30 junho 2015

O CRIADO-MUDO

A última vez que estive a menos de um metro de Cavaco Silva foi há trinta e cinco anos, era ele Ministro das Finanças e eu um jovem médico, acabado de designar director do novíssimo centro de saúde de um dos concelhos mais atrasados do país.
A colisão deu-se no dia da inauguração e eu e o meu pessoal estávamos arrasados de, nos dias anteriores, termos andado a desempacotar os caixotes que juncavam os corredores do centro de saúde. Uma correria, pois quem mandava tinha decidido que o centro seria inaugurado mesmo sem movimento, sem consultas, sem doentes,  apenas com as paredes e o tal material, desencaixotado.
Mal me viram ao saltar das viaturas EP que precediam a comitiva ministerial e demonstrando grande perspicácia simbólica, os meus chefes regionais mandaram que vestisse uma bata, a demonstrar que havia ali uma autoridade médica, alguma organização. Neguei-me a tal, pois parecia-me absurdo uma solitária figura de branco a pairar entre figurões de fato completo num estabelecimento de saúde ainda fechado ao público. Amuaram muito.
Não contando com as figuras de proa da comitiva norueguesa, a maior parte das quais eu já conhecia, do lado português havia cinco ministros presentes, a abrilhantar numericamente o apreço que Portugal atribuía aos quase catorze milhões de euros que os noruegueses estavam a despejar no distrito de Vila Real, metade deles a fundo perdido! Que viessem muitos daqueles!
Como sempre acontece nestas coisas, num dos deambulares pelos corredores a mostrar a obra achei-me lado a lado com o ministro das Finanças, um ser que – ao vivo tal como na TV – me impressionava pelo ar empertigado, seco, rígido, o qual trazia à lembrança um criado-mudo, uma daquelas estruturas em madeira com ombros e sem cabeça onde se pendura, para que não perca a forma, a roupa ao fim do dia. Só que este criado-mudo tinha uma desvantagem: falava! E tendo-lhe sido apresentado, minutos atrás, como o futuro director daquela instituição, o homem desata a fustigar-me com o seu desagrado pela despesa nacional com o transporte em ambulância e a inquirir o que tencionava eu fazer para mitigar o assunto a nível local. Ora acontece que eu estava por ali há meia-dúzia de dias, com as mãos cheias de calos dos caixotes, que – até à data – tinham sido os únicos bens da área da saúde a ser transportados e, como brevemente me iria aperceber, sem autonomia sequer para mandar comprar uma lâmpada se as que tinham sido pagas pelos noruegueses fundissem. Tendo tudo isso em perspectiva, respondi à admoestação do senhor com ironia, o que o deixou ainda mais irritado do que no seu natural. Quem acabou por me salvar do aperto foi outra eminência presente, um homem dando pelo nome de Morais Leitão e Ministro dos Assuntos Sociais, um tipo simpático e de piada pronta que se apercebera da situação.
Duas horas depois tinham todos ido embora, deixando-me entregue aos bichos e às paredes vazias. O Centro de Saúde abriria quinze dias depois, mas aí já só os noruegueses – regressados às suas temperaturas abaixo de zero, mas sempre atentos – se congratularam com o feito e com os progressos posteriores.
Pois esta cascata de lembranças desencadeou-se a propósito do pouco que mudou Cavaco Silva nestes trinta e cinco anos e também do pouco que evoluiu o meu apreço pelo personagem que faz agora o criado-mudo em Belém. E o homem conserva o seu acrescento antigo: fala! E fala agora em nome do país, não só em nome das ambulâncias, para mal dos nossos pecados. Já esta semana, a propósito da possível saída da Grécia da Comunidade Europeia, achatou o problema à evidência de que ficaremos 18 em vez de 19, com a oculta satisfação – a bailar-lhe nos olhos e na entoação – de até poder vir a sobrar mais qualquer coisita para nós num grupo em que, perante o mesmo bolo, os clientes vão ser em menor número... Toda esta sabedoria de lápis atrás da orelha, vertida naquela superioridade nauseada de quem está absolutamente seguro do que diz.  
O homem acha mesmo que não precisa de aprender mais nada e, se tudo vier a correr mal para nós, como é possível, não se perturbará e virá comunicar ao país a imprevisibilidade dos mercados e do contexto internacional...
Até lá, bem que poderia, antes de abrir a boca e envergonhar-nos a todos,  ilustrar-se um pouco sobre esse contexto de que fala. Bastava ler-lhe um livro ou dois sobre a história da Europa e dos países que orlam o Mediterrâneo, pois a coisa repete-se. Se demasiado maçado, não precisava sequer ir tão longe, era só pedir a um dos assessores que lhe requisitasse um desses livros sobre a II Guerra Mundial que abundam agora pelas livrarias. Numas centenas de páginas em português ficaria a perceber como – nuns dias em que já por aí andava, de calções, a esgravatar a terra no meio das alfarrobeiras – alguns dos políticos que mereceram esse nome se preocupavam com um pequeno e periférico país chamado Grécia e com o papel-chave que ocupa no equilíbrio do Mundo.
Mas há certas pessoas de quem não se deve esperar esforço para além de um “aqui não há fiado” ou de um “aqui não há feriado”.


    

29 junho 2015

NÃO VENHAS TARDE: 20. SURGEM AS LOURAS

Wednesday, 29th September 1976
Rui and Pedro
I would like to wish you both Bon Voyage. I hope your journey is fulfilling.
Although our meeting was brief, I hope a friendship can develop in the future. I truly hope that we will meet again in Portugal or in New York.
Sincerely,
Larry Tarzy
Thursday, 30th September
At last, you’re off! These past few days have truly been a test of patience. I know you have passed the test.
Once again bonne chance.
Larry
1 de Outubro, Istambul
Apesar do bonito postal que o Larry nos ofertou, cuidadosamente enfiado em envelope e este em celofane transparente, apesar das sucessivas celebrações de despedida, numa das quais o Doug Greenberg nos cedeu para sempre a sua versão de bolso do Siddhartha [1], ainda aqui estamos ancorados e, pior, estou cheio de saudades desta cidade mesmo sem ter partido.  
Embora o tipo nos tenha vigarizado um pouco, mantivemo-nos com a mesma agência de viagens na nossa procura de transporte daqui para fora. Para quê mudar e começar tudo do zero? Acabaríamos por ir parar a um malandro parecido… Agora que tudo está esclarecido, desde a merda do Mercedes à aceitação da perda da entrada para os bilhetes, o gajo parece ter ganho algum respeito por nós e apressa-se a arranjar-nos cadeiras, a mandar vir copos de água com gelo, e chá, mal entramos a porta da agência. Mais, como, com grande alarido, assumiu mea culpa nos novos atrasos na partida, colocou-nos, a nós e a mais uma dezena de viajantes como nós, por sua conta, no Hotel Ayasofia, uma espelunca de nível superior ao Güngör, no miolo antigo de Sultanhamet. O nosso quarto, enorme, parece uma coisa saída do século XIX, com uma enorme cama de madeira maciça no centro e um colchão mole de serralho, mobília rangente a condizer, e uma varanda, grande como um alpendre, com uma cobertura feita à custa de uma ramada frondosa e por onde, entre balaústres de ferro roído, se enrosca, vinda da viela lá em baixo, uma trepadeira cheirosa. Como nem tudo é perfeito neste mundo e no nosso quarto, em camas desdobráveis convenientemente acrescentadas, ficaram a fazer-nos companhia um japonês sorridente e pouco falador e um alemão baixinho, gordo e bem disposto e, como todos os pícnicos, uma grafonola. Tem toda a pinta de quem logo à noite, depois de umas cervejolas largas, vai ressonar como um reco.
A agência de viagens, que diariamente visitamos em busca de informações, tornou-se uma espécie de sala de visitas do contingente que segue de Istambul para Teerão, alguns dos quais estão no Ayasofia, mas que não cessa de aumentar em conviventes. Será que o patrão está a adiar a partida até ter a lotação esgotada? O Des acharia que sim.
Todos os dias o tipo nos dá uma novidade para nos manter animados e a de hoje é a de que o autocarro que nos levará já está contratado, tem ar condicionado e o maior conforto. A sala de espera da agência está cheia e uma das presentes diz que tudo isso é muito bonito mas que o quer mesmo saber é a data da partida.
O nosso anfitrião, um turco alto, moreno, de bigode farto, faz que se ofende:
  Man, se eu tivesse essa informação já a tinha dado, afinal é para isso que aqui estou! É uma coisa que me ultrapassa, mas, enquanto tudo não se resolve, estou a fazer o que posso por vocês. Acham que vou ganhar algum dinheiro com esta viagem, com o que estou a gastar com hotel e tudo isso? Estou já a ter prejuízo, mas é uma questão de honrar compromissos, de amizade...
Com esta o tipo fez sorrir todos aqueles que lhe topam o estilo e calou a cliente inquisitiva, uma americana de cabelo curto, óculos redondos fumados, toda vestida de negro e que nos faz constantes demonstrações de como alcandorar nas costas, com um único movimento, uma monstruosa mochila. Muito o tipo self-made-for-the-road, sempre a barrar enormes fatias de pão com manteiga de amendoim que vai distribuindo por todos os presentes.   
Como da adrenalina para a água, ao lado deste frenesi está sentada uma outra americana, esta muito tímida, olhos azul-porcelana resguardados por uns óculos sem armação. Mantém-se muito quieta na ponta do sofá, numa pose receosa e não aceitando nada do que vai sendo oferecido para comer ou beber. Para entreter a timidez vai fazendo festas a um gato de Istambul que se lhe aninha no colo, mal acreditando que alguém lhe coça os lombos... Bem que a avisei daquilo a que se estava a candidatar, mas ela limitou-se a abanar as farripas do cabelo liso como quem não se importa.
No género contido, mas este do sexo oposto, empoleira-se num maple como se estivesse já no isolamento da sombra de uma figueira-sagrada um inglês dos seus quarenta anos, magro como um cão e de cabelo apanhado num rabo-de-cavalo. Mantém os olhos permanentemente cerrados, só os abrindo para esclarecer, quando inquirido, a clássica questão:
– E você, para onde vai?
– India… I’m goin’ there to get lost…
Finalmente, dois tipos da Malásia, nossos vizinhos de quarto no Ayasofia, de tez bem brunida, cabelos negros pelos ombros, ambos muito do subgénero vigarista-simpático.
O turco da agência circula incessantemente entre os presentes com a preocupação de manter o ambiente ao rubro e as pessoas satisfeitas. Sempre que passa por nós mete-se com o Rui para dizer que o bigode dele é mais pujante do que o do meu companheiro de viagem. Numa dessas deambulações, imagine-se só, convidou, o mais discretamente que conseguiu, a americana tímida para ir hoje jantar com ele.
Saímos da agência acompanhados de três novos hóspedes para o Hotel Ayasofia: um afegão, uma presença muito disputada na agência, pois toda a gente quer saber novidades e informações sobre o misterioso país. O tipo, enquanto distribuía sementes de melão e cigarros pelos presentes, lá ia dizendo que era um país lindo e muito barato, mas estava mais interessado em saber o preço de tudo e em comprar tudo em que a vista lhe pousa. Nessa noite, quando o levámos ao nosso café, quis comprar os copos por ondes bebíamos chá. Para o calarem, acabou por levar um copo de presente, mas não conseguiu comprar a meia-dúzia que pretendia pois havia um desafio de futebol na TV, o café estava cheio e os copos faziam falta.
Os outros dois novos hóspedes do Ayasofia por conta da agência e que seguem connosco no autocarro para Teerão, na improvável data em que este partirá, são duas francesas dos arredores de Paris. Louras, cabelos longos, olhos azuis, do subgénero altamente comestível não fosse a regra de ouro n.º 2. Dizem ir para a Índia durante três meses e uma delas trouxe até uma viola com ela, objecto que me ofereci para carregar durante o trajecto para o hotel:
– Pardon, madame, peux je transporter votre guitare?
– Oh, merci, monsieur…
Na confusão da chegada e das mochilas acabei por levar a guitarra para o meu quarto e, através da varanda, emprestei-a a um dos malaios do quarto pegado ao nosso. Passados uns minutos ele bateu-nos à porta para nos convidar a ir ouvir música ao quarto deles. Quando lá chegámos, um deles perguntou mal nos sentámos:
– Nenhum de vocês tem erva?
Abanámos a cabeça com simplicidade, achando que não valia o investimento estar a explicar-lhe a génese da regra de ouro n.º 3. Impermeável a tudo isto, o japonês mantém-se sentado sobre a sua cama desdobrável, de pernas cruzadas, a coser o saco-cama com gestos lentos e amplos de linha e agulha.
[1] Siddhartha – Livro de Hermann Hess, publicado em 1922, é uma poética versão da vida de um jovem indiano, contemporâneo de Buda, em busca da plenitude interior. Juntamente com O Fio da Navalha, de Somerset Maugham (veja Nota n.º 5), era um dos clássicos inspiradores dos viajantes para Oriente. Em português, entre outros editores, Siddhartha foi editado pela Minerva em 1974.

23 junho 2015

NÃO VENHAS TARDE: 19. DA PARASITAGEM COMO MODO DE VIDA

Estava, porém, escrito nas estrelas que voltaríamos a ver o velho cônsul e que, de novo,  nos auxiliaria com o seu sorriso de quem acarinha aflitos como quem rega plantas.
No Güngör resolvemos mudar das camaratas para um quarto só para nós, um belo quartito assotado com duas camas, no quarto-andar. Estamos saturados de dormir, para manter o bolso secreto sob vigilância, com os jeans enfiados e com um olho fechado e outro aberto, pois os colegas de quarto, mesmo os de olhar mais para além do arco-íris, não inspiram confiança. Um viajante, curtido por várias passagens pelo Caminho hippie [1], avisou-nos que o mais perigoso no Oriente é o Ocidente! O caminho pulula de gente sem escrúpulos, uns por estarem agarrados a drogas duras e dependentes do respectivo negócio, outros fugidos dos seus países por delitos comuns e complicações com a polícia. Todo esse tipo de gente anseia por dinheiro fresco e a alguns dava imenso jeito mudar de identidade usando um passaporte reconvertido. A outra razão para decidirmos mudar foi porque atribuímos aos beliches, a toda aquela promiscuidade de espaços pouco arejados e encardidos o mal cutâneo que nos atacou aos dois, primeiro ao Rui e depois a mim. Nas últimas manhãs acordámos com o corpo, a única excepção é a cara, coberto de pápulas cor-de-rosa-inflamado e provocando um prurido tão tremendo que nos apetece raspar a pele a canivete. Crentes nos benefícios da água tomámos abundantes liras de banhos, ensaboámo-nos insistentemente, mas o alívio só durou enquanto estivemos sob o jacto frouxo do chuveiro. O mal não parece picada de mosquito, são demasiados focos, muitos deles em zonas cobertas durante a noite; nem de pulga, que deixa um halo mais escuro. Como as zonas mais carnudas das mãos também foram atacadas ainda pensámos em sarna, mas não há sinal dos clássicos túneis entre a pele dos dedos que os diligentes parasitas da sarna escavam. Uma das hipóteses que pusemos foi a de intoxicação alimentar, mas o cônsul abanou a cabeça aos colegas mais novos numa negativa pensativa: para ele, aquilo estava a ser provocado por forte reacção de tipo histamínico a animal hematófago e o melhor seria comprarmos uma solução anti-histamínica calmante, do tipo do Caladryl.  
Mas as nossas chagas foram assunto minoritário na nova ida ao decrépito consulado. Tal como combinado ontem, voltámos confiantes à Embaixada do Irão para levantar o visto do Rui. Nada feito: o passaporte dele diz ser válido para “todos os países da Europa” e nós vamos, abundantemente, sair da Europa. Mudada a redacção para “todos os países com os quais Portugal mantém relações diplomáticas” corremos à embaixada do Irão onde o funcionário, já sorridente de tanto nos atender, nos entregou o almejado visto.
Depois de nos besuntarmos abundantemente com a emulsão (o Rui está em bastante pior estado do que eu), passámos pela agência de viagens à cata de novidades do nosso transporte Istambul-Teerão. Quem tinha razão em desconfiar era o Des que, a esta hora, já vai por aí largado em direcção a Leste! O gerente da agência diz-nos que partiu uma camionete hoje de manhã e, como nós não aparecemos nem avisámos, perdemos não só o transporte como também a entrada que tínhamos adiantado... No entanto, o tipo tem uma solução maravilhosa para nos oferecer e que apaga todas as possíveis ofensas: há um amigo dele com um Mercedes para levar para Teerão e (a viagem é de mais de 2.000 km) precisa de quem lhe leve o carro por essa Ásia fora. Ora, se nós lhe levássemos o carro teríamos transporte de graça, partiríamos quando entendêssemos e o amigo dele ainda nos pagaria 100 dólares a cada um pelo incómodo. E pelos entredentes daquelas facilidades fomos percebendo que o esquema que nos pareceria lógico – nós dois e mais o dono do Mercedes revezando-nos na condução ao longo de três dias sem parar – nos bafejava com mau hálito:
Não, man, não estás a perceber: o meu amigo não vai, o carro fica à vossa responsabilidade e em Teerão está alguém à vossa espera para o recuperar...
Não alinhámos no contrato, pois já ouvíramos falar do fervor inquisitivo das fronteiras iranianas e de como Turquia e Irão lidam com traficantes seja do que for. Com a recusa, mas sem hard feelings, lá se foi o nosso sinal para o bilhete pelo cano! Antes isso do que correr o risco de viajar luxuosamente com um pneu sobresselente recheado de pó branco ou amarelado.
Agora são cinco e pouco da tarde e, pelos altifalantes das mesquitas, os muezins cantam o Senhor e convidam os crentes a orar. Aplacámos a desilusão no nosso café onde, desta vez, estamos na companhia de Larry, um outro americano que conhecemos no Güngör por intermédio do Des. Embora natural e residente em Nova York, o tipo tem ascendência turca e anda a viajar pela Europa há treze meses.
Encontrámo-lo no final da viagem e daqui regressa a casa. Foi um gajo com quem não simpatizámos no princípio e a primeira conclusão que tirámos sobre ele foi que deveria ser bicha, impressão esboçada com os crayons da voz afectada, dos gestos aéreos, do cabelo penteadinho, da echarpe de seda entalada no colarinho e os retoques de outros sinais minor de deslumbramento urbano. Mas estamos os três sentados a uma mesa de mármore antigo, coberta de papéis, cadernos, o I Ching, um canivete suíço, um cachimbo,  cinzeiro; os clássicos copos de vidro do chá de menta. E a conversa corre como um rio de planície: serena, quente, diluindo-se na tarde que escurece lá fora. Contamos-lhe coisas da nossa vida, de quem somos e de para onde não sabemos que iremos para além desta viagem agora começada. E ele, numa voz quase ciciada, de quem olha para dentro, fala das manhãs que passou em Hollywood tomando chá com uma velha tia, e de dias de inverno em Nova York, ventosos, com vidros enormes a voar como papagaios sem fio e a estilhaçar-se na rua, directamente caídos de arranha-céus com quarenta andares. No caminho lento para o hotel ele garante-nos sucesso e deseja-nos serenidade, diz que pelo que vai conhecendo de nós chegaremos onde queremos.   


[1] Caminho hippie (Hippie trail) – Rota que nos anos 60 e 70 seguiam os viajantes para Oriente. Partindo de várias cidades europeias (Londres, Bruxelas, Amesterdão) iniciava-se em Istambul e alcançava a Índia atravessando a Turquia, o Irão, o Afeganistão e o Paquistão. Na Índia, subdividia-se em dois ramos mais frequentados: para norte até ao Nepal ou para sul até Goa.    

18 junho 2015

ÁFRICA SUBSARIANA

Guerra era-lhe palavra familiar. Nascera por ela, por assim dizer. O pai, que nunca vira, era branco, servia no exército colonial e fora já para o fim da comissão que engravidara a mãe. Depois desaparecera, mas nem sequer um nome completo deixara, sabia vagamente ser natural do norte. Era uma coisa que lhe fazia impressão, mesmo tantos anos mais tarde: embora tentado, nunca se decidira a ir a Portugal por receio de se aventurar num local que representava o mistério da existência.
O estado do país fizera com que toda a juventude se escoasse sem a certeza do dia seguinte: guerra civil, não há nada pior para impedir uma pessoa de pensar no futuro. Apesar disso, fora fazendo a sua vida e quando a tropa o deixou deixá-la era médico militar, sem nenhuma especialidade de que se pudesse gabar mas habituado a fazer um pouco de tudo, desde amputar membros a comportar-se de todos os modos necessários às ocasiões, e até quando adormecia durante uma reunião mais longa era capaz de vir à superfície rapidamente e apanhar o essencial do que fora dito.
Agora, sentado à cabeceira da mesa de reuniões – o cargo de director do Hospital Provincial assim o ditava – não dava para dormir ou sequer fechar os olhos: havia três brancos concentrados nele, a explicar-lhe uma série de coisas que pouco o interessavam, que prometiam agitar os serviços pelos quais era responsável, mas  não estava seguro se isso lhe interessava, se interessava fosse a quem fosse. Mas Luanda mandara que recebesse a missão portuguesa e tivera de encaixar a reunião logo a seguir ao almoço, amontoara à pressa os papéis que se empoeiravam sobre o tampo de fórmica da mesa para arranjar espaço para os dossiers e os computadores que as visitas tiraram das pastas, espaço para o caderno com elástico onde a loura não parava de escrever, como se o que ele dissesse lhe fosse servir para alguma coisa.
Estava um calor danado e o aparelho de ar condicionado – oferta da cooperação chinesa – mal refrescava o gabinete onde a porta devia manter-se aberta, pois havia sempre alguém para o vir chatear com um papel a assinar, com o recado de que o camião-cisterna não aparecera e que o hospital ia ficar sem água dentro de  horas ou que – mais uma vez – o gerador não aguentara por haver demasiada gente, dentro e fora da cerca do hospital, a puxar baixadas clandestinas à sua custa; até repartições do Estado tinham sido apanhadas a usar a electricidade alheia! E toda a gente queria sempre que resolvesse tudo, com urgência, sem dinheiro, sem poder efectivo, constantemente a sentir-se um rafeiro entre as ordens ladradas do Governo Provincial e os telefonemas prioritários do Ministério da Saúde...
As pálpebras pesavam-lhe, mas a loura continuava a debitar as vantagens para o progresso do país e para o hospital provincial dos serviços de consultoria – seria isso? – que lhe estava a propor gratuitamente e que passavam por ensaios clínicos, novos medicamentos, formação do ‘staff local’, dizia ela toda fresca, espantava-se como é que uma mulher que já devia ter os seus quarenta e bué não estava ainda transformada numa velha... Se calhar nem casada era, não tivera seis ou sete filhos para lhe derreter os lombos e lhe amarfanhar o corpo. Abanou a cabeça, como se estivesse a concordar com o que ela dizia, mas o aceno foi mais para registo do português sentado ao seu lado direito, mesmo de frente para a loura, o qual lhe parecia tão agoniado quanto ele com o discurso cheio de inputs, outcomes e maisvalias . Nem há vinte minutos, o gajo pedira licença, levantara-se e desaparecera pela porta entreaberta do quarto de banho, onde se demorara mais do que seria necessário, mas as visitas europeias, embora não abrissem o bico, ficavam sempre fascinadas pelas três kalashnikov encravadas entre a retrete e o balde de água que servia as vezes de autoclismo. Coitadas das velhas espingardas, estavam mais ali por companhia do que por outra coisa, duas delas até já tinham ganho capa de ferrugem, embora, já se sabe, uma AK47 nunca se estraga de vez, é sempre recuperável se voltar a ser preciso aplicar uma ração de chumbo. Algumas das visitas até saíam lá de dentro mais brancas do que já o eram e o português, ao voltar, olhara-o com mais incisura; aqui e acolá – enquanto a loura papagueava sobre alavancagens e ganhos em saúde, deixava o olhar passear-se até à porta entreaberta do quarto-de-banho como que a conferir se as armas ainda ali continuavam. Desconhecia que tipo de relação teria ele com a loura ou com a outra, pois virem juntos de Luanda não explicava tudo, não explicava nada. Ao chegarem, tinham-se apresentado, mas não ligara muito, nunca ligava muito, a maioria aparecia uma única vez; prometiam dar continuidade às iniciativas, escrever mails, ele nem os lia, e o que eles faziam na terra deles interessava-lhe pouco.
Agora que ela estava ali à sua frente conseguia encarar a loura tecnicamente, mas gostaria era de ver como se safava a chupar as espinhas de um cacusso entre os dedos ou a dançar kizomba... De qualquer modo, o outro tipo não parecia apreciá-la muito, pois de vez em quando lançava-lhe olhares enraivecidos para a cabeleira ou interrompia-lhe o discurso para explicar – a ele, que tentava não adormecer por fora e por dentro – que não era bem como ela estava a dizer ou que o que ela estava a dizer era que..., embora pudesse ser também de outro modo, logo se ia vendo, dependia também do que Angola achasse sobre o assunto, aquilo era apenas uma reunião de carácter exploratório...
Irritada com a interrupção, a loura folheava as páginas do caderno como que a procurar o que ainda faltava dizer, sarrabiscava vês com a Montblanc nas notas do canhenho, e, pelo canto do olho, apercebeu o português a descolar as costas suadas do espaldar de napa da cadeira, quando ela tomou, de novo, a palavra, pois a outra – uma morena engraçada de que se lembrava dos anos no Uíge como médico militar – pouco abria a boca; sabida... Calculava que ia deixar correr o marfim e que se pronunciaria só no final, não se ia gastar com tretas como a loura. 
Ao olhar os três assim de fora veio-lhe uma enorme vontade de rir à boca e para disfarçar alisou a barba por fazer, compondo uma atitude grave ao cofiar o queixo. Depois, como sentisse a testa perlada de suor, aproveitou a lembrança, pegou no bloco, onde ainda não escrevera uma linha, e começou a usá-lo como leque. Na outra cabeceira, em sincronia, a morena bebeu um gole do gargalo da garrafa de água que ele mandara Faustina colocar na mesa, junto com um pacote de litro de sumo de pêssego e os guardanapos de papel.
Agora o português – achava que ele era professor, embora não soubesse bem de quê – cruzara os braços e espalmara as mãos sobre os punhos da camisa, como se se quisesse defender do discurso da loura, que falava entretanto do que Angola deveria fazer para organizar os seus cuidados de saúde, citava exemplos de sucesso na Tanzânia e no Uganda e em outros sítios que eram um atraso de vida e que o seu país não encarava como modelos a seguir. Disfarçadamente, deixou escorregar o braço para o colo, de modo a poder esticar a manga da bata e olhar o relógio. Mas a loura fitava-o de testa franzida, os olhos consumidos muito arregalados. Dizia:
“Suponho que aqui, na África Subsariana, este é um problema que vos dirá muito...” 
Distraído no gesto encapotado de consultar o relógio e confrontado com o tom inquisitivo da outra, ficou a achar ter deixado escapar algo importante e sentiu-se momentaneamente apanhado, sem perceber em que sentido se devia manifestar. Então, olhou para o português com um certo ar em que se caldeava a estupefação e o pedido de ajuda. Ao ver o outro piscar-lhe um olho  discretamente, sentiu que tudo estava sob controlo e que não precisava de se preocupar a responder.
© Fotografias de Pedro Serrano, Angola, Julho 2008.

16 junho 2015

ONE DIRECTION: EM DEFESA DO PORTO

Sara Sampaio, a modelo do Porto que, prometendo o Verão eterno, invadiu por estes dias cartazes e outdoors trajando bikinis da Calzedonia, está a desencadear salvas de ataques de nervos nas redes sociais.
Parece que a rapariga anda enrolada, ou em vias de enrolanço, com um famoso rapaz inglês, vocalista de uma expoente banda pop do momento. Nada de novo à luz do sol, diríamos: nos anos 60, e só para apresentar um caso, Bob Dylan casou com uma moreníssima coelhinha da Playboy chamada Sarah Lowndes, com quem foi feliz, teve filhos, passou férias no Algarve, e imortalizou nas canções “Sad Eyed Lady of the Lowlands” e “Sara”.
Mas a gota de água, a que fez explodir uma cascata de comentários no Face e quejandos, foi a afirmação peremptória da relação entre a modelo e o cantor: a nossa Sara teria sido vista a deixar o hotel – onde na noite anterior entrara na companhia do sortudo – com a mesma roupa que usava na véspera, coisa inaudita num modelo em ascensão! O estabelecimento deste nexo causal irrefutável fez torcer de raiva e desespero tudo quanto são admiradoras de Harry Styles e toca de insultarem a tripeira em comentários emotivos.
É óbvio que ‘puta’ é o elogio mais frequente, mas, a mim, agradou-me sobretudo o desabafo de uma fã que – pelo tipo de comentário – imagino ser de país do norte da europa, desses cantos gelados onde habitam as fadas louras.
“Pensava que as portuguesas tinham bigode...”

Ah, minha ingénua amiga, claro que as portuguesas (como as espanholas – veja o exemplo de Penelope Cruz, as italianas e as gregas) podem ter bigode ou melhor aquela sugestão de buço que traz à memória uma lambuzadela de mousse de chocolate mal lambida do lábio superior. Mas isso, querida desalentada, é como a marca-de-água do charme tórrido das latinas e ao pobre Harry só restou fazer jus ao nome da sua banda e seguir aquela única One Direction.

12 junho 2015

JÁ NÃO ESTAVA ALI NINGUÉM

Estava em casa da minha tia Fernanda, que migrara da sua localização habitual na rua do Amial para a esquina da Antero de Quental com a Arca de Água, mais ou menos no local onde antes havia uma mercearia onde as Pais tinham conta aberta. Preparava-me para ir a Coimbra, onde o tinha deixado, buscar o carro, mas antes disso ficara de me encontrar com o meu pai e devia fazer a barba.
Assim sendo, não fosse ele chegar, apitar lá baixo do automóvel e eu não estar ainda disponível, solicitei à Denise, levando-a comigo até à janela e sob o olhar do Ricardo que continuava sentado, os braços estendidos e apoiados no maple:
“Denise, se o meu pai chegar enquanto estou a fazer a barba, pedes-lhe para esperar um bocadinho? Ele que encoste ali...”, acrescentei apontando um espaçoso lugar entre carros estacionados.
Fui para o quarto de banho e comecei a ensaboar a cara quando o vi o meu primo Manel, encostado ao vidro martelado da porta, que se materializara ali de repente e me observava.
“A tia Fernanda ainda é viva?”, perguntei-lhe, pois estranhara o silêncio na casa toda.
“Não”, disse ele, “já morreu há que tempos...”
“Então quem está agora nesta casa?”
Ele encolheu os ombros:
“É uma senhora que toma conta dela, mas não está cá agora, penso eu.”
Acabei de escanhoar a cara e voltei à sala pensando em que, se calhar, o melhor era apanhar um táxi para deixar o Porto e ir a Coimbra buscar o carro. Pelo menos até à saída da cidade. Na sala já não encontrei a Denise nem o Ricardo e a janela para a rua continuava escancarada. Espreitei, vi o Xantia do meu pai estacionado lá em baixo. 
Falei e despedi-me do meu pai à porta da casa, já do lado de fora. Ele não falou, esticou um dedo e começou, com um gesto de mão leve e carinhoso, a desenhar como se fossem letras no meu queixo. Era uma frase longa e embora não tenha reconhecido as palavras uma a uma alcancei-lhe o sentido geral. Depois abraçamo-nos e ele foi-se embora. Chorei um pouco, emocionado com o encontro e o seu carácter de despedida. Já não estava ali ninguém comigo.

© Fotografia de Pedro Serrano, Porto, 2015.