou-me como se não conhecesse outra coisa e a pergunta fosse absurda. 
"Não devem passar dois dias que aqui não entre..."
Era um tipo ainda novo, baixote, magricela e, na cabeça, tinha enfiado um chapéu mole, de feltro verde e bicudo na ponta, como os que usam os duendes. Na face, coberta por uma poalha lívida de pó de mármore, os olhos, um nada estrábicos, brilhavam de segurança quanto ao terreno em que se movia.
"Fica no terreno da Irmandade?", foi adivinhando à medida que nos íamos aprochegando.
Ao longo do trajecto, tão indiferentes à chuvinha que caía como o meu companheiro, cruzámo-nos com duas gaivotas gordas e fomos vistos por três gatos, igualmente anafados, que espreitavam da cobertura de jazigos ou se empoleiravam em peanhas de gesso. Comentei o facto, perguntei-me onde arranjariam eles, ali dentro, a comida. 
"São as pessoas, quando vêm ver os mortos... Trazem para os gatos, mas as gaivotas antecipam-se."
"Mas hoje não se vê por aqui muita gente", contrapus, pois, desde que chegara, só avistara três ou quatro pessoas.
"É da chuva... É sempre mau para o negócio. Se você for ali, às floristas, vê que estão às moscas, como nós. Hoje, você foi o primeiro cliente que tivemos."
Chegáramos ao pórtico que assinalava a fronteira entre o terreno comum do cemitério e a secção privada pertencente à Irmandade, um desvão encimado por uma ampulheta em granito dotada de asas. Sustive um pouco a marcha para que o meu guarda-chuva não embarrasse o de uma senhora, já de idade, que saía. Ao cruzarmo-nos, ela baixou a cabeça num agradecimento discreto pela precedência e a sua cara pareceu-me vagamente familiar.  Entretanto, o rapaz adiantara-se e já deitava uma mirada rápida à lápide da campa do meu pai e distribuía olhares em volta, estabelecendo as coordenadas exactas do cliente. E, por não precisar mais de mim, desapareceu de regresso à sua oficina, deixando-me à minha sorte. 
Com todos estes imprevistos, acabei por chegar atrasado dez confortáveis minutos à minha reunião, o que possibilitou ao interlocutor receber-me limpo de remorsos pelo seu percalço rodoviário.

Umas três semanas mais tarde atendi uma chamada telefónica de um número desconhecido.
"O senhor desculpe só ligar hoje, mas aquilo atrasou-se - com o tempo que tem feito tivemos de ficar à espera, não é compatível estar a pintar letras à chuva. Mas está pronto, pode ir lá ver quando quiser."
Aquele "pode ir lá ver quando quiser", uma simples afirmação de serviço concluído, calou em mim e comecei a sentir algo parecido com o estar em falta perante uma obrigação. Não era minha intenção voltar à minha cidade natal no imediato nem, de modo algum, duvidei das palavras do outro quanto à reparação. Mas, nem quinze dias passavam, a um meio de manhã de Sábado, estacionei o automóvel nas cercanias do cemitério. Estava um dia de inverno frio e nítido e na Rua da Meditação as copas das árvores, agora nuas de folhagem, erguiam no céu delicadas circunvoluções rendadas que o sol escrutinava e, ao portão do cemitério, o carro de um vendedor de castanhas deixava escapar no ar uma elegante voluta de fumo branco.
Como se o tivessem andado a lavar durante a noite, uma fina capa de humidade cobria ainda o recinto e o mármore das estátuas rebrilhava à luz, assim como o chão das alamedas, pavimentado por pedaços quebrados de lápides e restos de sepulturas antigas, já distantes de alguém que lhes pudesse atribuir significado. Havia pouca gente, mas, desconfiadas, as gaivotas patrulhavam por ali, sisudas como polícias de mãos atrás das costas e reduzidos pelo reflexo de um espelho convexo. Gaivotas e parquímetros, fora essa a maior diferença que notara na cidade desde que a abandonara. Elas vigiavam as ruas montando guarda do cimo dos edifícios, enquanto cá em baixo, nas margens dos passeios, os parquímetros abocanhavam o restante espaço livre. 
Quanto ao cemitério - a luz clara da manhã expunha-o com crueza - o abandono percebia-se por todo o lado: pedaços de pedra tinham tombado dos beirais dos jazigos, a meio de uma álea uma enorme taça de pedra podia ter esmagado alguém que passava, e a passagem do tempo decepara a cabeça a uma estátua de mulher em tamanho natural. Neste contexto de ruína eminente, atravessei o desvão para a secção da Irmandade mirando com desconfiança a ampulheta alada que velava no frontão do arco: bastava uma gaivota pousar ali para poder desencadear uma desgraça, pensei, abalado na fé de encarar os cemitérios como lugares de paz e harmonia.
Ao aproximar-me do recinto onde ficava a sepultura do meu pai, observei um vulto sentado na lápide de uma das campas - era uma senhora já de certa idade e estava a cuidar dum pequeno arranjo floral ao topo... Com surpresa crescente fui apercebendo que, na pedra onde estava sentada, cintilavam, refeitas, as letras douradas do nome do meu pai e que a dama, entretida a catar pétalas murchas às flores, parecia ser a mesma que se cruzara comigo no dia em que lá estivera com o duende da serração de mármores.  Sim - sem dúvida - era a mesma pessoa, concluía agora que estava mais perto: o mesmo casaco cinzento de gola levantada, o mesmo cabelo branco apanhado num pequeno puxo sobre a nuca, a mesma carteira castanha onde ela, nesse preciso momento, guardava as pétalas velhas amontoadas na placa de granito. 
"Estou aqui a varrer a campa do teu pai... O arranjo que trouxeste era bonito e durou bastante, mas vai-se desfazendo com a passagem dos dias, já se sabe."
A minha mãe levantou a cabeça do que fazia e olhou-me com um sorriso que apenas os olhos pareciam não acompanhar.
"Viste que bem ficaram as letras?"
"Vi, já vi; estava a reparar nisso..."
"Foi aquele rapaz que veio aqui contigo... Olha que esteve umas duas horas à volta com isto: raspou as letras e os números um a um, avivou os entalhes e, a seguir, pintou... Ter-lhe-ia dado uma moeda, se a tivesse..."
"Não se rale, mãe, depois eu passo por lá a deixar."
"Ao tempo que isto se começou a degradar, as letras a descascar, cada dia um nadinha mais... Uma vez esteve aí a tua irmã, tentei dizer-lhe, mas ela não me ouvia, entretida a choramingar e a assoar-se! Há muito que não a vejo - talvez que venha nos Finados, mas evito vir nesse dia, a confusão e o cheiro de tanta vela põem-me zonza..."
"Ela agora não mora cá, mãe, há quase sete anos que foi para Buenos Aires; o Anselmo trabalha lá agora — que eu saiba não voltou ao país."
"Buenos Aires!", a minha mãe suspirou e, dando como terminada a tarefa de limpar os desmanchos do arranjo floral, pôs-se a arrancar as pequeninas ervas que, timidamente, levantavam hastes entre a campa e o terreno circundante.
"E a Doroteia? Não veio contigo?"
"Já não somos casados... Ela seguiu a sua vida e eu a minha..., já faz tempo."
"Tempo", disse ela em tom desdenhoso, "é coisa que não tem medida certa: tanto parece demasiado como muito pouco".
Ficou imersa em pensamentos por uns minutos, as mãos finas - que recordava tão bem de quando as passava pela minha cabeça chorosa e me acalmava dos males - acariciando ao de leve as tenras hastes verdes que brotavam do solo.
"Sabes, durante vários anos tive remorsos por pensar que podia ter matado o teu pai...; mas, agora, já me passou."
"Aquela história das castanhas assadas?"
"Sim", respondeu num fio de voz.
O meu pai falecera num entardecer gelado de Novembro e na véspera, dia de S. Martinho, atulhara-se com as castanhas que a minha mãe assara, sabendo que se pelava por elas. No final do jantar, ele passara umas mãos arrependidas pelo contorno da barriga e desabafara à cozinheira:
"Mataste-me com tanta castanha!" 
"Foi uma força de expressão; o paizinho não morreu disso, como sabe: o médico garantiu que foi um enfarte fulminante. Ele já tinha a dor..."
"Eu sei, eu sei... Mas demorou até que me convencesse; acho que foi porque, finalmente, descobri que quase nada depende de nós, sabes, que pouco podemos fazer ou interferir no rumo que as coisas já trazem em si..."
A garganta apertou-se-me no peito. Ainda a meio da frase, ela voltara a levantar a face da tarefa de alisar as ervinhas e olhara-me com uma expressão de resignação que os olhos, um tanto inexpressivos, pareciam não acompanhar.
"Vou andando, mãezinha, agora moro longe daqui..."
Ela levantou-se, esfregou as mãos uma na outra a sacudir os grãos de terra.
"Vou contigo até à porta."
Em silêncio, lado a lado, percorremos o caminho de volta até à saída do cemitério, silêncio interrompido uma só vez para ela assinalar um gato que se nos atravessara à frente.
"Já viste a quantidade que há por aqui? Antigamente não havia tantos gatos nos cemitérios, enxotavam-se, achava-se que eram animais que arrastavam azar. Coitados dos bichos. Outro dia vi aqui um igualzinho ao Dingdong... Lembras-te do Dingdong?"
"Então não lembro? Não fui até eu que o baptizei?"
"Foste, foste, por causa da campainhazinha na coleira..."
Chegáramos ao portão principal do cemitério e, olhando para além das grades, a minha mãe comentou:
"Rua da Meditação... Gosto tanto do nome desta rua. Nunca deviam dar às ruas nomes de pessoas - com o tempo passa a não significar nada."
"Adeus, mãezinha. Fica aqui?", perguntei ao vê-la estacar na soleira do portão.
"Fico. Se calhar ainda volto lá dentro. Vai em paz, guia com cuidado..."
Estendeu uma mão na direcção da minha cabeça, como se fosse sua intenção fazer-me uma carícia. Tirei o chapéu, mas os seus dedos hesitaram antes de me alcançar e suspendeu o gesto.
Atravessei a rua, entrei na oficina dos mármores a deixar a gorjeta e quando saí o meu olhar procurou o portão do cemitério. Ela desparecera de vista. Subi a rua em direcção à rotunda e ao carro, que estacionara ali perto. A meio da rua, um impulso fez-me olhar para trás: ela estava parada do lado exterior do gradeamento, aninhada a um dos grossos pilares de pedra onde estão encastrados os gonzos do portão, e levantou o braço num aceno muito leve, a carteira castanha a balouçar no braço que se movia.
© Fotografias, pedro serrano, Porto 2010, 2019.

28 novembro 2019

A CULTURA DO DESCANSO (no sentido intelectual do termo)

Rafael Esteves Martins, o insinuante pagem de Joacine Katar Moreira, declarou a um orgão de comunicação social que [sic] "parece-me ocioso explicar que não há propriamente uma normatividade daquilo que se faz. Há culturas de trabalho, e a cultura de trabalho da senhora deputada é uma cultura de descanso no sentido intelectual do termo, ou seja, sem interrupções".
Quem fala assim, não é gago, reconheça-se: é, antes, pretensiosamente parvo.
Já quanto à senhora deputada, após ter deixado passar o prazo para entregar na Assembleia um trabalho importante para o Livre (ao que supomos à sombra da influência da tal cultura de descanso), explicou aos jornalistas que [sic]: "Eu acho que é preciso nós iniciarmos a respeitarmo-nos uns aos outros. E se vos for avisado e antecipado que eu não ia dar entrevista absolutamente nenhuma, o que se espera é que haja um respeito".
Mas, cara Joacine, e se, para a minha cultura de um intervalo no descanso, não for para mim avisado seguir a sua sugestão, como hei-de então iniciar nós? 
É que aqui é que reside o búzio, digo, o busilis! 

27 novembro 2019

ESTAVA BOM DE VER

Numa espécie de declaração de conflito de interesses, começo por dizer que o Sr. Rui Tavares, de que soube a existência através dos textos que escreve no Público, tem uma personalidade que categorizo como irritante. Tento ler as crónicas que escreve e raramente consigo chegar ao fim. Para além de chato no tom, dá-me, como se costuma dizer, 'galo' o tom pedagógico e sussurrado de quem sabe o que seria melhor para a minha felicidade, para a felicidade de Portugal, da Europa e do Mundo em geral. Ah, se ao menos a gente seguisse os conselhos dele... E, de quando em quando, se pensa que aconteceu um desaire evitável no Mundo ou na freguesia, de dedinho em riste vem explicar-nos que estava bom de se ver, que ele bem tinha chamado a atenção na crónica da semana não sei quantos...
Depois apareceu o Livre e era mais do mesmo, não foram a lado nenhum, como se viu, nas primeiras tentativas. Tirando a aceitação da Europa, para aquilo já havia por cá o Bloco de Esquerda, fosse na versão mais dona de casa da Catarina ou na mais Família Adams da Mortágua.
E eis que, súbita como uma tempestade de Verão, surge, vinda directamente do nada, uma tal Joacine KM. Ah, é ela que vai ser cabeça de lista do Livre e não o Tavares? Mas porquê? Bem, televisivamente falando, Katar sempre enchia mais o olho do que o outro, que é careca e feioso. Vamos então mudar-nos de sofá e ver o que pensa esta, o que diz, magicava eu nesses dias primevos que antecederam as legislativas de Outubro de 2019.
Mas - após a edição paciente da parte edível - era claro que não dizia nada, coitada, não dava uma prá caixa, é o que se comenta na minha terra em casos semelhantes. Nenhum caminho, nenhuma ideia, a não ser a já muito estafada conversa do costume sobre racismo e ser mulher alternativa, mailas causas fracturantes e outras subvariações da actividade sísmica. 
"Mas porque não vai antes o Tavares às urnas", perguntava-me: "sempre se aguentava melhor nas curvas, já tem o estágio feito e tudo". Acontece que - tantas vezes foi agitado sob os meus olhos que fui compreendendo - o truque que podia fazer a diferença nos papelinhos estava precisamente em a candidata ser mulher, preta/negra (riscar o que não interessa), gaga, ex-colonizada, e pronta a acolher no seu abraço todas as demais agitações que quisessem vir pousar no fio da comunicação sem fios das redes...
O resto é história: a mulher lá foi eleita, mas o que rapidamente as câmaras, em directo da Assembleia da República, revelaram foi alguém completamente centrado em si próprio, esfusiante por estar ali, movendo-se na companhia idiossincrática de um secretário que se desmultiplicava para não ser ultrapassado em protagonismo, os dois largando olhares e confundindo o lugar, por onde borboleteavam checkando se estavam a ser convenientemente filmados, com a passadeira vermelha duma noite de ídolos na TVCM. Em cascata, pela rádio e pela televisão, borbulharam entrevistas onde o que mais me ficava na memória eram as palavras excitadas em louvor do andar especial das negras, a alegria e a superioridade dos rabos enormes, das conterrâneas mamas. 
Não foi, também, preciso esperar muito mais para que a senhora revelasse em público a sua ignorância política, a sua estreiteza de vistas, o fascínio total por si própria, este último consumado na birra que fez ao ser apertada e em crer que teria sido eleita sozinha. Pobre Rui Tavares, o homem estava mesmo na merda quando os olhos e os ouvidos das câmaras lhe caíram em cima! Era nítido que não esperava uma facada daquelas, uma peixeirada daquelas, nem que o Livre ficasse refém, assim tão de repente, de uma desconhecida. Vai ver-se aflito, coitado, para arrancar a senhora ao protagonismo que adquiriu e no qual já está viciada, para a sacudir da organização, pois a mulher é fogo e vai-se agarrar à causa dela como uma sanguessuga a um bife do lombo. E, antes de voltar a cair no esquecimento, por gosto e inconsciência, irá deixar o partido em péssimo estado.
Mas, como o Sr. Tavares, gosta de pregar nas suas crónicas, estava bom de ver.